Sangue

Capítulo 20 - Inversos


—Fip? Você está bem? – perguntou Michel levantando-se preguiçosamente da cama.

—Estou sim tolinho. – respondeu o menino que estava sentado em sua janela, envolto em seu lençol branco.

—Por que tem lágrimas nos olhos então?

Fip levantou-se e se aproximou de Michel dizendo a frase quase encostando os lábios em sua boca:

—Porque sou humano.

Notando que a resposta não causara nenhum efeito, sentou-se na cama resmungando ‘’não tem a menor graça, você nem fica vermelho.’’. Michel deu um sorriso frouxo:

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—Incomoda-se por sua vida teatral não me convencer, não é? Por que vejo além da sua máscara de figurão.

—Ai menino! Que mania você tem de ficar lendo os outros! Isso irrita sabia?

—Claro, você se sente vulnerável.

—E não gosto disso!

—Não gosta é? – disse tomando-o nos braços – Pois eu gosto muito de destruir sua pose de pavão. – atirou-o na cama mordendo-lhe o pescoço – Agora diga que se renda, Fip. Diga que se entrega.

—Já estou rendido faz tempo! – disse rindo. – Que droga Michel, porque não sou invulnerável a você? Por que consegue me desmontar assim?

—Porque sou bom nisso. Assim como você é.

—Mas parece não funcionar com você.

Michel sorriu.

—Parece é?

—Que droga, menino. Antes eu conseguia ler você. Via a dor e a submissão nos seus olhos, mas, desde que você se libertou da sua casa, da influência dos seus pais, você me parece indecifrável! Seus olhos me mostram uma petulância e um topete que não consigo derrubar.

—A petulância é a defesa dos sensíveis.

—Ah, então é isso! Você entendeu meu plano e está usando ele contra mim! – ‘’Que droga de menino perspicaz! Senti um comichão no estômago ao mirar seus olhos bonitos. Agora posso compreender a fascinação que ele exerce sobre Flavius...’’

...

—E você veio para cá só para reencontrar o Fip? – perguntou Flavius que estava sentado no chão de seu quarto ao lado da cama.

—Foi. Mas ele não parece dar muita moral para mim.

Felipe estava sentado na cama, fazia uma figura estranha em meio a toda aquela decoração gótica. Suas roupas bem alinhadas, cabelo penteado com gel, postura de bom menino não combinavam em nada com o ar rude e pobre do quarto com pôsteres de banda grudados com durex na parede de tinta velha e cortinas improvisadas.

Flavius se dava conta disso e deixava escapar um sorriso leve, enquanto pensava no quanto poderia compreender o porquê de Fip não dar atenção ao rapaz. Mas essa seria uma coisa muito cruel para ser dita, por isso o garoto se contentava em dizer:

—Talvez Fip não dê muita atenção a ninguém.

As lágrimas vieram aos olhos de Felipe, mas o menino tentou disfarçar. Flavius, percebendo que havia enveredado pelo caminho errado da conversa, tentou desviar a atenção para a sua própria dor, para que, ao perceber que não era o único que sofria, Felipe pudesse se sentir um pouco aliviado. Uma tendência humana essa de competir quem sofre mais, tendência que Flavius e Felipe estavam prontos para colocar em prática:

—Pior sou eu, que ele diz que ama e me trai com a pessoa que é mais importante para mim! Ele sabe que eu amo o Michel! E as coisas estavam quase se acertando entre nós! O que ele fez foi uma traição! E da pior espécie! Ele roubou o Michel de mim! Roubou!

—E o Michel sabia que eu amava o Francis, eu já tinha dito isso a ele! E não teve a menor cerimônia antes de se deitar com ele!

—Não culpe o Michel! Nós sabemos como o Fip é. Michel não teve culpa!

—Ah por favor, Flavius. Você ficaria com o Francis sabendo que o amo tanto? Sabendo que iria me machucar?

Flavius engoliu em seco. Mais uma vez achou melhor poupar o rapaz de sua verdadeira opinião:

—Bem, agora que estamos amigos... claro que não... mas ainda assim, penso que não foi culpa do Michel. Ele tem um bom caráter, não faria nada para magoar ninguém.

