O assentamento abaixo de si fervilhava de pessoas, correndo de um canto ao outro, em um misto de foco em seus próprios afazeres com outros que exclamavam e suspiravam com a atenção voltada aos céus.

Soluço não conseguia evitar o embrulho no estômago ao retornar para aquele local depois de tudo o que aconteceu. Contudo, os berkianos e os berserkar foram intimados a comparecer na reunião de planejamento dos próximos ataques. E, como ele bem lembrava a si mesmo, ainda não se encontravam em posição de recusar. Astrid e Melequento voavam ao seu lado, assim como Dagur, que finalmente reencontrou desde a última vez que se viram no ninho dos dragões. Ele fora informado dos ocorridos antes de partirem ao local, e assegurou a Soluço que se manteria ao seu lado como o irmão de alma que o considerava ser. Ter o apoio do antigo chefe dos berserkar e novo rei dos Defensores da Asa com certeza seria de grande ajuda naquele poço de serpentes.

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Os quatro pousaram os animais à frente do grande salão, onde os outros chefes os aguardavam não tão pacientemente.

— Armaduras de couro fervido? Armas na cintura? — A voz de Einar ecoou pelo local carregada de insinuação. Em menos de um segundo, toda a paciência de Soluço sumiu e morreu. O olhar que lançou ao homem poderia tê-lo queimado vivo. — Estão esperando algum acerto de contas?

— Sim — Dagur soltou sem um instante sequer de reflexão, e completou com uma risadinha nervosa. Einar enrijeceu os músculos e o encarou, confuso. Aí sim, Dagur disparou uma gargalhada. Seus olhos, porém, pediam por violência.

Astrid sorriu com doçura, sua típica doçura envenenada que os três rapazes bem conheciam, e avançou até parar a poucos centímetros de Einar. Todos os outros também ficaram alertas.

— Nós do arquipélago estamos acostumados a sempre nos preparar para um ataque de dragões ou outras “serpentes” — ela disse e terminou com uma piscadela rápida. Seus olhos o analisaram com desprezo da cabeça aos pés. — Viemos aqui para a reunião de chefes. Não vamos ficar de conversinha, não é mesmo?

— Claro que não — Hilde enfim se pronunciou, com a voz firme, e encarou Einar com impaciência latente. — Vamos começar logo com isso.

Sem mais comentários, um por um, atravessaram as portas do salão. Os dragões os acompanharam como cães de guarda, rendendo olhares desconfiados dos outros chefes, mas nenhum protesto. Ninguém era suicida o suficiente para contestar.

O ar estava quente pela lareira acesa no meio do recinto. Logo à esquerda, uma longa mesa de madeira os aguardava com jarros e copos de barro e alguns pães postos à sua disposição.

Soluço riu por dentro. A hospitalidade era um ponto central da cultura nórdica, e uma pessoa que não recebesse bem os seus convidados certamente não era alguém de honra e não oferecia sua proteção para os que chegavam. A bebida e a comida eram esperadas, claro, mas não deixava de ser irônico ver aqueles homens, que se calaram diante do absurdo feito contra as meninas ou que até mesmo aplaudiram, tentando ser honrados.

Ele mal encostara na cadeira quando Ramond começou a falar.

— A primeira onda de saques já foi feita e com certeza já chamamos atenção dos lordes nativos, mesmo que ainda não o suficiente para um ataque coordenado, como foi previsto. Nossos espólios foram reunidos e distribuídos. Agora, precisamos começar a segunda onda, nas vilas e cidades maiores, com roubos maiores. Antes só conseguimos comida, mas agora vamos encontrar o ouro e a prata.

— Eu já identifiquei o meu local de ataque — Einar comentou. — Fica à leste daqui, um vilarejo maior com alguns soldados. Atacaremos de manhã.

— Oh, é bom tomar cuidado — disse Dagur. — Pelo o que escutei, você está acostumado a lidar com velhos e meninas fazendeiras. Espero que os soldados não te deem muito trabalho.

— Como ousa?! Sabe com quem está falando?

O ruivo gargalhou de novo.

— Não.

— Ele não tem filtro nenhum — Melequento se pronunciou pela primeira vez. — Dagur, o Enlouquecido. Entende? Vai me dizer que é tão sensível assim que não aguenta uma ofensazinha ocasional?

— Vocês nos repreenderam lá fora por ladainha e estão continuando ela aqui dentro — um outro chefe elevou sua voz. Era Agnar, o homem que governava naquele salão. — Ou controlam a língua infantil de vocês ou não serão mais recebidos e vamos cobrar nossa ameaça de antes. Aquela que os trouxe até aqui.

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Curiosamente, era Soluço quem ele encarava. O rapaz deu de ombros.

— Dagur não responde a mim. Ele é um rei e chefe de outra tribo, então não entendi por que está me cobrando, senhor — Soluço respondeu com a maior naturalidade que conseguiu. — Mas peço desculpas por meu primo.

Soluço tentou ignorar o olhar levemente perplexo de Melequento. Com os dedos sob a mesa, gesticulou para que deixasse para lá e conversassem depois.

— Ele só quis reiterar que quanto mais a sério levar os comentários soltos do nosso aliado, mais gastaremos paciência à toa. Só isso. Não creio que foi infantil — continuou. Ao seu lado, Melequento soltou o ar e relaxou a expressão para sua típica cara convencida.

— Podem continuar, não vamos interromper — Astrid completou. — Bem, nós de Berk. Quais os outros planos de saque?

Agnar continuou impassível, porém assentiu, discreto. Os outros ainda permaneceram calados, trocando olhares e alguns cochichos aqui e ali. Com certeza estão achando que somos um bando de crianças, Soluço pensou. Seus dedos fecharam em punho, puxando o tecido das calças. Mal sabem eles que ainda vamos nos livrar disso tudo.

O silêncio foi quebrado de súbito com a voz de Hilde, que soou quase como um estouro naquele momento.

— Eu e meu grupo vamos atacar depois de amanhã em uma cidade chamada Pirn — anunciou. — É grande, ainda mais se comparada com as anteriores. Vai ser o nosso primeiro ataque de maior impacto aqui. Soube que lá há um templo enorme cheio de itens de ouro, e mais ainda escondidos nos cômodos mais internos, se meus informantes estiverem certos. Parece que os cristãos dão um pouco de dinheiro para os seus templos.

Soluço balançou a cabeça, respondendo mais para si mesmo do que para ela. Já tinha ouvido falar desses costumes, apesar de não lembrar bem o nome que davam a esse pagamento.

— E então, chefe Soluço — Ramond o chamou de volta à terra. A voz grave se arrastou, vazia e ainda assim questionadora. O homem se apoiava na mesa com os braços cruzados —, qual o seu plano de saque? A hora é agora. Já decidiu o que vai fazer para cumprir sua parte do acordo?

Soluço respirou fundo com pesar. Não queria ter um plano, não queria cumprir sua parte do acordo nojento que propuseram, só queria pegar os suprimentos, libertar os dragões e as meninas, e voltar para casa.

— Eu tenho uma condição para esse ataque.

O silêncio caiu pesado sobre todos, cada um prendendo o ar em antecipação, inclusive o próprio Soluço.

— Só vou lutar ao lado dos guerreiros de Dagur e Hilde. Ninguém mais. — Ele finalizou encarando Einar por um breve segundo, e então observou os outros. — Nesse ataque e nos próximos.

Hilde estava com as sobrancelhas erguidas, como se não esperasse por isso. Rapidamente, ela se recompôs.

— Não vejo problemas nisso — respondeu, inclinando o corpo para frente enquanto falava.

— É, estou bem com a ideia — Dagur concordou.

— Eu acho que devem atacar onde nós os mandarmos atacar — Agnar censurou.

Ele parecia um pai que dava bronca em um filho levado. Mais uma vez, os nervos de Soluço estouraram e ele precisou de muita força para não rir de raiva. Sua voz, contudo, saiu ácida o suficiente para deixar a ofensa clara.

