Quando finalizou o percurso do Reino até o acampamento, a consciência de Banner começou a questioná-lo. O jovem sacudiu a cabeça com força para afastar as ideias desencorajadoras da mente. Já tinha cavalgado demais para voltar atrás e, além disso, era tarde e o Sol já se escondia a oeste, tingindo o céu de tons alaranjados. Por mais que não o quisessem na missão, teriam que aceitá-lo ao menos por uma noite, pois a regra na Zona-Segura era clara: viagens noturnas não eram permitidas. Logo, o bom senso dizia que eles seriam forçados a abrigar certo garoto em seu acampamento. E Wirt não sabia se a ideia servia de consolo ou de castigo, visto que dormir no acampamento dos patrulheiros apenas para ter que sair no dia seguinte seria muita humilhação.

Havia também o castigo gigantesco que acabaria recebendo de seu pai, contudo o jovem preferia não pensar muito nisso, o foco era o presente. Com um pouco de sorte e lábia, talvez fosse capaz de convencer Richard Martin a autorizar a sua estadia com o grupo. Mas Wirt não se iludia muito: sabia que encontrar o acampamento deveria ter esgotado toda a sua cota de sorte. De qualquer forma, já que estava lá, não custava nada tentar.

As viagens para D.C. eram cada vez mais raras, parte do Conselho da Fortaleza acreditava que a cidade deveria ser simplesmente deixada de lado, assim como tinha acontecido com o restante do mundo. Para essa parcela já um tanto idosa dos líderes, a capital da antiga nação era uma ferida que estava em processo de cicatrização e que deveria ser “devolvida à natureza”; contudo, para jovens como Wirt, vestígios de uma civilização diferente da dele eram mais valiosos que uma nascente de rio inexplorada. Ele era fascinado pelas pequenas diferenças entre a sua vida e a que os mais velhos um dia viveram: uma época que fora ditada por produção e consumo, onde acumular notas de papel era sinônimo de prestigio e as pessoas possuíam aparelhos do tamanho da palma da mão capazes de proporcionar comunicação áudio-visual instantânea.

No fundo, o que motivara Banner a se arriscar tanto fora o medo de nunca conhecer Washington. Com o aumento da descrença em relação aos benefícios da viagem, era provável que em poucos anos a Fortaleza parasse de enviar patrulheiros às ruínas da cidade. Isso significava que, quando o filho de Malcom completasse dezoito anos e finalmente se tornasse um recruta, podia ser tarde demais. Tudo o que lhe restaria da antiga civilização seriam as histórias contadas pelos outros.

Caso conseguisse fazer a incursão junto com os patrulheiros, Wirt não se importava com a repreensão que certamente receberia depois. O pai poderia proibi-lo de participar das fogueiras noturnas durante um mês ou deixá-lo encarregado da limpeza dos canis até o fim da estação; ele não se importava, afinal, teria ido a D.C.

Respirando fundo, o garoto arrumou a postura e se dirigiu até o círculo de fogueiras no meio do acampamento. Richard Martin estava no centro, conversando calmamente com os demais. Ele era um homem de estatura mediana, com algo entre trinta e quarenta anos, olhos azuis serenos, cabelos castanhos presos em um coque e uma barba igualmente castanha e bem cuidada. O líder da missão não era o melhor dos patrulheiros, entretanto ninguém questionava a sua capacidade de comando e Malcom Banner confiava nele.

Parado a alguns metros de distância, o mensageiro correu os olhos pelo acampamento, reconhecendo todas aquelas pessoas. Alguns eram velhos conhecidos, outros Wirt vira pela primeira vez no dia em que o líder da Fortaleza convocara os escolhidos para a missão. Entre eles estavam Adam Caolho McShane, um patrulheiro experiente que nunca perdera uma visita a Washington, e Tara Riley, ambos membros do Conselho da Fortaleza selecionados por Malcom para voltarem de D.C. com um relatório oficial. Ao todo eram vinte pessoas, onze patrulheiros experientes e os nove melhores recrutas do ano.

A insegurança voltou a tomar conta de seu corpo quando alguém apontou para ele e murmurou algo. Instantaneamente, o garoto deu um passo para trás, pensando em voltar, porém era tarde demais, pois já o tinham reconhecido. Sem jeito, dirigiu-se ao líder da missão, vários pares de olhos observando enquanto ele caminhava e as conversas morrendo aos poucos. Estou muito fodido. Seu rosto tentava transparecer segurança e falhava miseravelmente, pois tudo que Banner parecia no momento era um garoto assustado na frente de Martin.

— Wirt! Trouxe uma mensagem para nós? – ele o questionou de maneira calorosa, o que certamente não ajudou, já que todos ao redor da fogueira prestavam atenção na conversa.

— Não, senhor – Wirt respondeu mecanicamente depois de vários segundos, segundos estes que pareceram minutos de puro constrangimento.

— Então seu pai o enviou aqui?

— N... Não – ambos sabiam a resposta, mesmo antes dela ser dita. Era mais do que claro que, se Malcom quisesse enviar alguma mensagem, teria usado o rádio, e que, se quisesse mandar alguém, com certeza não seria seu filho adolescente. – Eu estou aqui para oferecer meus serviços.

— Wirt, sabe que não posso...

— Relaxa, fui eu que chamei o garoto aqui – Adam surgiu de repente e passou um braço ao redor de um já encolhido Wirt que olhava fixamente para o chão. Já tinha desistido de participar da missão depois do princípio de recusa formal de Martin, não pretendia nem argumentar, mas Caolho havia renovado suas esperanças. Embora nunca tivesse sido chamado por ninguém, o mensageiro tentou esconder a surpresa e prometeu a si mesmo que mais tarde perguntaria por que diabos o homem havia ajudado. – Depois que Phill deslocou o ombro, enviei uma mensagem de rádio pedindo suporte. O cara precisa de cuidados médicos e não podemos atrasar a missão por causa disso. Além do mais, quando ele sair, vamos ficar sem um encarregado da comunicação.

— Eu recebi a mensagem – mais uma vez o jovem falou tentando ser convincente. O plano de Adam McShane estava claro em sua mente, tudo que ele tinha que fazer era entrar na conversa dele e criar uma história o mais verossímil possível. – Estamos muito ocupados, a Feira no Reino e as outras festividades geram muitas cartas. Principalmente agora que o sistema de rádio não está em pleno funcionamento. Com o cronograma cheio, eu preferi vir a tirar um dos mensageiros oficiais de serviço.

— Você é verde demais para Washigton, talvez fosse melhor que outro mensageiro tivesse vindo – o líder estava visivelmente incomodado, talvez não gostasse do fato de um de seus subordinados ter mandado uma mensagem sem seu comando direto. Acontece que nunca houve mensagem...

— Ele é um adolescente; quanto antes assumir suas responsabilidades como adulto, melhor. Bem sabe que precisamos de homens, não só na Fortaleza – a conversa estava tomando rumo muito profundo e que não deixava Wirt confortável. Os adultos da Zona-Segura tinham um pessimismo que lhe parecia infundado. Mesmo com toda uma sociedade enorme que prosperava, a sombra de um grande perigo oculto sempre os perseguia, cautela de tempos piores.— Wirt é um dos mensageiros mais promissores e nem passou pelo serviço obrigatório, conhece mais da Fortaleza e dos Salvadores do que muitos presentes aqui. Diabos! Ainda não consigo acreditar que esse menino tão competente é filho do velho Malcom.

— E sobre D.C., o que ele sabe?

— Já estudei muitos mapas, escutei histórias – Banner comentou com firmeza, como se aquilo bastasse.

— Ótimo, mas na prática o que você sabe?

— Eu...

— Nada – Caolho o interrompeu. – Assim como todos os outros recrutas. A diferença é que eles receberam treinamento direto, o garoto, não. Se ele vier conosco, vai aprender muito mais do que se estivesse cumprindo serviço obrigatório. Além disso, eu assumo total responsabilidade. Vou cuidar de Wirt e acerto as contas com o pai dele quando chegarmos.

— Não sei... – Richard suspirou, parecendo cansado. Depois de alguns segundos de pura expectativa, o líder assentiu deveras contrariado, e foi como se todos no acampamento tivessem soltado a respiração ao mesmo tempo. – Certo, certo. Já terminamos por hoje. Amanhã acordaremos à primeira luz do Sol e seguiremos viagem.

— Valeu, Caolho. Te devo uma – Wirt sussurrou assim que Martin se afastou o suficiente para não ser capaz escutar.

Uma? – o velho riu. – Você me deve desde que veio a esse mundo, moleque. Eu trocava as suas fraldas, sabia? – foi a vez de Banner rir. Duvidava que Caolho tivesse feito isso, na realidade duvida que ele alguma vez tivesse carregado uma criança no colo, e Wirt era conhecido por ter sido um bebê chato. – Perdi a conta de quantas vezes servi de babá para você. Sua mãe era durona, mas péssima com bebês.

— Ela era durona... – ele concordou. Era em momentos como aqueles, quando se sentia orgulhoso, que o jovem sentia mais a falta da mãe, pois não poderia agradecer por tudo que Rose Banner havia feito por ele, nem deixá-la orgulhosa da pessoa que havia se tornado.

Adam lhe deu uma tapinha nas costas e se afastou, deixando-o sozinho. Um incentivo para que ele continuasse andando e um jeito estranho de conforto também. Falar sobre mortos sempre traz uma sensação estranha. Os olhos que o observavam não pareciam incomodar mais, e ele começou a caminhar para longe de todos.

Até que viu Hanna e soube exatamente para onde andar. Ajeitou a postura e elevou a cabeça para parecer mais adulto, ou pelo menos tentar parecer. As chances de levar mais um “não” da morena eram muito grandes, porém ele não tinha muito a perder. Uma parte dele já se preparava para a patada que levaria, enquanto outra parte tinha esperança de finalmente conseguir alguma coisa com ela. Hanna era alta, tinha a pele bronzeada, cabelos castanhos ondulados e olhos escuros. Mesmo sendo dez anos mais velha que Wirt, ela tinha sido a única garota pela qual ele se interessara, e ele era o único para o qual ela nunca tinha dado importância.

— Wirt! – uma voz familiar o chamou. Banner desviou sem caminho como se nunca tivesse ido à direção de Hanna e se dirigiu até David Rhee. – Você entregou?

— Sim, entreguei – o mensageiro confirmou com ar profissional, sentando-se ao lado de Hesh no círculo onde um pequeno grupo conversava. Com um aceno de cabeça Wirt cumprimentou todos eles: Suki, Wesley, Chad, Nicholas e Peter. – Qual é a daquele gorro?

— Coisa nossa – o rapaz respondeu claramente sem jeito, passando uma mão pelos cabelos.

— O que você faz aqui? – Peter indagou, ou Nicholas; Wirt não soube ao certo qual deles era. Na verdade, eram poucas as pessoas que sabiam diferenciar os gêmeos idênticos. – Vai passar a noite com a gente?

— Não. Não é só isso. Eu vou para Washington com vocês.

— Parabéns! – Suki foi a primeira a se pronunciar, com um sorriso genuíno no rosto. Era uma jovem pálida, de cabelos curtos e olhos puxados. – Você acaba de se tornar a pessoa mais jovem a ir para D.C.

— Hesh, você escutou o que a sua namorada disse? Ela está dando parabéns para um garoto que está a caminho do túmulo – o gêmeo da esquerda comentou em tom de brincadeira, fazendo os outros rirem. Wirt sabia que ele estava dizendo aquilo só para assustá-lo, por isso tentou ignorar a parte que lhe dizia respeito. Mas Hesh não pensava da mesma maneira. Quando Rhee chegara à Fortaleza, as pessoas não deixaram de notar que o rapaz era fisicamente parecido com Suki. Alguns começaram a afirmar que eram irmãos, enquanto a maioria tinha optado por defender que se tratava de um casal e que eles iriam “dar continuidade ao seu povo”. Suki, com seus vinte e cinco anos de experiência, nunca dera atenção para a piada; David, por outro lado, costumava ficar nervoso e tentar explicar que já tinha uma namorada. Aparentemente, ele tinha aprendido que não adiantava nada, pois optou por continuar em silêncio.

— Garoto, você assinou sua sentença de morte vindo com a gente! Não consegue ver o bando de cadáveres que marcham para D.C.? – Chad, o responsável pelos cães, disse com a voz meio macabra na tentativa de assustá-lo.

— Vejo um bando de idiotas.

— Ouviu isso, Nick? O moleque tá achando que é gente – ele gravou mentalmente que Nicholas estava à esquerda e Peter à direita. Wirt cruzou os braços e preferiu ignorar. Quilômetros de vazio separavam a cidade dos muros da Fortaleza, um caminho imprevisível e cheio de perigos. Baixas eram perfeitamente normais e elas acabavam acontecendo eventualmente. Ele tinha ciência disso. – Bem, se você está disposto a morrer com a gente, bem-vindo à equipe!

Nicholas, Peter e Chad pareciam ser pessoas desprezíveis, e talvez fossem mesmo. Wirt sabia que aquele bando, onde quer que fosse, arranjava diversão e confusão. Suki, Hesh e Wesley pareciam destoar um pouco daquele grupo, eram mais sérios e preferiam ficar escutando; enquanto isso, Banner tentava encontrar uma razão para os três estarem ali com os outros. O garoto só acordou de seus pensamentos quando escutou o nome de Hanna no meio das conversas.

— Acho que se você fingir ser eu talvez ela te aceite, irmão – Peter falou para o gêmeo, que não gostou muito do que ouviu.

— Acho impossível imitar a sua burrice.

— Se você realmente pensa que ela é burra o suficiente pra trocar vocês dois, então você é um completo idiota – Wirt falou sem pensar, ignorando o fato de que nem ele mesmo sabia diferenciar os gêmeos. Não gostava de ouvir os homens falando de Hanna daquela forma.

— O que você sabe sobre mulheres? – Wesley indagou.

— O que você sabe sobre mulheres? – Chad devolveu a pergunta, e o outro não pensou duas vezes antes de responder.

— Minha irmã...

— Nem pense nisso – Hesh o interrompeu. A verdade era que, a essa altura, toda a Fortaleza devia saber que Wesley era irmão de Gwendoline Allen, que passara pelo serviço obrigatório havia alguns anos. O jovem falava tanto da irmã que todos, até mesmo Hesh, não aguentavam mais.

— Foda-se. Se ela escutasse as merdas que vocês falam, já teria deixado todos sem dentes.

Dessa vez ninguém objetou. Allen fora uma das melhores recrutas que passaram pela Fortaleza, tanto que o próprio Malcom havia insistido pessoalmente para que ela continuasse na comunidade após término do serviço obrigatório. Certamente sua fama na Zona-Segura não era tão grande quanto a da namorada de Hesh, porém a explicação era muito clara. Enquanto Grace era filha dos lendários Sarah e Rick Grimes, Gwendoline viera do Posto 9, um posto avançado mediano localizado entre o Alto do Morro e Alexandria. Além disso, fazia sete anos que ninguém tinha notícias da irmã de Wesley, enquanto a passagem de Grace pela Fortaleza acontecera havia pouco mais de um ano. Por mais que Grimes fosse uma grande líder, era mais de pensar do que de agir, uma jovem amável e inspiradora; Gwen, por outro lado, nunca recusara uma briga, ao mesmo tempo em que era capaz de ser extremamente habilidosa quando tratava de política, era uma mulher de personalidade forte, inteligente, ousada e impetuosa.

— E a Suki só escutando... – Peter desviou o assunto para a única mulher presente na roda, que, pela cara, não devia estar gostando nada do que ouvia.

— Não vou perder meu tempo discutindo com vocês, bastardos.

Todos ficaram em silêncio diante do olhar mortal da asiática e optaram por permanecer assim. O jantar começou a ser servido e as conversas diminuíram gradativamente quando toda a atenção do grupo de patrulheiros foi destinada à comida. Havia duas opções: uma sopa de legumes e carne desfiada ou carne assada. O garoto optou pela carne e pegou um pouco de pão para acompanhar. A bebida ficara por conta de Chad, uma vez que era amplamente proibido o consumo de álcool em missões. Contudo a regra não era muito seguida, e até mesmo Caolho bebia tranquilamente de seu cantil às vistas do líder.

Wirt se sentia incrivelmente bem naquele ambiente; o frio da noite combinava muito bem com a quietude dos patrulheiros em torno da fogueira. E para completar havia carne da melhor qualidade e pão torrado. Era por esse e outros motivos que ele amava a Fortaleza e, mesmo a milhas de distância, a comunidade ainda estava entre eles, no jeito de agir e falar de todos.

— Essa é primeira missão de muitos de vocês – Adam disse de súbito e todos o observaram com olhos vidrados. – Mas já é a vigésima sexta missão que fazemos para Washington. A maioria de vocês não passava de bebês sujando as fraldas quando fomos pela primeira vez. O próprio Malcom liderava aquela missão, não éramos mais de dez.

Wirt Banner já escutara McShane contar histórias diversas vezes, crescera as ouvindo, cada uma mais diferente e fantasiosa que a outra. A sua favorita era, aparentemente, a única verídica: a Batalha das Vidraças. Acontecera havia dezessete anos, quando Rick Grimes unira as três comunidades para negociar com Negan. O que deveria ser uma barganha pacífica acabara se tornando uma luta estrondosa, na qual ambos os lados tinham trocado tiros e muitas pessoas morreram. Mais tarde, os Salvadores perceberam que o alvo dos Nativos eram as vidraças do Santuário, e não os inimigos em si. Adam estivera lá, atirando de uma janela, quando um estilhaço de vidro atingira e perfurara seu olho, o que justificava seu apelido de Caolho.

— Logo no primeiro dia começamos a notar coisas estranhas acontecendo – o velho prosseguiu. – No começo eram apenas sons de passos, mas nada dizia que eles não podiam ser os nossos próprios passos ecoando nos prédios. Só depois começaram a surgir as sombras nos becos, e alguns começaram a ter a sensação de que estávamos sendo vigiados. Na época, eu podia jurar que tinha escutado sussurros. A certa altura alguém conseguiu ver um deles: era um errante. Tão rápido como apareceu, o bastardo sumiu e ninguém se incomodou em ir atrás dele. Isso explicava os sons dos passos e as sombras, mas não explicava o porquê deles não nos atacarem, muito menos porque eles pareciam sussurrar. Mas isso era um absurdo, por isso a maioria acreditava que era apenas ilusão das nossas cabeças ou até mesmo o vento. Na manhã do quinto dia tivemos a nossa confirmação. Havia nove de nós quando fomos dormir, e só oito quando acordamos. Além disso, todos os nossos suprimentos tinham sido levados. No começo, pensamos que fosse uma brincadeira do Jason, ele era muito disso. Depois de algumas horas percebemos que era sério, então passamos o resto do dia procurando. Estávamos famintos e exaustos no fim da tarde, todos pensando no que faríamos a seguir. Enquanto discutíamos a situação, alguém percebeu que Danny não estava por perto. Bastou uma busca rápida para descobrirmos que ele também tinha sido levado. Malcom decidiu parar as buscas depois disso, e a missão foi dada por finalizada sem nem ao menos chegar ao nosso destino. Durante todo o caminho de volta, os sons de passos, as sombras, os sussurros se tornaram mais insistentes, e nos perseguiram dia e noite. Passamos todo o percurso fugindo de sombras, vendo o perigo a cada canto. Demos a eles o nome de Sussurradores. Jason e Danny nunca mais voltaram, e os Sussurradores nunca mais foram vistos.

Nenhum som foi produzido em seguida, e de repente a noite ficou fria demais. Era possível ver a fumaça úmida que cada respiração exalava, e o vento antes calmo passou a soprar com violência. Ele parece sussurrar... Wirt tentou ignorar os calafrios que percorriam sua espinha e os pelos por todo corpo que a essa altura já estavam totalmente em pé. Desde que chegara ao acampamento, o garoto tinha tentado ao máximo parecer um adulto. Naquele momento, todavia, já não era mais capaz de deixar de ser um menininho assustado.

— Isso não aconteceu de verdade – Rebeca retrucou por fim. – É só uma história pra tentar assustar os recrutas.

— Aconteceu, sim. Eu estava lá – todos se voltaram para Richard Martin, sentado tranquilamente em um canto mais afastado da fogueira. Banner engoliu em seco, pensando se não seria uma armação dos dois. Não, não era. Martin não era do tipo que brincava: se ele confirmara a história, isso a tornava verídica.

Levou algum tempo, no entanto os murmúrios voltaram a se espalhar pelo acampamento, embora não da mesma forma que antes. De alguma forma, era como se estivessem sendo vigiados. Pelo menos era assim que Wirt se sentia, e parecia que os outros também, a julgar pelos olhares de esguelha que lançavam para a noite e pelas vozes relativamente mais baixas que antes. E foi com essa sensação que o jovem Banner foi dormir.

O dia seguinte se iniciou com a primeira luz do Sol. Phill retornou para a Fortaleza e o restante continuou a viagem. Os patrulheiros seguiram durante toda a manhã, na maior parte do tempo em silêncio absoluto. Só era possível ouvir o som dos cascos dos cavalos batendo incansavelmente contra o asfalto e o vento. O vento que, para Wirt, estava sussurrando, como se tentasse dizer algo. Tudo ficara pior depois de terem ultrapassado as cercas da Zona-Segura. A partir desse momento, era como se estivessem de fato por conta própria.

Martin falou muito e deu algumas recomendações que deveriam ser seguidas à risca, além de ter vigiado Banner de perto. Pelo menos eu posso ver que ele está vigiando... Wirt tentou permanecer atento, porém simplesmente não conseguia. Seu real foco estava nas sombras das árvores retorcidas e no matagal. Ao final da tarde havia aprendido uma coisa ou outra sobre as ruas de Washington que realmente pareciam importantes, e o restante entrara por um ouvido e saíra pelo outro. Se tivesse memorizado as falas do líder, estaria com ele nos arredores de D.C. verificando construções que poderiam servir de abrigo para o grupo. Inicialmente, não ter sido selecionado pelo líder o deixara chateado. Alguns minutos de reflexão o mostraram que era um sentimento infantil: o simples fato de ter sido aceito por Martin já significava muito. Além disso, de todas as pessoas elecionadas, apenas Nicholas e Linda eram recrutas.

Ao todo foram oito patrulheiros que saíram do acampamento improvisado depois do almoço ralo. Richard fora à frente com Janet Mackenzie ao seu lado, já que ela era uma antiga moradora da cidade e conhecia a região. Sem comandante e sem guia, tudo que o restante que ficara para trás poderia fazer era esperar. Adam dispensara todos e liberara qualquer tipo de atividade, inclusive o consumo de álcool e tabaco, desde que não se afastassem do acampamento. Wirt se juntara a um grupo de pessoas que jogavam beisebol e conversam sobre política.

Sem muita coisa para fazer, os patrulheiros inventavam o que podiam para passar o tempo. Adam continuava contando outras histórias, de longe menos assustadoras que as da noite em que Banner encontrara os missioneiros. Um pequeno grupo liderado por Tara Ridley jogava baralho, outros apenas conversavam, e o restante jogava beisebol. Duas dessas atividades eram proibidas, contudo a Fortaleza nunca fora de seguir regras à risca. Não que o pai de Wirt Banner não tivesse tentando, entretanto um dia ele simplesmente desistira de lutar contra atividades tão banais e que já faziam parte da vida de muitos dos habitantes da comunidade. Algumas pessoas dizem que é a velhice, mas meu pai sabe reconhecer uma batalha perdida.

As regras do esporte foram moldadas conforme o tempo passava e a disponibilidade de recursos. Assim, o mesmo jogo poderia ser bastante diferente se comparadas as formas com que era jogado em comunidades distintas. O beisebol que o mensageiro jogava no momento era mais próximo do jogo da Fortaleza, embora tivesse sido adaptado para a situação na qual se encontravam. Havia três bases e a defesa era disposta entre o triângulo, o taco nada mais era do que uma arma branca que eles tinham trazido para missão. Hesh naturalmente fora escolhido para ser o árbitro, não só por ter um dos melhores assobios, mas também por ser o mais confiável de todos. O jeito certinho dele garantia que Rhee não favoreceria nenhum dos dois times.

O time de Wirt estava no ataque. Enquanto Darla rebatia, o restante da equipe assistia ao jogo do lado de fora, torcendo e conversando. O assunto, no momento, era a distribuição de recursos na Zona-Segura. A falta de alimentos na Fortaleza estava se tornando cada vez mais comum nos últimos tempos, e alguns chegavam ao ponto de afirmar que seria mais fácil viver do lado de fora do que depender da comida que os Nativos mandavam periodicamente. Wirt sabia pouco sobre a guerra, mas sabia que muitos Salvadores ainda não tinham esquecido o que acontecera naquela época. No passado, eles obtiveram recursos pelo uso da força, recebendo metade do que as outras comunidades tinham sem muito esforço. Com a morte de Negan e posterior derrota dos Salvadores, as coisas tinham mudado muito. Desde então, a Fortaleza era encarregada de proteger o território e treinar os jovens para este fim, recebendo recursos das demais comunidades em troca. Claramente, não era uma mudança muito favorável para os Salvadores, que tinham passado de líderes a subordinados.

O apelido pejorativo de Nativos fora dado aos inimigos ainda durante a guerra, e fazia menção à antiga colonização dos Estados Unidos. O fato de continuar sendo usado depois de tanto tempo deixava explícito o rancor guardado pelos derrotados na guerra. As três comunidades um dia foram colônias que Negan explorara de maneira injusta, mas o tempo passara e todas regalias foram perdidas com a morte do perverso líder. Mesmo os que gostavam da nova liderança admitiam que no passado a vida tinha sido muito mais fácil. E tudo isso se somava ao fato de que, nos últimos tempos, os Nativos mandavam menos suprimentos para a Fortaleza.

Mas não era só por comida, muito menos pela derrota na guerra em si. Acima disso, havia tudo que acontecera depois da Guerra Total, o lado que os Nativos esqueceram, ou pelo menos preferiam ignorar. Certa vez Malcom dissera ao filho que eram os vencedores que contavam a história; ao longo de seus quinze anos de vida, Wirt tivera muitas oportunidades de confirmar isso. Reino, Alexandria e Alto do Morro tinham sido vítimas do Santuário, isso era inegável, contudo eles tinham vencido, integrado a nova Fortaleza à Zona-Segura e, depois disso, a comunidade tinha sido humilhada continuamente ao longo dos anos. Pelo menos era isso que se dizia por aí. Embora Banner achasse as palavras usadas muito fortes, não podia discordar delas. Afinal, os Salvadores treinavam os filhos dos Nativos e defendiam todo o território, recebendo em troca carroças escassas de alimentos mensalmente. E, não obstante, era óbvio que, depois de tantos anos, os outros ainda hostilizavam os Salvadores. Isso ficava claro nos olhares da maioria dos Nativos que chegavam para cumprir o serviço obrigatório, olhares de medo, curiosidade e, muito frequentemente, desprezo. A situação era pior para Salvadores que se aventuravam nas outras comunidades, que não costumavam ser bem recebidos.

Apesar disso, o indício mais óbvio dessa exclusão era no âmbito político, quando os líderes do Reino, de Alexandria e do Alto do Morro se reuniam para tomar decisões importantes sem consultar o líder da Fortaleza.

— Mais tarde tem – Lewis comentou, piscando indecorosamente para Hanna.

— Um soco na sua cara – a mulher completou baixinho. Apesar disso, Wirt foi capaz de ouvir e perceber pela voz dela como aquilo a incomodava.

— Por que você deixa eles fazerem isso? – a indignação fez com que ele falasse sem pensar. Normalmente, o mensageiro levava horas se preparando psicologicamente e escolhendo as palavras certas para se dirigir a Hanna. Naquele momento, todavia, tinha sido impossível evitar. O fato de Hanna já ter ficado com uma dúzia de homens na Fortaleza não significava que os outros podiam tratá-la como um objeto.

— Não vale à pena. Acredite, eu não gosto nem um pouco disso, mas também não vou perder o meu tempo com essa gente. Deixe eles falarem.

— Mas... Olha o jeito como ele te trata! Não é justo!

— Esse é o meu segredo. Eu os deixo pensarem que estão no comando, mas, no final, são eles quem se arrastam atrás de mim – Hanna sorriu. – Eu já escutei esse tipo de coisa tantas vezes que isso não me machuca mais. Palavras são vento, Wirt.

O garoto assentiu, e a mulher saiu para rebater, deixando-o com seus pensamentos. Banner nunca a admirara tanto quanto naquele momento. Já a achava perfeita com a luz do Sol em seus cabelos ligeiramente encaracolados e seu sorriso encantador, e já a adorava pelo simples fato de ter escolhido a Fortaleza como lar, apesar de todas as restrições. Mesmo sabendo de tudo o que pensavam e falavam dela, Hanna não se deixava abater. E, ao contrário da falsa impressão que os outros tinham, Wirt sabia que ela não era uma mulher fácil e superficial. Hanna não se rebaixava a homens como Lewis, e isso também o lembrava sua mãe, mesmo que só um pouco.

Rose Banner algumas vezes dissera ao filho que os homens sempre acabavam precisando das mulheres algum dia. Desde cedo o garoto tinha aprendido a respeitá-las, o que era diferente do pensamento ligeiramente machista presente na comunidade. Wirt ainda se lembrava do dia em que a mãe lhe falara da diferença entre homens e mulheres: eles eram muito resistentes, porém, quando quebravam, era difícil que voltassem ao normal; elas, por outro lado, podiam ser mais frágeis, contudo eram capazes de se reerguer depois de cair, às vezes até mais fortes.

O mensageiro ficou observando enquanto Hanna jogava e, minutos depois, era a sua vez de rebater. Assim que se levantou, Banner percebeu que suas mãos começavam a suar. Lentamente, ele caminhou até Hanna para pegar o taco, pensando se ela perceberia seu nervosismo.

— Boa sorte, Wirt – ela sussurrou, e completou piscando discretamente.

Foram três palavras que fizeram com que o garoto simplesmente se esquecesse de onde estava. Menos de dois segundos, mas para ele cada fração de segundo já valia mais que qualquer outra coisa. Wirt queria voltar no tempo, pará-lo naquele instante e guardar o precioso momento em uma garrafa para que nunca fosse perdido em meio às suas várias memórias. Hanna havia acabado de lhe desejar boa sorte e piscado para ele. Algo totalmente inesperado e mais que bem-vindo. Ela nunca tinha sido tão legal assim com ele... A esperança é a última que morre, e agora ela está mais viva do que nunca.

— Porra, Wirt! – o arremessador gritou de súbito, e Banner sequer foi capaz de reconhecer quem era. Estava tão distraído que nem fazia ideia do que havia ocorrido. – Olha a merda que você fez!

Só então ele se deu conta dos olhares inquisidores que o miravam e do que tinha acabado de fazer. Em sua euforia descontrolada, o jovem não se dera ao trabalho de prestar atenção no jogo, muito menos rebatera a bola quando ela havia passado ao seu lado...

— A culpa foi sua, você busca – alguém atrás dele falou, e todos concordaram.

