Essa manhã foi resolvida com mais agilidade do que de costume. Poucos assuntos precisavam da sua atenção e os que vieram em busca de auxílio o receberam com simplicidade. A vida de chefe não era nada fácil, mesmo depois de dois anos na posição. Tudo o que ele queria era poder ter alguns minutos que fossem apenas para ser o Soluço de sempre.

Assim que percebeu que nada mais clamava pela presença de um jarl, Soluço se permitiu ser jovem de novo e correu para o lado de fora do salão.

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Astrid estava destruindo Melequento e Gustav pela milionésima vez no pátio – o que nunca deixava de lhe arrancar risadas satisfatórias – mas agora ele queria usar o tempo com quem mais negligenciara em todas as semanas naquela terra estrangeira.

Seu dragão repousava altivo sobre o telhado do salão, atento aos movimentos rápidos das pessoas abaixo dele. Assim que ele apareceu, o animal o encarou e, sentindo o seu próprio entusiasmo, ergueu o pescoço em curiosidade. Soluço assobiou e o animal desceu até ele de imediato, fitando-o intrigado.

— Ei, garoto — cumprimentou, acariciando o pescoço longo com uma das mãos.

Ele sentiu a garganta do dragão vibrando em satisfação sob sua pele. Sua expressão, porém, ainda se mantinha a mesma. Soluço riu. Garoto difícil de se entregar, pensou. Como todo alfa.

— É, eu sei, eu te ignorei mesmo por um tempo. Que tal um passeio na floresta, hein? Me mostra esse lugar que você mora.

O dragão respondeu com sons parecidos com murmúrios e começou a caminhar em direção às árvores. Soluço nunca deixava de se surpreender com a forma que eles pareciam entender o que as pessoas diziam, mesmo os dragões mais selvagens. Será que algum dia ele e Perna de Peixe conseguiriam descobrir como exatamente isso acontecia? Só de pensar nisso, conseguia visualizar o amigo dando saltos de entusiasmo. Outro sorriso cortou o seu rosto com a imagem.

Em silêncio, os dois caminharam para a mata, deixando a vida cotidiana atrás de si com satisfação. O barulho humano foi substituído pelo piar dos pássaros e por sons distantes de outros animais correndo por aí. Ao passarem abaixo de algumas árvores, vislumbrou o brilho quente do sol passando pelas folhas, meio dourado e meio esverdeado. Soluço se lembrou do dia que atracou no país e de como tudo ali sempre lhe pareceu tão... mágico!

O dragão subiu e desceu o peito devagar, também apreciando a calma que a floresta trazia. Soluço alisou suas escamas azuis e amarelas, agora quase prateadas no meio da sombra. A onda de calor que ele emitia tocou seu peito com uma lembrança bela, porém dolorida do ar morno que Banguela deixava por onde passasse.

Mas agora a saudade não o rasgou como antes. Sim, queria muito que seu melhor amigo ainda estivesse com ele, e não achava que jamais teria uma ligação como a que teve com ele. Contudo, precisaria mesmo que fosse exatamente igual? Não. Entendia agora. Banguela era Banguela e sua amizade com ele era uma, enquanto este dragão era outro. Nada mais natural do que ter relações diferentes com seres diferentes.

— Mal posso esperar para te conhecer melhor, amigo — divagou enquanto admirava o reflexo do sol nas escamas. O dragão mais uma vez resmungou em resposta, como se concordasse. Soluço riu baixo. — É, pois é.

O dragão respirou fundo e piscou devagar antes de se deitar sob a sombra das folhas. Ele tinha o mesmo olhar que os outros dragões que conhecera quando estavam confortáveis: calmo, curioso e delicado, quase como uma criança observando a natureza.

Soluço suspirou. O melhor então seria se render ao pequeno espaço entre as raízes da árvore ao seu lado, onde encaixou o corpo tão perfeitamente quanto em uma cama. O dragão resmungou, apoiou a enorme cabeça sobre seu colo. Ele o acariciou sem pensar em mais nada e o animal apenas fechou as pálpebras. Banguela costumava ser mais brincalhão e enérgico, mas Soluço também não tinha do que reclamar com a ideia de simplesmente passar um tempo relaxando no silêncio da mata. Só isso já era um avanço em comparação com as primeiras tentativas, em que o dragão não fazia mais nada além de encará-lo com firmeza.