— Com todo o respeito ao anfitrião, mas eu sou um chefe, não seu servo. Eu ataco onde quero com quem eu quero. Posso ser jovem e não conhecer ninguém aqui como parecem se conhecer, mas erram miseravelmente se nos subestimarem por isso.

Agnar respirou fundo com lentidão, digerindo palavra por palavra. Suas bochechas, contudo, estavam um tom a mais de vermelho do que antes. Contudo, foi um sorriso que se estendeu por seu rosto.

— Agora sou eu quem peço perdão pela ofensa. Bom, mais alguém pretende atacar em breve?

Os outros guerreiros foram respondendo à pergunta. Porém, daquele momento em diante, Soluço simplesmente deixou de escutar o que diziam e tentou se distrair bebericando o que descobriu ser cerveja. Algo o pegou de surpresa ao tocar sua mão por debaixo da mesa. Ele olhou para baixo e viu os dedos de Astrid se entrelaçando aos seus.

Soluço a fitou. Nela, encontrou a expressão acolhedora de sempre, as írises azuis reluzindo de afeto e um sorrisinho discreto no canto dos lábios rosados. Astrid era sua amiga, sua aliada e sua esposa. Ele suspirou e a segurou com mais força. Lembrar-se de que a teria ao seu lado para o que der e vier era sempre reconfortante, principalmente nos momentos mais assustadores.

A reunião terminou antes do que esperou e ninguém se demorou para sair dali, a maioria tentando desviar o quanto possível dos répteis enormes no recinto. Ele quis rir da reação deles, mas se conteve até chegar do lado de fora, onde os chefes se despediam.

Soluço, Astrid e os dois companheiros esperaram que saíssem para enfim irem embora daquele lugar.

Todos, com exceção de Hilde, seguiram seus caminhos para longe. Soluço não deixou de reparar em Einar e Ramond sibilando entre si e dando olhadelas para trás. Muninn chiou e bateu as asas para o alto, uma imagem imponente o suficiente para fazer os dois sumirem dali. Soluço sorriu e coçou o pescoço de seu dragão. Dagur gemeu.

— Dá pra sentir mesmo o cheiro de lixo em volta deles. Se fosse comigo, já teriam queimado vivos.

A líder escudeira riu consigo mesma, observando os outros dois homens com as mãos repousadas na cintura.

— Sabe, também nunca me senti à vontade perto deles. — Hilde comentou. A mulher respirou fundo, os pés agitados chutando a terra à sua frente. Aos poucos, ela se virou de frente para eles, especificamente Soluço e Astrid. — Eu sei que não começamos muito bem. Afinal, eu fui uma das que os chamou com ameaças. Mas... eu preciso admitir que sua tribo é a que mais conseguiu meu respeito.

Hilde se aproximou de Astrid. Havia algo em sua expressão que Soluço só viu quando duas pessoas iguais se reconheciam.

— Quando você se levantou no salão e gritou contra eles demonstrou mais coragem e integridade do que todos ali dentro. Às vezes me pergunto por que não protestei antes, só que... era como se a situação tivesse me deixado... entorpecida. Bem... — Ela ergueu a mão direita a outra. — Com certeza precisamos de mais pessoas como você, Astrid. E é claro, como todos vocês, rapazes. Que não se calam quando veem o que é errado.

O rosto de Astrid se iluminou ao ouvir aquelas palavras. Na verdade, Soluço e os outros também não conseguiram esconder a gratidão pelo o que ouviam. Sem hesitar, ela apertou a mão de Hilde com firmeza.

— Vai ser uma honra lutar ao lado de uma grande guerreira como você.

Hilde sorriu e a soltou.

— Nos vemos depois de amanhã, então. Podemos nos encontrar aqui e depois mostro o caminho para a cidade.

Soluço assentiu, calado, tentando disfarçar o novo nó em seu estômago. Ele apenas caminhou até Muninn, pronto para montá-lo, e sinalizou para que os outros o seguissem. Agora que não tinha responsabilidade nenhuma a resolver, mal esperava para voltar ao seu assentamento.