E dessa vez as lágrimas atacaram os olhos do menino Flavius que se pôs a lembrar do seu sentimento pelo rapaz loiro que vira a pouco nos braços de Fip. Toda aquela doçura, aquela meiguice, aquele amor sendo desperdiçados com a brutalidade errônea e selvagem do dançarino! Aqueles braços que deveriam enrolar seu corpo e o de mais ninguém, sendo usados por aquele hipócrita traidor!

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Chegava a ser nojento imaginar o Fip fazendo com Michel todas aquelas coisas que ambos costumavam fazer! Michel era um rapaz de fino trato, que deveria ser tratado com delicadeza! Não deveria ser maculado pelas mãos pérfidas e imundas de Fip!

E pensar nisso fazia seu peito ficar pequeno, esmagando tudo o que havia dentro. Sentia que poderia morrer a qualquer segundo, como se sua vida se gastasse toda com aquela dor. Nunca passaria! Nunca se esgotaria! Viveria para sempre com essa repulsa, essa náusea, esse senso de perturbação!

E, em pensar nisso, sentia um novo ataque de angústia, e, em seguida mais outro e outro. Uma avalanche de dor capaz de fazê-lo sentir seu corpo se dilatar, se contrair, pender no espaço. Dor como essa não cabe numa existência, não cabe em alguém...

...

Natasha assistia a Tv entediada. ‘’Esses dois não param de transar nunca? Eu estou com fome, preciso do Chico pra preparar a comida.’’ . Nada de bom em nenhum canal. Sentiu que era melhor desligar. Aquele gesso já estava dando nos nervos. Tarde chata. Dia chato. Já estava se cansando de todos os escândalos, brigas e manifestações de amor mal resolvido. ‘’Ah, essas bichas mal resolvidas, estão piores que eu...’’. Deu uma olhada para o telefone... ‘’Droga, talvez seja hora de dar alguma notícia...’’

—Alô, mãe?

...

Fip colocou um cd qualquer de blues pra tocar no quarto e foi dançar. Era como se ele ignorasse completamente a minha presença. Não sei o que se passava em sua mente, mas eu parecia invisível. Achei bonita essa entrega. O fato de ele conseguir se expor assim, de modo tão sensível na minha frente. Sempre achei que dançar era uma coisa muito delicada, que nos expunha muito, e Fip o fazia com uma naturalidade tão sem reservas, como se não fosse observado! Isso criava um elo, uma sensação de cumplicidade difícil de explicar. Era como se estivesse a nos contar um segredo, uma confissão.

Ele dançava de olhos fechados, com uma leveza de sentimentos tão sofisticada e carregada de intensidade! Era fascinante. Dava vontade de chorar. Estava paralisado, emocionado, corrompido pelo desejo de criar algo belo também! Foi quando decidi que queria atuar!

...

Às sete da noite estavam todos na varanda jantando; Michel, Natasha e Fip. Felipe entrou sem falar com ninguém, subiu para seu quarto e lá ficou:

—É melhor você falar com ele, Chico. – disse Natasha.

—Ah nem, por que?

—Não discute e vai! – disse sorrindo. Fip fez um muxoxo entediado e obedeceu.

Assim que o jovem desapareceu de vista, Michel, que admirava as estrelas, disse, com um ar pensativo:

—Acho que vou voltar para casa.

Natasha mordiscou mais uma vez o milho que tinha em mãos e deu de ombros:

—Liguei para os meus pais hoje. Para dizer que está tudo bem. Minha mãe chorou no telefone, fez um escândalo. Disse que eu estou matando eles e tudo o mais. Sabe, todo esse peso que os pais jogam em cima de nós. Como se fossemos responsáveis pela infelicidade deles... eu não sei. Não gosto disso. Foi por isso que sai de casa. Mas eu os amo, sabe? Não queria que sofressem e tudo o mais, mas é inevitável, porque eles projetam a felicidade em mim! Tentam me tornar uma coisa que eu não sou! Que eu não quero ser! Nunca vamos nos entender! Mas ainda assim, sinto falta do bom e velho afago da mamãe.