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Ele se permitiu fechar os olhos por algum tempo até sentir o estado de um cochilo leve turvar sua consciência.

O rapaz despertou com um pensamento rápido. Versos antigos ecoaram de suas lembranças, de quando era pequeno e deitava sobre o colo do avô que o acalentava e contava histórias.

— “Huginn e Muninn voam a cada dia sobre a terra espaçosa. Eu temo por Huginn, que ele não volte, ainda mais ansioso estou por Muninn” — Soluço repetiu. O dragão gorgolejou baixo, curioso, prestando atenção em sua voz.

Foi com esses versos que aprendeu sobre os corvos de Odin, que a cada dia voavam de seus ombros para vislumbrar o que acontecia no mundo. Ao fim de cada viagem, retornavam e sussurravam ao Pai de Todos o que viram e ouviram. Mas não havia garantia de que voltariam de fato, e isso Odin temia. Huginn, cujo nome significava “pensamento”, já era alguém (ou algo) assustador de se perder, mas perder Muninn, a “memória”, seria ainda pior. Quem somos nós sem nossas mentes sãs ou nossas lembranças? Nada.

Soluço repousou os olhos no dragão que erguia a cabeça para encará-lo de volta. Não tinha mais a força agressiva de antes, e sim o aconchego profundo e misterioso que essas criaturas carregavam. O mesmo que Banguela tinha em suas lembranças. Lembranças...

— O que acha... Muninn?

O dragão o fitou em silêncio, atravessando sua carne e vendo dentro de sua alma. Mais uma vez, ouviu o ronco baixo quase felino. Ele fechou os olhos e tocou seu rosto com o focinho. Soluço sorriu e suspirou. Uma onda quente se espalhou por todo o seu corpo enquanto circulou os braços ao redor de Muninn em um abraço apertado, tentando não dar atenção ao nó que se formava em sua garganta.

— É isso, então. Muninn. — O dragão “ronronou” outra vez. Soluço se afastou, mas ainda esfregando suas mãos sobre a cabeça dele. — É, pelo visto gostou mesmo, hein, amigo.

E agora, será que...? Não custava nada tentar, a não ser é claro, uns possíveis arranhões e dores no corpo de ser jogado longe. Mas sua experiência lhe dizia que, depois de ter um nome, montar em um dragão era muito mais fácil.

Soluço se levantou e se espreguiçou, fazendo suas costas estralarem em resposta. Muninn ainda o acompanhava em cada movimento, atento. Talvez um pouco receoso? Bom, nada incomum para um alfa nunca montado. Ele precisava apenas fazer tudo bem devagar, um membro de cada vez. Primeiro, era só andar até a lateral do torso com passos calmos, nada de ser brusco naquele momento! Muninn resmungou, mas não saiu do lugar, nem mesmo quando Soluço passou uma das pernas por sobre seu corpo e se encaixou no meio de dois espinhos dorsais.

Ainda sentia os músculos fortes retesados abaixo de si, mas, como tudo durante a tarde, era um avanço comparado com o fracasso de antes. Soluço se inclinou e acariciou as costas de Muninn, aos poucos sentindo-o relaxar.

— Isso, menino, isso. Pode ficar tranquilo. Viu? Não dói nada.

Finalmente, o animal suspirou e soltou a tensão de uma vez.

— E aí? Está bom assim ou quer fazer algo mais? Quer voar? — Muninn ficou calado por um tempo, como se dessa vez, convenientemente, não tivesse entendido nada. Só cabia a ele respeitar isso, e não insistiu. Alguns minutos depois, o dragão sacolejou os ombros. — Certo, certo, já vou sair.

Soluço escorregou para o chão e voltou a se sentar no local de antes. Muninn resmungou baixo, murmurando algo consigo mesmo. O jovem riu e puxou a cabeça dele sobre seu colo mais uma vez.

— Isso, assim. Vamos cochilar mais um pouco agora, se prefere assim — falou, enquanto os dois se ajeitaram em sincronia sobre seus leitos e repousaram de novo.

Soluço ouviu o esmagar apressado de folhas alguns metros à distância, nem sabia dizer quanto tempo depois de se deitar. Conhecia aquele ritmo de passos e só precisou esperar uns segundos para vislumbrar o primo se aproximando com Jörmungand em seu encalço.