Já temendo o pior, Wirt olhou para trás em busca da bola, e constatou que ela tinha caído na floresta. Uma floresta densa e escura, onde a luz solar não entrava. Uma floresta repleta de lugares onde algo, ou alguém, poderia se esconder facilmente. Ele engoliu em seco e começou a caminhar lentamente até lá, imaginando o que Hanna deveria pensar dele depois daquilo.

Conforme se aproximava da floresta, o ar parecia ficar mais denso e o taco em sua mão, mais pesado. Não tão pesado quanto a Lucille. Banner ainda se lembrava do dia em que segurara o taco enrolado com arame farpado, embora, na época, não tivesse sido mais que um menino. Wirt tinha sido uma criança muito curiosa e, como tal, nunca entendera a razão de um taco de beisebol ficar pendurado na parede da sala de seu pai. Essa curiosidade havia sido o que motivara o menino a entrar sorrateiramente na sala durante a noite, subir em uma cadeira e tirar a antiga arma de Negan da parede. Tinha sido uma experiência diferente e, durante alguns minutos, o garoto tivera a possibilidade de ver e tocar a tão temida Lucille, passar os dedos pelo arame farpado que a cobria e observar as manchas de sangue ao seu redor. Todavia aquilo não durara muito, pois logo depois Malcom havia encontrado o filho e tirado o taco de suas mãos. Naquela mesma noite, o líder da Fortaleza lhe explicara o motivo de não ter queimado Lucille, como muitos tinham sugerido no início.

Mesmo após a rendição, os Salvadores não se mostraram muito abertos a negociar com os Nativos. A guerra não tinha terminado com a morte de Negan, como muitos chegaram a pensar no começo, e, mesmo depois do seu fim, as coisas não foram fáceis. Malcom tivera muitas dificuldades nesse meio tempo, tentando se impor diante dos Salvadores e convencê-los de que deveriam trabalhar ao lado de seus antigos inimigos. E todos os problemas praticamente desapareceram quando Banner fizera seu famoso discurso diante de toda a comunidade. Mas o que tinha comovido a todos não fora o discurso em si, e sim o fato de que Malcom o fizera empunhando Lucille. Depois daquele dia, o homem percebera que aquele taco de beisebol exercia certa influência sobre os Salvadores. Era a posse da arma que trazia o poder. Com ela seu pai podia provar que Negan não estava mais entre os vivos e que eles tinham um novo líder.

Wirt parou de divagar sobre a história da Fortaleza, por mais que ela o fascinasse, e seguiu seu caminho com os olhos fixos nos arredores. Estava em um local desconhecido e distanciava cada vez mais do acampamento. Cercado pela mata fechada, ele estava sozinho. Um grande alvo para vivos ou até mesmo para os mortos. Por mais que agora eles não passem de histórias para assustar crianças. Havia também uma terceira possibilidade, e Wirt Banner preferia não pensar nela.

Não que o jovem estivesse com medo da história que Adam Caolho, uma vez que elas dificilmente eram verídicas e possuíam um único objetivo: espantar recrutas. Mas Richard Martin confirmara as palavras do velho... De qualquer forma, mesmo sendo reais, os Sussurradores eram um fato ocorrido havia mais de uma década e era muito improvável que tivessem permanecido nos arredores de Washington. Contudo a racionalidade não impedia o mensageiro de se sentir como um dos personagens da história de McShane...

Wirt suspirou de alívio quando finalmente viu a bola encostada no tronco de uma árvore. Abaixou-se para pegá-la e refez o mesmo caminho, dessa vez aumentando a velocidade. Naquele mesmo instante ouviu um barulho. Não sabia dizer ao certo o que era, talvez passos, talvez galhos se quebrando, um trote de um animal ou até mesmo uma voz. Instantaneamente levantou com o taco em posição de ataque para acertar qualquer coisa que aparecesse. Longos segundos se passaram e nada aconteceu. Por fim ele decidiu que era apenas paranoia de sua cabeça e voltou correndo para o local do jogo. Quando retornou, encontrou o acampamento da mesma forma que deixara.

— Finalmente! Resolveu cagar no mato, Wirt? – Chad zombou, tomando a bola das mãos dele.

Banner não teve tempo de responder. No mesmo instante, um patrulheiro gritou alguma coisa e, mesmo sem saber o porquê, todos correram até a outra extremidade do acampamento para ver o que era.

E encontraram Edward Potts ajoelhado no chão, quase caindo, ensanguentado e com o corpo coberto de poeira. Seu rosto transmitia determinação, mas os olhos... Os olhos do homem eram pura agonia.

— Eles estão mortos!