Sagira

Capítulo 13 - Eu - com certeza - não preciso do corvo


Tento gritar mas sequer abrir minha boca eu consigo. É como se eu estivesse em inércia, e o espaço comigo. Está tudo tão negro que nem sei se estou de olhos abertos ou se estou me mexendo.

Se eu pudesse, choramingaria agora.

– É a escuridão, Sagira - Anúbis dizia enquanto encarava o fundo do poço em que me ajudava a buscar água.

Eram raros nossos encontros. Ele quase nunca conseguia fugir pra me visitar às escondidas, já que eu sou exilada do Egito. E eu sentia tanta falta dele quanto sentiria de metade do meu corpo caso fosse arrancada. Ainda sinto.

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– É escuro, só isso - eu disse rindo da expressão série de An.

Tão inocente.

Meus cabelos negros estavam espatifados e cheios de areia. O deserto conhecido por mim era em Arizona, mas eu queria mais. Pra mim, não é deserto de verdade se não for africano. Minha terra natal.

Eu estava com um vestido que deveria ter sido branco um dia, mas amava a tonalidade amarronzada que ele adotou devido à terra, areia e aventuras sem fim que tive durante a infância. Eu estava tão…. Transbordante de felicidade e inocência.

Anúbis me encarou com os olhos surpresos e o cenho franzido.

– Não tem medo do escuro? - ele perguntou e se abaixou levemente para ficar do meu tamanho.

Neguei com a cabeça e dei um sorriso cheio de mim.

– Pois deveria - ele disse e meu sorriso se transformou em uma expressão confusa.

– Por que? - perguntei piscando sem entender nada.

– O escuro está em nós, irmãzinha - ele respondeu e alisou meus cabelos - devemos aceitá-lo, mas jamais permitir que controle nossos corações, caso contrário ficaremos presos à ele.

Mostrei a língua à An. Pra mim, tudo aquilo não passava de baboseira sem fim! Por que ele não aproveitava pra caçar comigo e brincarmos juntos na floresta ao invés de dizer coisas confusas para mim? Era o meu pensamento naquele momento.

Quando penso que vou morrer (morrer de vez ou simplesmente ficar confinada ao vazio escuro eternamente) tanto por não saber onde estou e o que vai acontecer comigo (além do flashback que tenho, quase me matando de saudades de An), uma explosão de luz dourada ofusca meus olhos e consigo emitir um gemido de reprovação.

– Garota! - ouço uma voz quase familiar grunhir e me puxar pelo braço.

Estou tão dolorida e amortizada pelo que aconteceu, que não me importo.

Encaro com os olhos vazios a pessoa que machuca meu braço de tanto apertar e puxar.

– Droga, você de novo - resmungo e limpo os olhos.

Percebo que estou chorando. É constrangedor, considerando que fui durona o bastante para empurrá-lo quando ele pensava estar me ajudando.

– Eu disse que não conseguiria fazer aquela coisa estranha aqui - ele reforça e me joga sentada na cadeira novamente.

É a mesma sala de antes, mas agora está iluminada. Ou talvez eu é que esteja prestando mais atenção ao meu redor.

– O que quer comigo, Hórus? - pergunto cansada.

Ele cruza os braços sobre o peito e me encara de cima. Deve ser assim que ele faz com os outros deuses, já que é tipo O Mandachuva.

– Vou levar você de volta pras areias do Egito - ele responde.

Ou pensa estar respondendo.

– Ahn? - pergunto confusa e torço o nariz diante da minha própria estupidez.

– Você vai voltar pro Egito - ele revira os olhos.

Devo dizer que o faraó dos deuses revira os olhos muito mal. Como se tivesse aprendido a fazer isso recentemente.

Franzo o cenho e o encaro. Que tipo de pessoa, não, que tipo de deus ele é?

– E se eu não quiser? - pergunto com o nariz arrebitado em tom de rebeldia, mas meu coração indica totalmente o contrário.

Eu quero ir. Quero mais que tudo, cada átomo que compõe meu corpo pede por areias egípcias e por chacais uivando na madrugada. Tudo em mim pede Anúbis ao meu lado me contanto lendas, mitos antigos e eu contando pra ele tudo o que vivi depois de nosso ultimo encontro. Vivi tanta coisa… Será que ele vai me repreender por ter aprontado no Japão? Será que ele vai torcer o nariz e ficar com dó de mim quando souber que fui posta num coleira com um deus alado bonitão da morte?

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Talvez ele me repreenda por tudo o que fiz. Mas vai ser uma repreensão tão boa… Vai vir dele. Pessoalmente, e não por cartas ou SMS.

Não consigo segurar o suspiro que me escapa e Hórus sorri vencedor.

– Sabia que mudaria de ideia - ele falou mais para si mesmo do que para mim.

Inesperadamente, ele estende a mão em minha direção com um sorriso singelo, tímido.

– Então vamos? - ele pergunta, inseguro.

Vai se arrepender disso, Sagira. Digo isso para mim mesma.

Mas meu coração está sapateando de animação e meu sangue está fervendo.

Apesar disso, uma parte de mim está melancólica e pede, chorosa, para que eu volte para o castelo de meu pai. Para que eu fique junto a Tanatos. Só então me dou conta do quanto me sinto protegida e normal perto dele.

E isso me causa revolta. Eu não preciso, repito: NÃO preciso ou dependo de Tanatos. É patético. Eu me virava muito - perfeitamente - bem sem ele na minha vida antes! E ainda posso viver.

Decidida, pego a mão de Hórus e vejo ele sinalizar no ar, criando hieróglifos brilhantes que formam um portal. É lindo, e eu preciso aprender isso.

Ele dá um passo e espera que eu o acompanhe. Estaria sendo gentil se não estivesse apertando minha mão com força demais.

Entramos no portal e vejo a sala desaparecer conforme ele se fecha diante de mim.

Um turbilhão de ventos e areia fina ameaça me jogar de um lado para o outro, como colocar achocolatado em pó dentro do liquidificador, mas Hórus me mantém firme perto dele com o maxilar trincado. Sua postura é ereta e ele me encara como se dissesse para eu fazer o mesmo.

Mas ele deveria ter é me avisado para não abrir a boca.

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Ainda estou cuspindo areia e usando a pequena garrafa de água que Hórus trouxe comigo para lavar a língua de cinco em cinco minutos.

Simplesmente não consigo parar.

Hórus me olha e nega com a cabeça, em sinal de reprovação.

– Vai ter sede depois, e não terá água - ele diz.

– Você é um deus, pode criar água o quanto quiser! - fuzilo-o com o olhar e ele quase se encolhe.

– Precisa aprender a racionar - ele argumenta - além disso, você também é uma deusa e pode fazer isso da mesma forma que eu poderia.

Desvio o olhar.

Sim, eu sou uma deusa.

Mas ninguém me CONHECE. Eu não ouço orações, preces ou atendo a pedidos. É devido a isso que apesar de ser filha de Hades e Néftis, não possuo nem metade dos poderes deles.

Porque alguém acredita neles, isso lhes dá poder. Além disso, são incontáveis anos mais velhos do que eu.

– Não exatamente - murmuro.

– Terá adoradores em nossa terra - ele diz em tom de certeza, como se isso fosse me confortar.

Não conforta.

Que tipo de pedidos eu atenderia?

“Oh, deusa Sagira, por favor, mate fulano!”

Porque é pra matar que eu sirvo. Não tenho poderes que favoreçam outras coisas.

Quero dizer, eu sou uma loba! Lobos caçam, dilaceram e tudo mais, certo? Sei fazer isso.

Encaro Hórus, de soslaio. Mesmo sendo um deus falcão da guerra, ele ainda faz outras coisas apesar de não ser lá muito querido - até onde eu sei.

Reviro os olhos para mim mesma.

Talvez eu seja a deusa da inutilidade.