Radiação Arcana: Totem De Arquivo

Capítulo 31: Descanso Arruinado


Mexi os braços e pisquei várias vezes. Voltar para o mundo fora do jogo era difícil, às vezes. Aos poucos voltei ao normal, começando a escutar o que estava acontecendo, vendo vultos se movendo rápido demais, sentindo o formigamento do meu corpo.

Como fiquei muito tempo dentro do jogo, senti muito forte os efeitos colaterais. Meus músculos estavam dormentes, mas, quando a dormência passou, senti dores muito fortes. Minha barriga doía de fome, pois a única fonte de nutrientes que eu tinha era um soro colocado na minha veia.

− Merda! Hey, alguém aí? − disse com a cabeça quase explodindo de dor.

Alguém se aproximou e falou algo, mas não consegui entender.

− Por favor, mais devagar, não estou conseguindo entender − disse arfando.

A imagem começou a ficar mais nítida e percebi que era Jeff. Ele estava pálido, parecia com medo.

− Caraca, moleque! Você parece horrível! − ele disse.

− Eu que… o diga − balbuciei com a boca dormente.

− Você está jogando mais do que deve, faça mais pausas ou poderá ter algum problema irreversível.

− Duvido que isso aconteça, Jeff.

− Pois saiba que três garotos já morreram por jogar demais. Tu não estás entendendo que esse jogo é perigoso. Mas bem, tenho que sair um pouco, me chamaram na prefeitura para resolver umas coisas com a Lua. Já volto. Aproveite e coma um pouco, viver só de soro não dá.

− Obrigado. Ah… Onde estou? − perguntei.

− Você e os outros jogadores foram levados para o hospital. Olhe ao seu redor, meu irmão está ali e seu amigo lá − o técnico em informática disse apontando para camas nos cantos da sala.

− Ok, boa sorte com… seja lá o que for.

− Obrigado, até mais tarde.

Jeff saiu do quarto branco e pequeno. Coberto por azulejos, a sala era fria, mas não deixava a temperatura passar de 20 °C. No quarto havia 4 camas, uma minha, que ficava próxima a porta, a do meu irmão, que ficava a minha esquerda, perto da janela, a de Limcon, que estava próxima a janela também, mas do outro lado, e, oposta a mim, a de alguém que eu não conhecia.

Ao lado de cada cama, uma cadeira e um criado-mudo branco. Por algum motivo a cor oficial dos hospitais era branca. Pela janela vi uma fraca nevasca, recobrindo as ruas do Polo Norte com a chuva branca. Vez ou outra alguém passava caminhando, com medo de escorregar, coberta de casacos e logo entrando em alguma loja ou casa. Raramente se ouvia um grito que interrompia o monótono som do uivar gelado, como se Bóreas soprasse continuamente, castigando a minha pacata vila.

O trinco da porta fez barulho, anunciando a entrada de alguém e interrompendo minha análise. Fechei os olhos e espiei quem adentrava. Um casal com vestes surradas e sujas de terra, A mulher, de cabelos curtos e negros, pele rosada do frio, mas cheia de poeira, estava chorando vendo a criança na cama. O homem, loiro de pele surrada pelo tempo, consolava a moça.

− Nosso filho… Berílio, tão pequeno e preso nesse vício maldito… − a mulher parou e recuperou o fôlego − Tudo culpa daquele cientista maldito. Morra Dr. Arias, sofra no seu leito de morte. Você é o culpado por criar esse jogo dos infernos, por matar tantas crianças e viciar o resto que não morreu ainda − a mulher gritou aos céus, xingando o criador do jogo.