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— Vem cá, que história foi aquela de pedir desculpas pelo “meu comportamento”, hein? — Melequento reclamou, seguido por um chiado de Jörmungand, como se o dragão reiterasse o que seu cavaleiro dizia.

Soluço não conteve o riso de deboche.

— Ai, Melequento, não me exausta, vai. Você entende muito bem o que cortesia significa. O Dagur entendeu também o que falei dele, não entendeu?

— Hm — Dagur refletiu enquanto se ajeitava sobre seu dragão, Nidhogg. Por fim, deu de ombros com aquela sua expressão sarcástica. — Talvez.

Soluço balançou a cabeça, rindo. Ele deu dois tapinhas sobre Muninn, que logo esticou as asas.

— Vamos sair daqui.

Durante todo o dia seguinte, Soluço permaneceu naquele estado de nervosismo, sem prestar atenção em nada e ainda assim implorando para que qualquer coisa o distraísse da próxima batalha. Mas ficar olhando para a princesa de Dunbroch não ajudou em nada, muito menos a forma como ela o encarou de volta com olhos de gavião. É claro que ela sabia que um saque se aproximava, mesmo que não dissessem nada sobre o assunto ou sobre o motivo de terem saído para a reunião.

Porém, pensar que Merida precisava sim ser comunicada também o corroía pedaço por pedaço. E mesmo que sua mente flutuasse de ansiedade, o que era certo, era certo.

Poucos minutos antes do sol se pôr no horizonte, Soluço chamou por Sean e caminhou até a princesa, que assistia aos berkianos se preparando para a batalha. Cada passo o levava mais perto da forca moral que retumbava em sua cabeça, mas o nó definitivo foi apertado quando percebeu o quanto o rosto de Merida se tornara pedra fiscalizando o comportamento ao seu redor.

Ela sabe. Não é burra.

Soluço tentou respirar fundo antes de falar, porém os olhos inquisidores da princesa o fizeram vacilar. Ela não moveu mais nenhum outro músculo. Ficou apenas ali, parada, com as costas apoiadas na parede externa do salão e os braços cruzados sobre seu peito. Ele mal pôde ouvir a própria voz quando falou:

— Fomos chamados ontem pelos outros chefes para... a reunião. Nós... nós tínhamos um tempo para poder nos instalar. Depois disso, seríamos obrigados a atacar junto com eles. Sabe que... ainda não podemos... — Ele engoliu em seco. — Não posso colocar meu povo e minha ilha em risco maior contra eles ainda.

Merida continuou o encarando por um tempo infinito, atenta a cada movimento seu, cada expressão, cada gesto, completos com as traduções de Sean. Ela piscou longamente, suspirou e assentiu.

— Ela diz que sabe disso — Sean o informou.

— Vou dar ordens de que foquem os ataques nos locais ricos, com mais comida e ouro guardados. Sem ataques contra quem não vai poder lutar de volta e principalmente para nos defendermos se atacarem primeiro. Vamos entrar, pegar e sair. E se alguém desobedecer e eu souber, será devidamente punido. Eu juro.

Os ombros da princesa se soltaram um pouco, e seus olhos de rapina diminuíram o fogo. Mais uma vez, ela assentiu, mordendo o lábio inferior. Ela remexeu os dedos e ajeitou a postura antes de respondê-lo.

— Ela acredita no seu juramento e se lembra do acordo que fizeram naquele dia, mas diz que mesmo assim não gosta da ideia de saber que seu povo será saqueado. Pelo menos, é mais justo do que os ataques dos outros grupos.

Soluço concordou.

— Eu compreendo.

Merida estendeu a mão direita, o mesmo gesto que viu Hilde fazer no dia anterior. A menina perguntou alguma coisa e Soluço olhou para o seu intérprete.

— “Ainda aliados?”, ela perguntou.

Soluço suspirou aliviado e apertou sua mão com a mesma força com a qual sabia que manteria suas promessas. O nó em suas estranhas se desenrolou em um piscar de olhos.

— Ainda aliados.