Capítulo IV – No Olho do Furacão

“Anjo meu, posso te agradecer,

Você me salvou muitas e muitas vezes

Anjo, eu tenho que confessar,

É você que sempre me dá força

E eu não sei onde estaria sem você”.

(Evanescence – Angel of Mine)

Meus olhos mantinham-se fixos na jóia caída de forma desleixada no teto do carro. Ela devia ter caído do meu pescoço enquanto o carro capotava.

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Mas o mais assustador realmente era a grande gema rubi, brilhando, lançando feixes de luz em todas as direções. Luzes que penetravam meus olhos, e acendiam uma velha esperança há muito morta e esquecida em meu coração.

Porque aquilo tudo só podia significar uma coisa: havia um Mediador perto de mim. E foi impossível impedir o nascimento daquela pequenina chama esperançosa dentro de mim.

Minha imaginação correu solta, e eu podia quase jurar que quem estava ali era Aidan. Aidan, ele havia voltado para mim, não havia dúvida. Tinha que ser ele! Somente ele viria até em mim em minha hora mais negra, somente ele seria capaz de ouvir meus clamores e minhas súplicas e correr em meu socorro.

Devagar, eu movi meus dedos, esticando meu braço ao máximo, e a ponta deles roçou na corrente fina e dourada. Eu gemi, meu corpo tremulou, mas eu agarrei com determinação a jóia e a enrosquei em meus dedos, puxando-a para mim novamente.

O pouco que consegui mover minha cabeça, vi a destruição que aquele acidente provocara, cacos de vidro oriundos do pára-brisa jaziam no asfalto, reluzindo como infinitos cristaizinhos sob o pouco de iluminação que vinha dos raios prateados da lua.

Com calma, e o máximo de cautela possível, movi minha mão, tateando o fecho do cinto afim de desprendê-lo. Assim que ouvi o "click", soube que estava livre.

Meu corpo moído e dolorido desabou no mesmo instante, e eu teria batido a cabeça novamente se não tivesse apoiado-me nas mãos. O problema era que o teto do carro, assim como o restante do asfalto, estava coberto de cacos de vidro. E com a pressão que exerci para proteger-me de outra queda, a palma de minha mão feriu-se nos cacos.

Eu devia ter sentido ainda mais dor, se é que isso era possível. Pelos céus, minha cabeça latejava de uma forma que eu jamais pensei que poderia ser possível. A ferida em minha coxa direita parecia estar em chamas, ardia pavorosamente.

Sentia-me tão fraca, tão debilitada. Mesmo assim, mesmo ferida como jamais estive, encontrei forças para rastejar-me para fora do carro, ou pelo menos tentar. Se eu permanecesse ali poderia ser atingida por um outro automóvel.

Minha mão fechou-se ao redor da jóia que ainda brilhava, e com um gemido baixo eu dei o primeiro passo, ou esgueirei-me pelo chão. Trincando meus dentes com força, eu consegui por alguns poucos minutos esquecer da dor angustiante que ameaçava consumir-me e com muito esforço de minha parte, de meu corpo ferido e debilitado, eu consegui finalmente sair da estrutura decadente do carro tombado e entrei em contato com o asfalto gélido e áspero.

Estaquei quando as forças faltaram-me, quando eu não pude mais seguir adiante. Uma forte tontura apanhou-me, tudo girava ao meu redor e eu ainda respirava com dificuldade.

Escondi minha face em meus braços, deixando-me apanhar por aquela forte vertigem. E permaneci ali, deitada, completamente imóvel, eu esperava permanecer ali, não conseguiria mais me mover. Então se algum veículo não conseguisse visualizar-me ali atrás de meu carro capotado, eu provavelmente seria atropelada.

E talvez no fundo eu também esperançasse que meu socorro chegaria a qualquer momento. Talvez em meu subconsciente eu realmente pensasse isso. Um milagre agiria sobre mim agora, e minha vida seria salva. Mas um outro lado meu, um outro lado mais sombrio tratou de consumir todas as minhas esperanças, devorando-as uma a uma com fervor e deleite, enquanto a verdade consumia-me; não havia milagres naquela noite, não havia salvação para mim, não agora. Porque junto a mim, naquela noite, só estava a morte. Só me restava ela como companhia. Talvez ela e minha solidão infinita e minha tristeza interminável. E isso eu constatei por mim mesma...

