Capítulo 22: O Perseguidor

— Como assim existe um Polo Sul?! —Salocin gritou tão alto que todo o quartel deve ter ouvido, mesmo a reunião sendo dentro da sala do general.

Depois que eu contei que tinha conversado com Limcon fora do jogo e que ele tinha contado coisas importantes, Salocin decidiu reunir todos os jogadores do grupo que estivessem online para ouvir minhas informações. Sentados ao redor da mesa de carvalho, meus colegas de equipe ouviam o ataque de nervos de Salocin.

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— Isso é impossível. Vamos lá Balazar, deixe de brincadeira e conte logo o que você descobriu — falava Zoey, com o rosto demonstrando a mais pura seriedade.

— Não é brincadeira. Limcon realmente conheceu uma garota do Polo Sul. Eu tenho total confiança nele! — falei alto, em tom confiante.

— Mas... Mas... Mas...

Salocin não sabia o que dizer. Ninguém esperava que algo desse nível pudesse acontecer. Saber que mais pessoas estavam vivendo na Terra poderia significar uma revolta. Quem sabe pudéssemos lutar pelos nossos direitos. Das últimas vezes que os moradores das vilas do Polo Norte tentaram fazer uma greve, se passou dois meses e a Lua nem sentiu a falta da comida e dos minérios que nós não produzíamos mais. Claro que isso tinha um motivo. Enquanto nós não produzíamos no Polo Norte, a Lua devia se abastecer com as produções do Polo Sul.

Isso também explicava o porquê de somente às vezes a Lua sufocar as greves. Possivelmente o em ambos os polos deveria estar acontecendo greves, então os lunáticos não tinham onde se abastecer.

— Fear e eu iremos buscar a garota e Limcon. Na verdade, somente o avatar de Limcon está na casa, pois ele não poderá entrar por um tempo — eu disse.

— Por que ele não poderá entrar? — indagou Supreme.

— Isso é outra coisa que eu devo contar para vocês. Limcon passou muito tempo sem sair do jogo e isso causou danos ao seu organismo. Ele ficou cego, mas por sorte uma equipe médica irá trata-lo e,em breve,ele poderá jogar novamente.

— Cego! Que horror! Esse jogo deveria ser proibido — falou Troiana, com uma expressão de surpresa.

— Todos devem fazer pausas diariamente, para não sofrerem problemas físicos ou mentais. Durmam fora do jogo, exercitem-se, comam direito e façam tudo o que precisarem. Como nosso tesoureiro está fora do jogo, Salocin, preciso que você faça uma tabela de horários onde mostrará quando cada um deve jogar e descansar, como se fossem turnos — pedi, quase ordenando Salocin a fazer isso.

— Sim, general.

Senti um tom de raiva na voz dele. Eu entendia o motivo. Salocin era o líder e geralmente era ele quem mandava, não eu. Eu era somente o general, deveria tomar conta do exército, das batalhas, das missões perigosas, enquanto ele dizia o que nós tínhamos de fazer.

Com o punho cerrado e um ar de raiva, Salocin disse:

— Agora vá resgatar a garota, Balazar.

Ele estava tentando mostrar que era ele quem mandava. Tudo bem, eu não me preocupava com isso. Desde que eu e meu irmão fossemos para a Lua, eu poderia ser mandado até lavar os estábulos e não reclamaria.

— Vamos — falei para o meu irmão.

Saí quase marchando para fora da sala. O som dos pássaros piando se misturou com o da voz de Salocin, mandando cada membro fazer alguma coisa.

O mercado estava cheio de vendedores (sério Balazar, não acredito nisso), principalmente hoje, pois era o dia da Grande Feira, que acontecia uma vez na semana. Como seria difícil caminhar entre as multidões de compradores e vendedores, eu e meu irmão decidimos fazer uma volta maior, passando pelo lado do grande pátio onde o comércio acontecia a céu aberto.

Alguns minutos depois, eu e meu irmão estávamos na Praça da Prefeitura, que por algum motivo inexplicável era na frente da prefeitura. Vocês conseguem acreditar nisso? A praça era uma grande área de cem metros quadrados. Do lado norte, que ficava na minha direita, a grande prefeitura estava situada. Ela era feita de madeira serrada, com tábuas muito bem lixadas. O edifício tinha três andares, repleto de janelas. Pelas minhas enevoadas memórias de quando eu era criança, a prefeitura iria se parecer muito com um colégio. Várias salas cheias de janelas. Bem, é difícil descrever o local, mas ele parece uma caixa de madeira com vários furos.

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Do outro lado da praça, ao Sul,a minha esquerda, algumas casas, cabanas e prédios se estendiam pela rua de terra. As minhas costas era a mesma coisa, mas, entre as casas, pequenas arruelas levavam para a grande feira. Era como se tudo fosse um grande sistema circulatório do corpo humano, onde as ruas eram veias e o coração era aquela feira.

Já diretamente a minha frente, entre algumas lojas de materiais específicos, como sapatarias e açougues, uma casa de dois andares estava parada (óbvio né? Casas não andam), com suas duas janelas que pareciam olhos me vigiando. Diferente dos outros edifícios, essa pequena mansão era feita de pedra, não de madeira. Várias placas de pedras haviam sido empilhadas e aquecidas, para grudarem uma na outra, se tornando o próprio cimento que as ligava. Mas,mesmo tendo sido aquecidas até derreter (o que eu não faço a mínima ideia de como devem ter feito isso no meio de uma floresta), ainda era possível identificar as placas, pois elas eram em alto relevo. Um telhado, feito de tijolos negros, enfeitava o topo da casa. Uma das portas duplas estava aberta. Elas eram feitas de carvalho, assim como a beirada das quatro janelas quebradas.

— Acho que nosso destino é aquela casa — eu disse ao meu irmão.

Ele estava remexendo as mangas da camisa, nervoso. Eu o entendia. Aquela casa tinha um aspecto fantasmagórico, um tom fúnebre. Sentia meu coração bater um pouco mais acelerado quando eu pensava em atravessar a praça verdejante para entrar naquela maldita construção enegrecida.

— Vamos — disse o ladino.

Caminhamos devagar, quase como se aproveitássemos cada passo que era dado naquela linda praça. Talvez eu estivesse achando-a mais bonita que o normal, pois sabia que teria de adentrar um lugar horrível depois disso, mas ainda assim era uma praça bonita. O grande espaço era coberto por uma grama rasteira e verde, mas em alguns pontos a terra era mais baixa, o que criava pequenos lagos, onde patos e peixes nadavam. Alguns casais estavam sentados na grama, fazendo piqueniques. Não havia árvores por todo o campo, o que era raro no meio daquela floresta densa. Talvez fosse um ótimo lugar para passar o tempo junto com a Troiana...

Eu tinha que esquecê-la. Minha vida iria mudar agora, eu teria de me acostumar a ficar sozinho. Talvez vocês não entendam por que eu acho que estar sozinho é o melhor jeito de proteger os outros, mas era o jeito que eu tinha achado. Meu irmão também fazia isso e parecia não estar sofrendo tanto. A única perda que ele teve foi de sua animação contagiante. O garoto alegre e carinhoso morreu e deu lugar a um assassino, ladrão e espião extremamente concentrado e eficaz.

Fiquei pensando em como era triste a mudança de meu irmão por todo o caminho pela praça e só me dei conta que tinha chegado na “mansão mal-assombrada” quando meu irmão puxou minha manga com uma mão, enquanto roía as unhas com a outra.

Cocei meus curtos chifres e disse:

— É, acho que não tem mais como voltar. Preparado?

Meu irmão relaxou, olhou fixamente para o chão por alguns segundos e respirou fundo algumas vezes antes de responder.

— Sim!

Seu olhar não focava em mim, mas sim na porta da casa. Ele parecia guardar uma raiva eterna pela porta, pois seus olhos tinham travado nela e sua testa estava enrugada, transformando o rosto sério de um espião em um rosto de um psicopata com raiva.

Caminhei hesitante em direção à porta. Ao passar por ela, meus olhos foram quase inúteis, pois a diferença de luz era grande demais. Precisei de alguns segundos para que meus olhos se acostumassem.

Depois que minha visão melhorou, consegui identificar alguns detalhes mais importantes da sala em que estava. Uma grande escada de pedra levava ao segundo andar. Dos lados da escada, portas brancas estavam fechadas e levavam a diferentes salas. Não sei se era minha imaginação, mas eu parecia escutar murmúrios vindos da porta da direita e gritos da porta da esquerda. Claro que eram gritos muito baixos, pois mesmo me concentrando eu não conseguia definir se era uma ilusão ou realidade.

— Está escutando isso? — perguntei para o baixinho ao meu lado.

Meu irmão estava suando. Seus dedos se mexiam rapidamente, tamborilando as hastes dos machadinhos.

— Estou. Não parece que essas salas são... Aconchegantes. Vamos subir e ver o que há lá em cima.

— Está bem — respondi.

Dessa vez foi meu irmão que foi à frente. Ele caminhou silenciosamente enquanto subia as escadas, enquanto eu mal conseguia andar, pois minhas pernas estavam tremendo.

Sinceramente, eu já tinha passado coisas muito assustadoras na época da guerra, mas não tinha ficado com medo. Porém algo naquela casa era muito fora da realidade.

Para mim!

— Quem falou isso? — perguntei, parecendo um personagem idiota de filme de terror.

— Isso o que? — perguntou meu irmão.

Passaram-se mais alguns segundos e degraus até que meu irmão disse:

— Nós quem?

— O que foi, Fear? — perguntei.

— Alguém falou “venham para mim”, você não escutou?

— Não, não escutei nada. Antes eu tinha escutado alguém falar “para mim”. Talvez essa casa abrigue algum fantasma ou algo assim.

— Se for um fantasma será fácil derrotá-lo. Eu treinei lutando contra mortos vivos quando fui para Einstein.

— Então espero que seja um fantas...

Tínhamos acabado de subir a escada e agora estávamos em um longo corredor de pedra, tanto para a direita quanto para a esquerda. Eu não conseguia enxergar o fim do corredor, mas não porque ele era exageradamente longo, mas sim porque não tinha iluminação nenhuma na parte de cima da casa. Até onde eu podia ver, o corredor tinha portas na direita e na esquerda, como se fosse cheio de quartos. Mas o que me fez parar de falar foi que algo me dizia que alguma coisa estava no fim do corredor, na minha esquerda.

Um leve zunido nasceu na minha cabeça. Eu escutei o som de passos, lentos, com longos intervalos entre um e outro, mas assustadores. O mais assustador nos passos era que cada vez que a possível perna começava a se mexer, um som de facas sendo desembainhadas era emitido a minha esquerda.

— Algo está lá — meu irmão disse.

— Eu também percebi. Vou acender minha chama.

— Espere!

Tarde demais, eu já havia acendido uma pequena esfera de fogo, que nos serviria de lanterna. Quando o fogo acendeu, os passos aceleraram incrivelmente. Antes cada passo demorava uns cinco segundos para começar e terminar. Agora, em cinco segundos, dez passos eram dados, mais ou menos.

— