Remember Me

Renascimento II


Aquele sorriso, repleto de cinismo e malícia, refletia em seus olhos.

Doía seu peito, bem mais que o corte que era feito em sua mão, a qual permanecia a segurar, firmemente, aquela lâmina. Por que tudo aquilo estava acontecendo? - o rei de Sindria perguntava a si mesmo, a angústia e o espanto estampados em seu rosto.

— Se eu puxar mais essa espada, vai acabar perdendo alguns dedos! - ameaçou.

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— Eu não quero machucar você, Ja’far. - Sinbad praticamente sussurrou. - Solte essa espada… agora.

Se empurrasse o cabo daquela arma, tão próximo ao peito de seu conselheiro, com certeza o deixaria sem ar e o desarmaria. Mas não queria feri-lo de forma alguma.

Sinbad se surpreendia com o fato de Ja’far estar com a guarda tão aberta. O ex-assassino que conhecia era extremamente analítico e todos seus movimentos eram calculados. Jamais cometeria um erro tão amador.

— O que você vai fazer? - o alvo lhe desafiava. - Se tem como, faça! Por que não tenta me matar? Não tem…

— CALA A BOCA!

O rei vociferou, conseguindo assustar até mesmo o destemido assassino.

— EU NÃO AGUENTO MAIS VER VOCÊ AGIR ASSIM!

— Eu vou te matar e não vai mais ter que suportar nada! - retrucou Ja’far.

— CHEGA!

As portas duplas foram bruscamente abertas.

Os generais chegavam ali, preocupados ao ouvir os gritos de sua majestade. Surpreenderam-se mais ainda ao encontrar Ja’far ameaçando seu rei com sua própria espada.

— O que está acontecendo, Sinbad?! - Hinahoho se aproximou.

— J-Ja’far-san, o que está fazendo? - Sharrkan piscou, chocado com o que via.

Os olhos verdes encontraram o príncipe de Heliohapt.

! Que é você para se dirigir assim a mim?!

Foi instintivo dar um passo para trás. Afinal, a maioria dos generais nem ao menos chegou a conhecer o antigo Ja’far, assassino, que apenas Hinahoho, Drakon e Sinbad conheceram e que se parecia tanto com aquele rapaz que estava ali, agora.

Sempre foram tratados e até mesmo cuidados por Ja’far com tanta ternura. Era chocante não encontrá-lo com sua personalidade tão materna e dócil, apesar de rígida.

— O que… O que está acontecendo com o Ja’far-san? - Pisti gaguejou ao perguntar, assustada ao encará-lo daquele jeito. Ela agarrou com mais firmeza o buquê de flores que trazia em mãos.

Sinbad não sabia o que responder.

Apenas encarava o alvo que permanecia indiferente à presença de seus amigos.

Foi quando Ja’far sentiu uma pesada mão segurar seu pulso. Alarmado ele olhou para cima e viu aquele homem, tão forte, de repicados fios ruivos.

— Ja’far-san, solte a espada do Sin-sama, por favor.

A voz baixa e tão comedida pediu, porém os dedos que seguravam o fino braço pareciam exigir que fosse atendido. Aplicando um pouco mais de pressão, Masrur começou a torcer o braço do alvo, o suficiente para que soltasse aquele cabo.

— ARGH!

Assim que Masrur o soltou, Ja’far recolheu a mão, levando-a ao centro do peito e massageando o próprio pulso.

— Masrur! - Sinbad chamou num tom de advertência, preocupado ao ver Ja’far sentir dor. - Oe, Ja’far! - ele se voltou ao seu conselheiro. - Está doendo muito?

— Não se preocupe. Eu apenas apliquei um pouco de pressão para que soltasse a espada. - o fanalis explicou.

— COMO OUSA FAZER ISSO COMIGO?! - Ja’far praticamente cuspiu para Masrur. - NÃO ME TOQUE! - exclamou ele ao ver Sinbad se aproximar.

Os demais estavam completamente estarrecidos ao ver aquela cena. Definitivamente, aquele que havia voltado ao palácio, não era Ja’far.

— O que está acontecendo, majestade? - Sharrkan estava angustiado.

Não houve resposta, mas não era como se seu rei não tivesse escutado sua pergunta. Ele realmente não tinha como respondê-lo, já que nem o próprio Sinbad estava conseguindo se situar.

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— Melhor irmos embora por enquanto! - Yamuraiha se manifestou. - Majestade, acho que deve descansar e vamos pedir para trazerem um chá para o Ja’far-san se acalmar e uma boa comida. Ele deve estar com fome também.

— Não quero nada que venha de vocês, sua vagabunda ridícula!

— JA’FAR! - Sinbad imediatamente exclamou. Todos os outros chocados com o que ouviram. - Não fale assim com a Yamuraiha!

A maga, por sua vez, apenas se recolheu. Os olhos azuis arregalados marejaram um pouco.

— Como pode falar assim com a Yamu, Ja’far-san? - Sharrkan indagou.

— Quer o quê?! - Ja’far cruzou os braços. - Essa aí não é uma puta do seu harém, Sinbad? Olha como ela exibe esses peitos enormes! Que vergonha!

— Ja’far, não vou permitir que ofenda nossos amigos! - foi a vez do rei falar num tom mais sério.

— Ja’far-san, foi a Yamu-san que deu a ideia de irmos colher flores cedo para te trazer hoje! São suas favoritas! - Pisti se aproximou da cama. - Não trate ela assim. Nós gostamos muito de você!

Os olhos do conselheiro encontraram a pequena jovem que estendia aquele belo buquê, tão cheio e arrumado.

Ja’far cerrou os punhos, encarando aqueles que, tão aflitos, esperavam uma reação.

Por que pareciam se preocupar tanto com ele?

Aquilo era tudo parte do teatro de Sinbad, tinha certeza.

Voltando a encará-los, Ja’far sentiu sua cabeça latejar. Repentinamente, ao seu olhar, aqueles rostos não lhe pareciam mais estranhos. Toda a revolta e o ódio que sentia se dissolvendo em confusão.

Aquelas pessoas… Ele conhecia aquelas pessoas, eram seus amigos.

Aquela maga que chorava sendo amparada por um compreensivo…

— Dra… Drakon… - ele balbuciou, inconscientemente apontando o homem de aparência bizarra.

— Ja’far? - Sinbad piscou. Ele estava se lembrando? - Consegue se lembrar? - indagou. - Lembra-se de nós?

Levando uma mão à fronte, Ja’far viu todo aquele quarto rodar.

E antes que caísse para trás, Sinbad foi mais rápido e o apoiou em seu peito.

Aquele perfume…

— Ja’far, oe! O que aconteceu?!

— Ja’far-san!

Os generais observavam preocupados, aproximando-se daquele que tanto os repudiava até então. Aquele que havia lhe desarmado abanava seu rosto com a mão. Ele sabia seu nome. Masrur. - ele repetiu em pensamento, incapaz de proferi-lo.

Como doía! Muito mais do que quando tinha aqueles lapsos em Kou.

Sentia-se sufocar enquanto aquela forte pressão em sua cabeça aumentava.

Sinbad sentiu aquela fina mão se agarrar às suas vestes. Ja’far puxou o tecido branco, o máximo que pôde - o que não era muito.

— S… Sin…

— JA’FAR! OE, JA’FAR!

—--------xxxxxx---------

Koumei se abanava com seu leque. Fazia mais calor que o habitual, afinal, Kou era um país extremamente úmido e de clima ameno.

Admirando aquele amanhecer do alto da varanda principal do palácio ele se surpreendeu com a chegada de um desolado Kouen.

Seu irmão deixou o cavalo ali mesmo na entrada, sem ao menos selá-lo, ficando isso a cargo dos demais servos que o acompanhavam e, silenciosamente, respeitavam os sentimentos do primeiro príncipe.

O mais jovem estava surpreso. Então ele havia passado a noite toda à procura de Ja’far?

Ele adentrou o palácio e, para sua surpresa, logo encontrou a imperatriz.

A bela mulher exibia um belíssimo sorriso quando começou a acompanhá-lo.

— Temos assuntos para resolver hoje, meu querido Kouen!

— Estou com muitos problemas, não tenho tempo! - ele retrucou de maneira áspera.

Franzindo o cenho por um instante, Ren Gyokuen retomou o falso sorriso de sempre.

— Mas meu amor, temos que decidir o que farem…

— POR QUE VOCÊ NÃO CALA A BOCA?!

Ele exclamou, interrompendo seu caminhar para se voltar à tia e madrasta.

Os olhos azuis enormes, assustados com tamanha audácia. Os servos ao redor igualmente espantados com a ousadia do primeiro príncipe.

Kouen então bufou e seguiu sozinho. Seu irmão mais novo acompanhando tudo de perto.

— Peço desculpas, hahaue-sama. Meu irmão está num momento delicado.

Curvando-se, Koumei se retirou para seguir aquele homem que marchou até seus aposentos, rápido o suficiente para descontar sua raiva em tudo o que havia pela frente.

Arremessou um jarro, o qual se estilhaçou em mil cacos. Chutou a mobília, a qual ficou revirada, e amaldiçoou o nome de Sinbad quantas vezes pudesse.

— Meu irmão e rei, o que significa isso?!

— AQUELE MALDITO NÃO ESTÁ NO PAÍS! ELE LEVOU JA’FAR!

Parecia óbvio, mas Kouen fez questão de falar. Precisava pôr para fora aquele turbilhão de sentimentos ou ia explodir. Já estava explodindo.

— Que seja! Ao menos o Sinbad não quis um confli...

Koumei foi interrompido quando seu irmão mais velho puxou suas vestes e o prensou na parede. Os olhos rubros como os de Kouen arregalados ao se ver atacado assim por ele.

— EU QUERO O JA’FAR DE VOLTA, KOUMEI! Use seu djinn! Eu preciso chegar a Sindria!

— Está louco? N-não posso lhe enviar numa distância tão grande…

— INÚTIL!

Kouen o soltou e, afoito, chutou um enorme jarro que havia no canto do quarto.

Seu irmão não sabia o que responder e, de fato, estava sentindo medo. Mas precisava enfrentá-lo e dizer a verdade, que Kouen estava enlouquecendo em nome de uma paixão doentia por um assassino asqueroso.

Reuniu fôlego para se pronunciar, mas foi interrompido pelos passos que se aproximavam. Dois guardas surgiram.

— Com licença, altezas! - um deles falou quando ambos se curvaram. - Kouen-sama, já começamos os preparativos!

O primeiro príncipe nada respondeu. Apenas assentiu enquanto tentava se acalmar.

— Do que estão falando? - curioso, Koumei se fez ouvir.

— Estamos indo para Sindria! - afirmou um determinado Kouen.

—--------xxxxxx---------

Sinbad deixou seus aposentos na companhia de Hinahoho, que afagava seus ombros.

Encontraram os generais que ficaram ali, no corredor, enquanto Ja’far era atendido. Eles não hesitaram em se amontoar em volta de seu rei.

— Como ele está?! - Pisti perguntou.

— Ele vai ficar bem!? - Sharrkan a acompanhou.

O moreno encarou os olhares preocupados de seus amigos. Foi quando, suspirando pesado, reuniu forças para falar.

— Ele… vai melhorar.

— O que aconteceu com ele? - foi a vez de Masrur indagar.

— Foi uma situação muito estressante e Ja’far está muito confuso e frágil. No fundo, bem no fundo, ele se lembra da verdade, mas parece que algo está impedindo ele. - ele cruzou os braços, meio que abraçando a si mesmo. - Precisa só de descanso.

— Quer dizer que ele vai se recuperar logo?! - Pisti perguntou.

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— Ao menos sabemos que é possível que ele se lembre de tudo. - Sinbad parecia mais aliviado. - Vamos mantê-lo calmo e tentar fazer com que ele se lembre de tudo aos poucos. Podem pedir a Pipirika que desmarque meus compromissos?

— Ótimo! Assim vai descansar direito também! - Hinahoho cruzou os braços.

— Não, eu vou ficar cuidando do Ja’far hoje…

— Nem em sonho. - foi a vez de Drakon se manifestar. - Precisa descansar, Sinbad! Ja’far finalmente está aqui e pode ficar tranquilo.

— Eu preciso estar ao seu lado quando ele acordar…

— Não se preocupe. Vamos tomar conta dele. - Masrur se prontificou.

Parecia não ter escapatória. Todos seus generais estavam bastante preocupados com o fato de estar aflito e dedicado a Ja’far desde seu desaparecimento. Não podia negar que eles estavam certos, mas como temia deixá-lo sozinho.

— Vá para o quarto do Ja’far-san descansar! - orientou Yamuraiha dando a volta em seu rei para empurrar suas costas. - Vai ficar tudo bem!

—--------xxxxxx---------

Koumei não podia acreditar no que estava ouvindo. Se pensava que Kouen estava louco, agora tinha certeza de que seu irmão havia dado um passo além da loucura.

Precisava ser sensato, mas ao mesmo tempo rígido. Ele estava descontrolado.

Apenas esperou a saída dos guardas para poder falar com liberdade e, o mais importante, não desacatar a decisão do príncipe diante de seus servos.

— Meu irmão, está louco! Não pode ir para Sindria assim!

— Eu sei muito bem do que preciso! - ele se sentou à beira da cama, cotovelos apoiados nos joelhos abertos - Eu preciso do Ja’far AQUI! - e apontou o lugar onde estava.

O mais jovem estava indignado diante daquela insinuação. A mão que segurava o majestoso leque tremia.

— Q-Que horror! - chegou a gaguejar. - Só quer aquele homem pelas vulgaridades e luxúria que ele o proporciona?

Aproximando-se, Koumei se ajoelhou, ficando entre as pernas do ruivo.

Ergueu o rosto para encará-lo, os olhos marejados.

— Meu irmão… Há tantas concubinas aqui e… - suas bochechas foram, lentamente, tomando o tom de seus cabelos. - e… se por acaso está desejando um homem…

A mão livre de Koumei deslizou pela virilha do mais velho.

Espanto e repulsa se misturaram na expressão de Kouen, o que fez seu irmão tremer dos pés à cabeça.

— O QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO?!

Não houve um segundo de hesitação quando o primeiro príncipe estapeou Koumei.

Esse, por sua vez, estava perplexo. Os olhos arregalados e a vermelhidão do tapa recebido se confundindo com o rubor do constrangimento. Seu coração batia tão acelerado, afinal, daquela situação poderia encontrar o alívio que buscara desde a adolescência, quando se descobriu apaixonado pelo mais velho, não? - Ledo engano.

— Você… é meu irmão, Koumei! Que… que absurdo! Isso é monstruoso!

Evitando encará-lo, Koumei não queria encontrar aquele rosto que exibia o asco que Kouen sentia dele, do amor e do desejo que sentia por seu próprio irmão.

“Monstruoso”. Era assim que Kouen definia aquele sentimento?

— Agora entendo porque não aceitava meu relacionamento com Ja’far! - impiedoso, Kouen prosseguiu.

Ainda chocado, Koumei sentia o arrependimento lhe corroer. Havia contido aquele sentimento por tantos anos e agora colocara tudo a perder. Afinal, mesmo que Kouen não o amasse da mesma forma, tê-lo ao seu lado, sendo considerado, era o suficiente para que se sentisse feliz.

— Foi você quem envenenou o chá do Ja’far, não? - ele se levantou.

Era como se o mundo desmoronasse sobre seus ombros. Sua expressão, condenatória, eliminava a necessidade de uma explicação. A resposta estava dada.

— Como foi capaz? - Kouen balançava a cabeça, estarrecido ao concluir toda a verdade. - Tudo isso para saciar seu ciúme doentio?! Eu tenho nojo de você!

— Por favor, meu irmão! - ainda ajoelhado, Koumei se sentia minúsculo daquele homem tão altivo. Agarrando-se as suas pernas, suplicou. - Me perdoe! Esqueça! Esqueça o que disse! E… eu errei, eu sei!

— Já mandei sair daqui! E saia agora se não quiser que eu mande os guardas! O que eu devia fazer era mandar executar você!

— Meu irmão e rei, não! - Koumei chorava como Kouen não via desde a infância.

— Já chega! Quando voltarmos, Ja’far vai decidir comigo o que faremos com um “assassino nojento” como você.

Usando as mesmas palavras que Koumei usava para se referir ao conselheiro de Sindria, Kouen desferiu o golpe de misericórdia.

Desvencilhou-se das mãos que agarravam seus joelhos e marchou para fora daqueles aposentos, deixando ali um desolado e perdido Koumei.

—--------xxxxxx---------

Abriu os olhos lentamente. Sua cabeça ainda doía tanto!

Fazendo um pouco de esforço para se levantar, Ja’far podia ouvir as vozes que iam se dispersando, do lado de fora daquele pomposo quarto.

Sentado naquela enorme cama, ele olhou ao redor e reconheceu aquele lugar. Tivera tantas vezes ali, tinha certeza. Assim como tinha certeza de que conhecia cada uma daquelas pessoas que estavam ali há pouco, apesar de não saber detalhes sobre eles.

O buquê que aquela jovem com aparência infantil trazia tinha sido depositado em um belo jarro sobre uma cômoda. Todos pareciam tão preocupados, por mais que os destratassem.

Foi quando sentiu seu peito se comprimir. Que sensação era aquela? Remorso?

Balançando a cabeça violentamente, como se fosse capaz, com aquela atitude, de espantar tais pensamentos, Ja’far tentava retomar o foco. Olhando por aquela janela, podia ver, ao final daquela ilha, apenas o infinito mar azul. Estava tão longe de Kou. Tão longe dele.

— En… - as mãos finas se agarraram aos lençois que o cobriam até o colo.

— Podem deixar que fico com o Ja’far-san agora. - ele ouviu a voz que vinha do corredor. - Só vou buscar algo para ler.

— Promete não demorar? Melhor ficarmos até você voltar então.

— Ah, relaxa! Ele está dormindo!

Quando as vozes cessaram, ouviu os passos se distanciando. Era o momento ideal, pensou.

Ja’far pôs as pernas para fora daquela cama e só naquele momento percebeu que suas roupas tinham sido trocadas. Diferente das luxuosas vestes que Kouen havia lhe dado, ele vestia agora uma fina blusa de algodão e uma calça do mesmo tecido. Cerrou os punhos, pensando que aquele homem podia ter lhe visto de alguma forma inconveniente.

Mas não havia tempo para pensar naquilo.

Caminhou pé-ante-pé até aquela porta e a abriu.

Colocando apenas a cabeça para fora ele viu o longo corredor completamente vazio. Ótimo!

Com um sorriso em seu rosto, ele caminhou por toda aquela área. Presumiu que aquela era a ala de convivência do palácio, já que, àquela hora, não havia ninguém por ali. As portas estavam fechadas, exceto uma. Mal ele imaginava que estava adentrando seus próprios aposentos.

Um quarto amplo, um pouco menor do qual havia saído. Perfeitamente arrumado, com poucas coisas sobre as cômodas. A pessoa que devia cuidar dali devia ser bastante analítica, pensou, enquanto se sentia bastante agradado com aquela decoração.

Uma larga cama havia no centro daquele lugar. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi o que estava sobre ela.

Aquele homem. O rei de Sindria.

Ele estava completamente nu, adormecido. Um fino lençol cruzava sua cintura e cobria as partes íntimas, mas a transparência era o suficiente para que Ja’far visse absolutamente tudo.

A pele pálida ficou mais vermelha que o enorme carpete que cobria boa parte do assoalho daquele quarto.

Mas ao mesmo tempo em que se indignou ao ver o homem que considerava tão indecente, porque sentia seu coração acelerar? Os olhos pairavam sobre o peitoral bem formado, os músculos dos braços comprimidos pela posição que ele estava.

Inconscientemente, Ja’far soltou mais um botão daquela camisa. Estava tão quente…

Chegando mais perto ele pôde ver os fios púrpuras que formavam ondas as quais contrastavam tanto com a alvura daquela roupa-de-cama.

Ele dormia tão profunda e tranquilamente.

Olhando ao redor ele encontrou as vestes do rei jogadas ao chão, ao lado da cama, e junto delas suas joias e aquela espada. Mas nem ao menos passou pela cabeça de Ja’far cumprir sua promessa, sua vingança. E ele sabia o quão errado estava em ficar ali, apenas a observar aquele homem.

Ao perceber quão absurda era sua posição, Ja’far correu. Saiu daquele quarto como se quisesse fugir não de Sinbad, mas de si mesmo, dos próprios sentimentos que sentia florescer. No que estava pensando? Amava Kouen.

Seguia correndo, não se importando se era visto ou não. A cautela que tinha ao sair do quarto do rei não existia mais quando desceu as escadas e chegou a um movimentado salão. Havia muitas pessoas e escrivaninhas. Todos pareciam empenhados em trabalhar. - Parecia muito com o lugar onde trabalhava em Kou. Talvez seus instintos o trouxeram até ali.

Um tanto quanto desorientado, ele acabou esbarrando em algo, ou alguém. Não soube distinguir até ver a robusta mulher, bem mais alta que ele e de seios fartos. Ela tinha cabelos repicados azuis e belos olhos cor-de-mel. Lembravam tanto sua…

— Mamãe?

Anh?!

Ela piscou, parecendo não acreditar no que via e até mesmo não prestando atenção no que Ja’far havia dito quando abriu um largo sorriso e o envolveu em um forte abraço.

— JA’FAR-SAN! Que bom vê-lo aqui!

Não. Definitivamente aquela não era sua mãe. Claro, ela estava morta.

A moça lhe afastou, ainda o segurando pelos ombros e Ja’far pôde encará-la melhor. Era tão parecida…

— Mas não devia estar na cama?! Soube que o trouxeram ontem pela madrugada, mas não pude vê-lo, adiantando o trabalho meu, seu e da majestade enquanto estavam fora.

Bastante extrovertida, ela falava sem parar e a sorrir.

Mas a apatia e silêncio de Ja’far chamaram sua atenção. Como ela pode esquecer?

— Ah… Eu… Me desculpa, eu acabei me esquecendo que está com um problema com sua memória. Estava agindo normalmente… - sem jeito, ela deu um sorriso amarelo. Ja’far permaneceu a encará-la sem saber o que dizer. - Eu sou a Pipirika. Trabalhamos juntos e eu conheço você desde que era bem pequeno! Não que você tenha crescido muito! - ela riu, tentando ser divertida, mas Ja’far não esboçou reação. - Lembra?

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Ja’far se sentia extremamente confuso. Ela falava com tamanha naturalidade que parecia impossível dizer que estava mentindo, mas como se esquecer das palavras de Kouen?

"Depois que o rei de Sindria armou a emboscada para tirá-lo de mim, Ja'far... Ele fez com que me odiasse. E, desmemoriado como você estava e desamparado, você acreditou nas palavras dele."[1]

— Sinbad mandou que dissesse isso, não? - ele ergueu o rosto para encará-la.

Anh?! Nem vi a majestade hoje! - Pipirika permanecia espirituosa.

— Vocês querem que eu acredite que vivi a vida toda ao lado de vocês… Por que querem isso? - Ja’far questionava completamente angustiado. - Eu vou enlouquecer! O que é mentira? - ele puxava os próprios fios esbranquiçados.

— C-calma, Ja’far-san. - Pipirika se assustou.

— Ele me disse que mentiram para mim, que me obrigaram a coisas terríveis e chego aqui e vejo… algo completamente diferente! Estão tramando esse teatro para me trazerem de volta?! - o tom de voz do conselheiro daquele país subia. - Querem que eu volte a ser um assassino?!

Com aquele vociferar, todos que estavam ao redor se atentaram para o que acontecia. Muitos ficaram surpresos ao ver Ja’far ali e felizes, apesar de assustados com aqueles gritos.

— POR FAVOR, ME RESPONDA! - aos berros ele implorou. - Eu sinto que posso confiar em você! - desesperado, Ja’far segurou as barras das vestes daquela mulher.

— Mas… como poderiamos querer isso, Ja’far-san? - Pipirika estava confusa. - Sinbad foi quem te tirou dessa vida, não lembra?!

— É claro que não! Eu não me lembro de nada! Só que não é justo que eu seja jogado de um lado para o outro e façam esse teatro todo para me manipular! EU NÃO AGUENTO MAIS!