O homem a acalmou e ela caiu em choro. Senti o coração apertar com as palavras dela. Meu irmão também podia viciar nesse jogo e talvez eu já estivesse viciado. O mundo lá dentro parecia muito melhor, mesmo com todos os problemas e medos. Gostaria que todos vivessem lá, abandonassem esse mundo frio e destruído e refizessem suas vidas naquele universo cheio de magia. Se alguém descobrisse como manter todos vivos, mesmo que nunca mais conseguissem voltar para essa realidade. Depois que tivemos a conversa sobre aquele mundo ser a realidade para quem vive lá, eu pensei muito sobre isso. Para que ir para a Lua se posso viver lá? Mas, por outro lá, para que viver lá se eu poderei viver na Lua?

A mulher voltou a xingar o Dr. Arias, porém com um tom de voz alto demais. A porta abriu e um médico entrou.

− Por favor, Sra. Esteen, faça silêncio, consegui ouvir seus gritos lá da maternidade. Sr. Esteen, faça sua esposa parar de gritar, por favor.

− Claro, doutor. Amor, acalme-se, tu não podes gritar aqui. Vamos rezar em casa para nosso pequeno soldadinho. Ele tem que ganhar essa vida melhor na Lua, talvez essa seja a única forma dele ganhar uma vida melhor.

− Mas longe de nós, como ele pode ter uma vida boa? − o casal começou a se retirar e o som da conversa foi baixando até sumir.

Eram poucas as pessoas que tinham uma religião, esse era um dos poucos habitantes que ainda achavam que algum deus podia quase destruir toda a humanidade e ainda ser bondoso. Mas cada um acredita no que quer e ninguém opina nos gostos um do outro. Pelo menos, entre o povo do Pólo Norte, ninguém mais guerreou ou brigou. Raramente alguém infringe as leis daqui, pois todos sabem a situação um do outro. Ninguém era muito mais rico do que o outro, e ,mesmo aqueles que tinham uma qualidade de vida melhor, faziam doações para os mais necessitados. Eu e meu irmão éramos um desses necessitados e recebíamos ajuda de Jeff, que tinha um pouco de qualidade. Talvez ele era um dos mais “ricos” da vila, por isso ajudava com o sistema de jogos do Radiação Arcana. Graças a ele nós tínhamos comunicação via internet com a Lua. Para nós a internet era algo arcaico, uma tecnologia muito ruim e lenta, pois demorava minutos para passar grandes informações de um computador ao outro.

Mas a tecnologia que nos destruiu, então talvez fosse melhor ficar com a internet e o planeta saudável do que ter a bionet e o mundo inabitável.

O médico virou para mim e percebeu que eu estava acordado.

− Olá, garoto. Sou o doutor Forest, chefe da equipe médica número três. Nós não temos muitas informações suas, só temos seu primeiro nome e onde mora. Sabemos também que você vive com aquela criança ali. Poderia nos dizer seu sobrenome e sua idade, senhor… − ele folheou alguns papeis que estavam presos na minha cama, a procura das minhas informações.

− Não me chame pelo meu nome, por favor, não gosto disso. Pode me chamar de Balazar, é assim que todos me chamam, por causa do jogo, sabe. Respondendo sua pergunta, tenho 17 anos e meu irmão, bem, não sei o segundo nome dele, mas ele tem 12 anos. Mais alguma pergunta? − talvez fui um pouco ríspido, mas realmente odiava meu nome de antes da guerra.

O médico se mexeu incomodado. Ele não gostou da minha atitude, mas ponderou que eu estava com algum sintoma do cansaço mental que o jogo causava.

− De que parte do mundo vocês vieram? Tem alguma doença, algo que possamos nos preocupar?

− Ambos viemos do sul da América, da Costa Gelada. Não sei se ele nasceu lá, pois eu também não nasci nesse país, mas morava lá antes de tudo acontecer.

− Nasceu onde?

− Krissó. Por isso meu cabelo loiro e meus olhos claros. Meu pai é de lá e minha mãe também. Quer dizer… eram.

− Morreram na guerra? − ele perguntou.

− Não quero conversar sobre isso, por favor, não se intrometa.

Novamente o médico aguentou quieto minha atitude rude, contudo ele entendeu que falar sobre meus pais não era uma boa ideia.

− Ok, acho melhor deixar você descansar. Vou mandar a enfermeira trazer comida. Não volte a jogar por oito horas, seu corpo está fraco demais e seu cérebro pode “queimar”. Se seu irmão acordar, diga isso para ele também. Até breve.

− Tchau.

O doutor saiu do quarto e meia hora depois uma enfermeira magra e pálida trouxe um mini banquete com frango assado, sopa, suco de laranja e feijão. Ela também me deu alguns comprimidos para tomar, dizendo que iriam dar os nutrientes que faltavam no meu corpo. Comi tudo rapidamente, desrespeitando o que a enfermeira dizia. Infelizmente ela estava certa, eu devia ter comido devagar, pois tive uma forte dor na barriga e ânsia de vômito.

− Eu lhe avisei − a mulher disse.

− Eu sei, eu sei. Por favor − gemido de dor − A senhora tem algo para passar isso?

− Tenho sim − ela pegou um pote com analgésicos do bolso e me deu um, com um gole de água.

Demorou algum tempo até eu melhorar, mas finalmente voltei ao normal.

− Muito obrigado.

− É só meu dever, garoto. Acho melhor você dormir agora. Qualquer coisa é só chamar − ela disse apontando para um botão do lado da cama.

Fiz que sim com a cabeça e ela saiu do quarto. Fechei os olhos e adormeci. Tive tantos pesadelos e sonhos que acordei horas depois com a cabeça doendo. Olhei ao redor e vi meu irmão observando a neve cair.

− Maninho… − chamei ele.

− Sim, Balazar. Já sei, tenho que ficar sem jogar por um tempo. Meus sintomas foram mais fortes que os seus − ele virou para mim.

Seu olho direito estava com a íris branca.

− O que aconteceu? − disse surpreso.

− Temporariamente, estou cego. O médico já me deu medicamentos e eu voltarei ao normal, mas se isso acontecer mais vezes pode ser irreversível.

− Aquele maldito jogo. Ah, descobri uma novidade.

− O que? − ele disse meio cabisbaixo.

− O sobrenome do criador do jogo é Arias.

Meu irmão me olhou surpreso.

− Não pode ser… Será que…?

− Não sei, talvez. Espero que não.

− E se for…?

Meu irmão não completou a frase, pois Jeff entrou no quarto.

− E aí? Como estão os melhores jogadores que eu já conheci? Soube que vocês estão quase cumprindo a missão.

− É − respondemos em coro.

− E o que falta vocês fazerem? É fácil, não é?

Eu e meu irmão nos entreolhamos.

− Só temos que passar por um labirinto cheio de assombrações e desafios − meu irmão falou.

Jeff ficou surpreso.

− É… muito difícil?

− Um pouco, mas conseguiremos, nossa equipe é forte − eu disse.

− Espero que dê tudo certo. Soube que o jogo é mais real agora.

− Sim, se morrermos nele nós não conseguimos sair do jogo, então podemos morrer aqui fora por jogar muito tempo.

− Mas isso não deveria ser permitido, é perigoso. Quem fez esse jogo deve ser um louco.

Eu e meu irmão concordamos tensos.

− Jeff… nós precisamos descansar. Você poderia sair?

− Ah, claro, imagino que vocês queiram dormir e se preparar para voltar ao jogo.

Nos despedimos dele e voltamos a discutir o assunto anterior, sobre o criador do jogo. Passamos horas fazendo suposições e temendo a verdade. Talvez nem rezando nós fugiríamos dessa maldita verdade.

Só de pensar naquele nome meu corpo já arrepiava e memórias choviam na minha mente. A garrafa quebrada, o sangue, os gritos, o choro, a raiva. Tudo poderia ter sido diferente se eu tivesse agido certo. Nunca vou me perdoar pela aquela noite horrível. E também nunca perdoarei o Dr. Arias.