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- Agatha... – sussurrou uma voz assustadora ao longe.

Atrevi a sustentar meu olhar novamente, encarando o dono daquela voz misteriosa. Se eu tivesse mais forças, com certeza poderia gritar desesperadamente, poderia levantar-me dali, tentar correr, fugir das garras da morte. Mas eu não podia. Não dessa vez.

Uma das três sombras, a que se mantinha no meio, moveu-se, flutuando rapidamente até mim. A face inclinada na minha direção, o corpo inclinado para trás e para cima. Meus olhos, cansados e confusos, encontraram os da criatura, dois orifícios negros e tenebrosos que podiam devorar a minha alma a qualquer momento.

Senti o restante de meu fôlego esvair-se completamente, enquanto meus lábios entreabriam-se pelo choque e eu arfava baixinho. E enquanto a jóia ainda brilhava em uma de minhas mãos, a criatura aproximou-se ainda mais de mim, seu manto gélido e negro agitando-se sozinho.

E a criatura finalmente olhava-me nos olhos com sua expressão indecifrável. Seu rosto estava apenas a centímetros do meu, mais um pouco e eu poderia tocar sua face sombria.

Os olhos da morte hipnotizaram-me no mesmo momento, prendendo-me como cárceres dos quais eu jamais conseguiria escapar. E embora seus lábios não se movessem nem ao menos um pouco, sua voz rouca e assustadora era capitada por meus ouvidos, e eu podia ouvi-la perfeitamente.

- Virctroc sevilas telarium psioda sarevart omniun gertruc aviola patamer...

E aquelas palavras conseguiam despertar algo dentro de mim. Meus olhos arregalaram-se imediatamente, eu perdi consciência de tudo o que estava havendo ali, eu parecia mais estar flutuando em algum tipo de dimensão paralela. E então veio a dor...

Eu cerrei meus olhos no mesmo instante, sendo dominada pela dor angustiante. E mais uma vez eu via o fogo consumir meu ombro direito. Irradiando de minha marca de nascença e contaminando cada pedaço do meu corpo. E eu gritei, retorcendo-me de dor.

Era estranho, a dor era tamanha, tão angustiante, que eu ainda consegui encontrar forças para abraçar-me, rolar no asfalto, encarar o céu negro acima de mim e tentar de alguma maneira apaziguá-la, diminuí-la.

E mais uma vez, a criatura inclinava-se até mim, curvando-se, seu manto gélido pronto para recobrir-me como uma capa negra, pronto para envolver-me, e então selar meu destino para sempre...

Não me atrevi a cerrar os olhos. Não. Se eu tivesse de perecer, então que fosse de uma só vez.

Nos últimos meses eu tentara juntar os cacos do que sobrara de minha vida. Eu tentara refazê-la após a partida de Aidan. Mas era inútil. A entrada dele em minha vida assemelha-se a um grande tufão, uma grandiosa tempestade, que terminara por agitar as águas tórpidas que sempre me envolveram.

E uma vez que aquela grande tempestade havia adentrado em minha vida, uma vez que eu tive total consciência dela, seria impossível retornar para a calmaria. Seria impossível esquecer a forma como ela mexeu comigo. E eu sabia que jamais superaria a dor de nossa separação. Eu jamais ia recompor-me completamente. E eu definharia lentamente, morreria aos poucos sem ele em minha existência, sem ele próximo a mim.

E enquanto a criatura curvava-se lentamente, eu preparava-me para despedir-me desse mundo. Eu dizia o meu adeus solene, e de alguma forma, eu estava pronta para partir.

E em meus últimos momentos, como era de se esperar, o único a povoar os meus pensamentos e lembranças mais profundas era Aidan. Era ele ali comigo, em meu momento mais sombrio. Ele provavelmente alimentaria uma espécie de rancor em relação a mim por estar entregando-me a morte daquela maneira.

Se ao menos algum dia ele descobrisse...

Apertei a jóia entre meus dedos e suspirei...

E uma voz ressoou.

- Varsic Laviori!

A criatura acima de mim retorceu-se, como se tivesse sigo golpeada por uma força invisível. E um grito estridente escapou de seus lábios cerrados, consumindo-a, e doendo em meus tímpanos. Eu sabia que aquela voz não era a que eu aguardava, a que eu desejava ouvir fervorosamente, mas mesmo assim, pareceu-me a luz no fim do túnel. E eu fui dominada pelo choque no mesmo instante.

Enquanto a criatura recuava em marcha lenta, afastava-se de mim, indo postar-se ao lado das outras duas novamente. Ousei virar-me no asfalto, tentando encontrar a face de meu salvador. E ignorando a ardência em minhas feridas, e a dor que ainda me consumia e drenava todas as minhas forças, eu deixei que meus olhos vagassem pela noite escura sem fim, à procura da silhueta que eu facilmente distinguiria da negridão. E eu o encontrei.

Era um rapaz, um jovem. Aparentava ter a minha idade, ou pelo menos eu constatei isso. Era magro, um tanto musculoso, suas pernas eram longas e o tronco meio esguio, mas nada que o prejudicasse muito.

Os cabelos eram de um negro intenso, mesclavam-se à escuridão infinita, ondulados e sedosos, curtos. A tez era pálida como alabastro, como o marfim. E ele trajava roupas completamente comuns para um jovem daquela idade, jeans escuros surrados, suéter cor de creme, jaqueta de couro negra por cima, a gola virada para cima e botas macias e negras.

Mas o que realmente me surpreendeu foram seus olhos; o tom de seus olhos era algo que eu jamais havia visto. Eram como duas pedras enormes e brilhantes, de um azul tão intenso, tão belo que me fizeram lembrar do lápis na mesma hora. E embora seus olhos demonstrassem cautela, respeito pelas criaturas bem a sua frente, seus lábios repuxavam-se em um sorriso de canto que expressava tremendo deboche. Ao mesmo tempo que sua posição aparentava descaso, extrema confiança e segurança.

Meus olhos prenderam-se nele e em nada mais. E eu observava o garoto enfiar as mãos nos bolsos da calça, enquanto assumia uma pose despreocupada e relaxada. Fiquei completamente aterrorizada. Até mesmo Aidan demonstrara respeito pelos Devoradores de Alma, mas aquele garoto parecia não se importar por estar diante de três criaturas indestrutíveis e imortais.

As três sombras o encaravam sem nada dizer, nem ao menos se mover. A meu ver aquilo era totalmente estranho. Como três criaturas como aquelas podiam deter-se diante de um garoto apenas? Eu lembrava-me perfeitamente de quando Aidan foi buscar auxílio de um Mediador que tivesse muito mais experiência em criaturas como aquelas. O ritual havia sido realizado, os Devoradores estavam proibidos de tornar à cidade, mas isso não podia impedi-los de circular pelas redondezas.

E mais uma vez eu fui surpreendida. Eu não podia prever o desfecho daquele ataque cruel. Não, eu nem mesmo podia chegar perto de adivinhar o seu final. Porque no instante seguinte, ainda em silêncio mortal, as três criaturas, as três sombras tenebrosas curvaram suas frontes e baixaram até o asfalto, penetrando o concreto e desaparecendo sem restar um resquício sequer de que suas presenças já estiveram ali.

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Eu arfei. Ainda não acreditava que tudo aquilo pudesse ter se concretizado.

Apertei a jóia que ainda cintilava em minhas mãos e fitei a silhueta do garoto a poucos metros de mim. E seus olhos já estavam sobre mim. As duas pedras lápis fitavam-me, e um sorriso ainda emoldurava seus lábios finos e perfeitos. E de sua face emanava tanta luz, tanta paz.

Seus olhos eram tão confiantes e seguros. Não havia qualquer vestígio de dúvida ou tristeza em seus olhos. Os fios negros de seu cabelo eram suavemente agitados pelo vento leve e frio. E naquele instante eu fui dominada por uma certeza; ele tinha que ser um anjo. Somente uma criatura tão celestial e divina podia enquadrar-se nas características que ele possuía e detinha.

Mas anjo ou não, que tivesse vindo em meu socorro em minha hora mais negra, era fato que eu ainda estava mui ferida e debilitada. E só agora que aquela dor angustiante causada pelo Devorador havia cessado, eu pude perceber que algo tomava conta de mim. Mas não era dor, não eram as minhas feridas reclamando, era o torpor.

Eu estava sendo dominada por ele, engolfada por ele, e logo perderia a consciência. Minha cabeça já pesava e eu mal conseguia sustentá-la. Meus olhos teimavam em querer fechar-se, mas eu ainda temia que a morte viesse selá-los para sempre. Minha visão escurecia de uma forma estranha, e eu perdi o fio do pensamento.

Eu estava preste a desmaiar, mas resistia com minhas últimas forças remanescentes. Elas não me manteriam desperta por muito tempo. E enquanto minha face repousava no asfalto gélido e áspero, a última coisa que eu pude registrar foi o garoto aproximar-se de mim, caminhar até minha figura ferida e completamente desnorteada caída no meio da pista.

- Hunf.

E os olhos azuis, emoldurados pelos grossos cílios, encontraram os meus mais uma vez, enquanto ele sorria de canto, e eu não via mais nada, o torpor enfim havia conquistado a última parte de mim, enfim havia conseguido dominar-me completamente.

E eu não consegui mais resisti-lo, acabei por ceder ao final, completamente consumida pela dor e pelo cansaço...

Eu pensei que não fosse mais emergir daquelas águas. Mas, mais uma vez, eu enganei-me. Não que eu pudesse ter total consciência de tudo ao meu redor. Era como se eu estivesse presente ali, e ao mesmo tempo, não estivesse inteiramente.

Era como se eu tivesse sido aprisionada em uma parte específica dentro de mim. Eu ouvia tudo, eu via relances, flashes que me deixavam alarmada, mas não conseguia reagir a nada do que acontecia comigo.

Não sei ao certo por quanto tempo eu permaneci estirada naquele asfalto, podem ter sido minutos ou uma eternidade inteira. Mas depois de algum tempo que a meu ver pareceu interminável e infindável, o som de pneus e um motor roncando acabou por despertar-me. E quando eu tentara abrir meus olhos e ver quem era, faróis cegaram-me, enquanto o automóvel estacionava a vários metros de mim, sons de portas sendo abertas, e uma figura magra e ruiva correndo até mim.

- Agatha! Agatha! Agatha! – ela gritava, mas eu não conseguia responder, eu ainda estava restringida naquele pedaço dentro de mim mesma.

E depois mais pessoas juntaram-se a ela, cercando-me, eu podia sentir suas respirações quentes e aceleradas chocando-se contra mim. E depois alguém berrara.

- Chamem uma ambulância!

Uma mãozinha delicada e tão fria quanto gelo segurou na minha, não se atrevendo a mexer mais em mim, temendo talvez que eu tivesse fraturado algum osso.

- Agüente firme. – sussurrou ela e depois eu fui envolvida pelo torpor novamente.

Estar ali era como ser aprisionada em uma câmara escura e silenciosa. Um cubículo negro, no qual não havia portas, não havia janelas, havia grades que te aprisionavam, e através dessas grossas e densas grades você podia tomar consciência de tudo o que estava ocorrendo ao seu redor.

Quando abri meus orbes novamente, eu já estava em um ambiente completamente diferente. Havia luzes ofuscantes no teto, que ardiam em meus olhos sensíveis.

Minha cabeça ainda girava e eu podia notar a forma estranha que respirava. Aquilo não era normal.

Eu sentia-me tão fraca, como se minha própria vida estivesse sendo drenada de mim, e ela esvaía-se lentamente.

Eu também captava o grande alvoroço que estava ao meu redor. Muitas pessoas gritavam, outra agarrava minha mão com determinação enquanto soluços e gemidos escapavam de seus lábios.

E depois a mão se fora.

Eu sabia que, pelo modo como as luzes no teto passavam por mim, eu estava em movimento. Deitada, meu corpo jazendo em uma maca talvez, mas em movimento constante, acelerado, frenético, aquilo estava deixando-me ainda mais tonta.

Uma mulher de jaleco branco e cabelo em coque berrava frases sem qualquer nexo para mim.

- Artéria femoral rompida, ela está perdendo muito sangue!

Outro homem que seguia logo atrás, igualmente de jaleco e cabelos grisalhos parecia preocupado, sua expressão o delatava.

- Encaminhem-na para a sala de cirurgia imediatamente!

- Pressão arterial caindo! Depressa! - berrou a mulher novamente.

E então as vozes tornaram-se um misto de confusão em minha cabeça, eles diziam algo como “ela vai entrar em choque hipovolêmico!”, “freqüência respiratória elevada!”, “freqüência cardíaca aumentando.”, “ajam depressa!”, “precisamos suturar a artéria primeiro.”.

E depois algo afiado perfurou meu braço, enquanto um líquido desconhecido invadia minhas veias e eu preparava-me para adormecer novamente. Mas enquanto eu oscilava entre esses dois universos paralelos, enquanto eu alucinava, um rosto veio a minha mente no mesmo instante.

E esse era o rosto que eu esperava poder ver enquanto enfrentava minha hora mais sombria. Esse era o rosto pelo qual eu estive aguardando por tanto tempo. E enquanto os olhos castanhos repousavam em minha face, severos e intimidadores, olhando-me de forma incisiva, seus lábios entreabriam-se e sua voz aveludada e abafada permeava meus ouvidos, e eu pude finalmente sorrir e não temer mais absolutamente nada.

- Não desista...

E eu finalmente perdi a consciência, eu finalmente pude retornar para as águas da inconsciência, pois Aidan estava comigo, de alguma forma, ele estava ali, ao meu lado, e isso era muito mais do que eu podia pedir, isso era tudo o que eu queria e precisava, por enquanto.

A noite era gélida e escura lá fora. Nuvens cinzentas dançavam sobre o céu negro, encobrindo a lua. Mamãe estava na cozinha, cuidando de nosso jantar.

E eu divertia-me na grande mesa de carvalho da sala de jantar. A folha branca residia bem a minha frente, e eu a coloria, preenchendo os rabiscos e contornos desajeitados e trêmulos de meu desenho.

Percebi uma presença bem atrás de mim e virei-me para encará-la com um sorriso nos lábios.

- O que está desenhando, meu amor? – perguntou-me ela, os olhos brincalhões.

Ri um pouquinho, mostrando a ela os frutos de meu esforço. Minha mãe apanhou a folha no mesmo instante, observando-o minuciosamente.

- Que lindo, meu bem! – elogiou ela – Quem é esse? – perguntou-me ela, estendendo a folha de volta e apontando para um homem que estava de mãos dadas a nós duas.

- É o papai. – respondi-lhe e ela sorriu novamente.

- Que lindo! Seu pai ia adorar o desenho que você fez dele.

- Acho que sim. – respondi-lhe com a inocência de uma garotinha.

Mamãe deixou a folha sobre a mesa, e beijou minha testa.

- Agora vá lavar as mãos, o jantar está pronto.

- Tudo bem. – disse-lhe, já me retirando da mesa e correndo até as escadas, subindo-as aos pulos.

Adentrei ao banheiro e abri a torneira, mergulhando minhas mãos na torrente de água. Porém, o som de alguém batendo na porta acabou por me despertar de meus devaneios.

Era uma visita.

Espiei, curiosa do alto da escada, vendo aquela figura parada na soleira da porta, uma mala em cada mão. Reconheci seus traços no mesmo instante, o rosto enrugado, os olhos negros pequeninos, os lábios rosados e o cabelo grisalho emoldurando suas feições.

- Vovó! – berrei do alto da escada, lançando-me como um míssil até a porta, e depois me atirei nos braços dela, meus braços envolvendo sua cintura fina.

Apertei minha face contra o tecido leve de sua blusa, inspirando o cheiro de creme de hortelã que ela sempre usava, o seu favorito na verdade.

Vovó Anette soltou as malas no mesmo instante, abraçando-me carinhosamente.

- Ora se não é a minha neta favorita! – exclamou ela e depois me ergueu em seus braços, fitando-me nos olhos. – Como você cresceu, está uma princesinha!

- Obrigada. – assenti, timidamente.

- Ainda não acredito que a senhora esteja aqui. – sussurrei, lembrando-me da última vez em que a vi, já fazia quase dois anos.

- Eu também não me agüentava de saudades de você. – disse-me ela, tocando a ponta de meu nariz e eu sorri novamente.

Só então percebi como estava o clima de fora da aura de felicidade que recobria a mim e a vovó. Mamãe encarava a cena com uma expressão estranha, seus olhos estavam semicerrados, os lábios apertavam-se em uma linha rígida, e ela cruzava os braços na frente do corpo. Quando falou, sua voz parecia querer açoitar a vovó.

- Pensei que o combinado fosse restringir as visitas apenas para o natal. – murmurou ela, severa.