Ja’far exclamou, caindo de joelhos. Viu as próprias lágrimas molharem o assoalho.

Todos ali estavam extremamente apiedados e preocupados com a situação daquele que tanto estimavam, mas ao mesmo tempo não sabiam o que fazer.

Pipirika se agachou e o segurou pelos ombros. Ele soluçava, parecendo uma criança. Sentia pena.

— Ja’far-san… Por favor, você tem que se acalmar e…

— Deixe ele comigo, Pipirika.

Surpreendendo não só Pipirika, como a todos, o rei de Sindria chegava àquela lugar.

Vestindo apenas um roupão branco ele se aproximou de ambos e se agachou, tocando nas costas de seu conselheiro.

— Ja’far, está na hora de conversarmos. - Sinbad sussurrou. - Fique calmo.

Ja’far encarou aquele homem que o tocava com tanta sutileza. Seu olhar exprimia uma preocupação infinita.

Depois que o rei de Sindria armou a emboscada para tirá-lo de mim, Ja'far... Ele fez com que me odiasse. E, desmemoriado como você estava e desamparado, você acreditou nas palavras dele."[1]

A voz de Kouen ecoava em sua mente.

Devia odiá-lo. Era assim que havia lhe persuadido a primeira vez, como Kouen havia lhe contado. Havia se tornado um assassino por culpa dele.

Mas por que se sentia bem ao seu lado? Aquele sentimento que havia o levado a cometer inúmeros erros, ele sabia. Que havia destruído a família de tantos, como daquela moça que tentou até mesmo envenená-lo para se vingar.

— Isso… é uma tortura...

Tomado pelo nervosismo, Ja’far chegou a rir enquanto as lágrimas caíam. Sinbad suspirou, receoso em como se aproximar dele.

— Me diga, Ja’far… O que podemos fazer para que se sinta melhor?

O alvo encarou o rei. Então ele estava disposto a fazer algo?

— Eu quero ir embora… Eu quero ver o En… - ele chorava.

Sinbad se sentia completamente humilhado.

Os demais criados e até mesmo Pipirika evitaram encará-lo após ouvirem o pedido de Ja’far. Era como se fosse o vilão que havia tirado a princesa dos braços de seu amado: o En.

Sinbad cerrou os punhos e mordeu o lábio inferior.

Ao mesmo tempo em que sentia pena e dor ao ver Ja’far aos prantos, parecendo sofrer tanto, ele sentia uma intensa revolta. Sentia raiva, ódio.

— Certo…

E ao dizer aquilo, Sinbad agarrou um dos braços daquele que era tão mais fraco que ele. Não teve dificuldade em erguê-lo.

Ja’far, por sua vez, não acreditava. O rei de Sindria finalmente havia desistido? Devolveria-o para Kouen? Uma alegria crescente surgiu dentro de si quando foi, praticamente, arrastado para fora daquele salão.

Ninguém contestou a atitude do rei, inclusive, se perguntavam se ele realmente cumpriria o pedido do conselheiro.

Sinbad marchou subindo as escadas. Ja’far se sentia incomodado pela forma como estava sendo conduzido. O moreno segurava com tanta firmeza seu braço que chegava a doer. Aquela atitude era tão atípica. Sinbad era uma pessoa tão delicada.

Para onde estava o levando? Ia esclarecer tudo e pedir para que o levassem de volta, presumiu Ja’far.

Foi quando chegaram de volta aos aposentos reais.

Sinbad não se preocupou em fechar a porta quando adentrou o lugar e, sem pensar duas vezes, arremessou com violência seu conselheiro naquela cama.

— AH!!!

Por um triz, pela forma que Ja’far caiu, não acabara quebrando seu braço. O colchão havia amortecido sua queda. Mas ainda quando estava a se recompor, viu Sinbad se pôr de joelhos sobre aquela cama.

Assustado, ele não soube como reagir quando o rei de Sindria agarrou junto dois pulsos, levando-os para cima de sua cabeça. Os olhos dourados o encaravam fixamente.

— Se sua mente não vai se lembrar de mim, Ja’far… O seu corpo vai!