— Ei, magrelo! — Soluço riu, com os braços cruzados. Ergueu uma das sobrancelhas para ele, ainda um pouco sonolento. — Se escondendo no mato?

— Não posso perder o costume.

Melequento parou à sua frente e cruzou os braços depois de tomar um pouco de fôlego. Lá vem, pensou. Soluço o encarou em silêncio, sem alterar em nada a sua expressão ou mover um único músculo para se levantar à altura do outro. Melequento relaxou um pouco a postura, menos convencido da imposição que pensou em fazer. Quis rir, mas achou melhor se segurar.

— Soluço, é que... Eu quero entender aquela história que você falou pra princesa daqui.

— O que não ficou claro? — Questionou, com um toque de preguiça na voz.

— Essa conversa de que a gente não vai fazer nada se eles só entregarem o que a gente precisa. Sei lá, eu não sei se vim até aqui, passando semanas naqueles navios, cortando lenha e construindo cabana pra sair sem uma única briga que for.

Soluço jogou a cabeça para trás enquanto ria, depois voltou e balançou-a de um lado para o outro. Melequento pareceu um tanto ofendido com o gesto, com o cenho já franzido, os olhos arregalados e a boca se abrindo para protestar.

— E quem te disse que não vai ter briga?

O rapaz parou, agora claramente confuso. O jovem chefe manteve a expressão quase maliciosa. Conseguiu mais uma vez pegá-lo de surpresa. A confusão de Melequento se dissolveu no seu rosto, agora mais sério, mais... preocupado.

— Então você mentiu pra elas? — A voz dele soou grave, questionadora. Melequento o repreendia sem precisar dizer mais nada. Dava para ver que a ideia de ter Soluço, dentre todas as pessoas, mentindo quanto a esse assunto o incomodava muito mais do que sua vontade de brigar.

Soluço torceu o nariz.

— Não! Se eles entregarem os mantimentos e o ouro, eu não teria mesmo nenhum motivo para saquear ninguém. Mas eu duvido que isso vai acontecer tão cedo, sem uma batalha que for. A própria princesa deixou bem claro que o pai dela não gosta de nórdicos de jeito nenhum. Mas... — ele se alongou nas palavras. Pôde sentir seu rosto mudando, tremendo com leves toques de rancor, de um fogo que só Viggo, Drago e Grimmel tinham sido capazes de acender até então — não foi do rei que eu falei antes.

Mais uma vez, Melequento tremeu as sobrancelhas, perdido no raciocínio.

— O que quer dizer? Está falando do... — um raio atravessou seus olhos. Ele os arregalou de novo — Dos caras daquela noite no salão?

Soluço subiu e desceu as sobrancelhas.

— Achou mesmo que eu fiquei satisfeito só com uns xingamentos? Contra aqueles homens? — Um sorriso cortou a face de Melequento de um canto ao outro, assim como a dele próprio. — A gente só precisa esperar a oportunidade perfeita. Tudo tem sua hora.

Melequento assentiu e riu em aprovação.

— É assim que se fala, magrelo. — Ele voltou sua atenção ao dragão no qual Soluço se apoiava, agora com a expressão bem mais tranquila. Nessas horas nem parecia o garoto briguento de antes. — E esse aí? Já conseguiu montar nele?

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— Ah! Eu e meu amigo Muninn estávamos só nos conhecendo melhor. Até consegui sentar nele, só não voamos.

O primo ergueu as sobrancelhas e levou uma das mãos ao queixo.

— Oh. Bom nome.

— Só não sei ainda se ele vai me deixar voar. Talvez sim. Vai, rapaz?

O dragão rosnou baixo em resposta e abaixou sua cabeça, dando um leve cutucão em seu ombro. Soluço riu baixinho. É, talvez agora ele deixasse sim.

— Que tal tentar, hein?

— Uma corrida! — Melequento disparou cheio de uma energia repentina. — A gente vê o trajeto no caminho! Quem perder fica limpando a sujeira dos dragões.

Soluço gargalhou e assentiu, com um sorriso debochado e competitivo ao mesmo tempo.

— Prepare-se para o trabalho sujo que te aguarda!

Os dois se encararam, rindo, quase saltando de antecipação nas costas de seus respectivos, encaixando-se entre os espinhos. Os animais estenderam as asas e rugiram para o ar, e aceleraram para o ponto aberto mais próximo para pegar o impulso do vento antes de lançarem-se aos céus.