- Eva, Agatha é minha neta, eu a amo, você sabe disso, tenho o direito de vê-la, sou a avó dela.

Minha mãe franziu o cenho e cerrou os punhos, eu podia sentir a fúria que emanava de seu corpo naquele instante.

- E eu devo lembrá-la de que sou a mãe dela, portanto eu posso muito bem decidir o que é melhor para ela e o que não é. – rebateu ela, furiosa.

Vovó permaneceu sem qualquer reação, acho que ela estava tão chocada quanto eu, e baixou-me até o chão, enquanto pigarreava e olhava diretamente para a figura zangada de minha mãe.

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- Eva, eu não quis causar nenhum mal, eu só queria vê-las, apenas isso.

Mesmo após ouvir isso, minha mãe não relaxou nem um pouco, seus ombros permaneceram tensos e rígidos, mas aquilo não era justo, ela não via que estava magoando a vovó?

- Sei que você não quis causar dano algum, mamãe, mas o caso é que você expôs a Agatha. Tem idéia do que poderia ter acontecido? Será que você não mede as conseqüências de seus atos?

Vi vovó baixar a face, encarando o chão, derrotada e magoada.

- Mamãe... – eu tentei argumentar com ela, interceder a favor de vovó, mas ela lançou-me um olhar homicida e eu nunca havia visto ela tão zangada antes.

- Agatha, não se intrometa, isso não te diz respeito, agora vá para o seu quarto e fique lá até eu deixar você sair.

- O quê? – perguntei, completamente aturdida.

- Obedeça-me, mocinha!

- Não! Isso não é justo! - contra-ataquei - Você não pode brigar com a vovó dessa maneira! Ela não fez nada de errado!

Minha mãe pressionou os dedos em suas têmporas, tentando acalmar-se, mas foi inútil, eu ainda podia notar a aspereza e a fúria em sua voz. Nunca ela havia usado aquele tom comigo.

- Agatha, vá para o seu quarto e fique lá até eu mandar você sair, não discuta comigo! - ordenou ela, sua voz subindo algumas oitavas, enquanto eu permanecia completamente confusa.

O choque atravessou todo o meu rosto, ao mesmo tempo em que uma fúria imensa dominou-me. E eu não tinha mais controle sobre mim mesma, eu não tinha mais controle sobre os meus atos.

- Eu te odeio! – gritei para ela e depois me lancei na direção da escada, não me importando com mais nada.

Fechei a porta de meu quarto com violência e tratei de conter aquela sensação estranha que ameaçava dominar-me. Não, eu não choraria, não agora.

Eu jamais chorei, eu jamais cedi às lágrimas e não seria diferente agora.

Por que ela tinha que ser tão severa comigo? O que eu fiz de errado? O que vovó fez de errado? Eu jamais compreenderia esse lado tão protetor de minha mãe.

Era fato que ela só permitia as visitas de vovó uma vez por ano, mas no natal passado, vovó ficou doente e não pôde vir nos visitar. Então o que havia de mais em uma visita dela? Era completamente normal que ela quisesse nos ver. Então por que ela sempre tinha que fazer tempestade em copo d’água?

Eu não agüentava mais aquilo. Sentia-me um animal enjaulado, encarcerado. Ela sempre me privava de tudo e de todos, escondia-me do restante do mundo. Mas por quê?

Eu simplesmente não conseguia compreender as suas atitudes. Eu sei que ela sofrera muito com a perda de papai, eu podia entender a sua dor, mas por que ela tinha que acreditar que era seu dever proteger-me de sei lá o quê.

Tantas perguntas surgiam na minha cabeça confusa. E embora nenhuma resposta surgisse para nenhuma delas, uma única certeza dominou-me: eu não podia mais continuar ali, sendo aprisionada e restringida, sendo engaiolada como um pássaro.

Peguei a mochila que estava em cima de minha cama, retirei todos os cadernos e livros e depois apanhei uma muda de roupas e as enfiei de qualquer maneira dentro da mochila. Também coloquei lá dentro o pouco que sobrara de minhas economias.

Eu ia embora dali, eu ia fugir de casa. Mas antes precisava passar em um lugar para apanhar meu companheiro.

Sim, eu o levaria comigo para onde quer que eu fosse. Eu levaria Tobi e mais ninguém. E eu partiria dali ainda naquela noite, partiria para nunca mais olhar para trás.