—Acho que eu estou igual. Aqui não é meu lugar sabe. Mas não ia me sentir bem em voltar a viver com eles. Só que eu não queria que as coisas ficassem assim. Eles nem vieram me procurar. Eu não entendo o que eles querem de mim.

—Ninguém entende. Eles dizem que querem que sejamos felizes. Mas não vale se não formos felizes do jeito deles. Do jeito que eles planejaram pra gente. E eles estão dispostos a nos dobrar e nos tornar infelizes para nos encaixar nesse padrão de felicidade que só existe na cabeça deles... é esquisito, não é?

—Eu diria mais... é egoísta. Um amor egoísta? Será que isso pode existir?

—Bem, acho que as pessoas confundem muito amor com autoflagelação. Sei la, quando a gente ama a gente inventa de se mutilar inteiro pela pessoa. E depois a gente quer alguma compensação, algum retorno. Como se disséssemos: Hey, eu arranquei meus olhos por você, agora tem a obrigação de me guiar! Sendo que, na maioria das vezes, não nos preocupamos em saber se aquela pessoa quer ser guia de alguém...

—É... faz sentido....

Disse Michel ainda olhando para as estrelas, e continuou:

—Bem, quer sobremesa?

—Não obrigada, estou engordando demais, tenho que manter a forma.

—Para quem?

—Sei lá. Para mim.

—Tenho certeza que você continuará a se amar com uns quilinhos a mais.

—Acho que eu não teria opção.

—Então, vai querer a torta?

—Só um pedacinho.

...

—Felipe? Posso entrar?

—Adianta dizer que não?

—Não.

—Então por que pergunta?

—Pra você mentir e dizer que sim.

—Não vou mentir. Vou dizer que não.

—Então também serei sincero e entrarei.

Entrou.

—O que quer?

—Falar com você.

—Já está falando.

—Eu sei.

—...

—E então?

—Olha, Felipe, eu não sei o que se passa pela sua cabeça. Você atravessa metade do país para me ferrar bonito com o meu pai... ta certo que você voltou atrás e tudo o mais, mas enfim, você reaparece do nada depois de três anos, invade a minha vida... diz que planejou me matar, ou, no mínimo me espancar. E depois quer ficar chateado porque eu transei com alguém?

—Eu não estou chateado, Francis, eu só estou... decepcionado... comigo mesmo... com nós dois... não sei... pensei que eu significasse alguma coisa para você.

—Você significa. – disse segurando sua mão – Mas não desse jeito. Poxa, aquilo com o Michel aconteceu. Não foi algo que eu planejei. E, mesmo se tivesse planejado, poxa Felipe, que satisfação eu devo para você? Quando eu te disse que ficaria só com você?

—Você não disse mas... mas poxa, Francis, eu gosto muito de você.

—Ah, para com isso! Não vem se fazer de coitadinho indefeso pra cima de mim! Gosta de mim o caralho! Não sou seu bichinho de estimação não! E, além do mais...

—Ah, Francis, por favor... não quero discutir.

—Ótimo, me poupa o trabalho de tentar ser agradável e tentar te explicar uma coisa que você não quer entender. Além do mais, não vou me desculpar por uma coisa que foi boa e me deu prazer.

—Ótimo. Eu vou embora amanhã.

—Não vai não. Amanhã é o dia de pegar o meu pai de jeito! E, além do mais, Felipe, não me julgue mal. Eu gosto de você. Eu quero que você fique. Ainda nem tivemos tempo de conversar, de relembrar os velhos tempos.

—É... está claro para mim que você tem uma vida nova agora, Francis... está bem claro para mim...

—Sim, eu tenho uma vida nova, Felipe, mas ninguém te disse que você não pode fazer parte dela também. – estendeu-lhe a mão – Vem, vem dançar tango comigo. Vou por aquela musica que costumávamos dançar juntos no salão.

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—Francis, por favor.

—Por favor digo eu. Por favor, Felipe, volte a dançar comigo, volte a fazer parte de mim. E me desculpe meu jeito torto. Meu pai me bateu tanto que me deixou assim.

—Francis – disse sorrindo sem graça – Não faça piadas disso. – disse segurando sua mão totalmente rendido à familiaridade que a menção ao passado o fizera sentir. – eu te amo.

—Então vamos dançar.

...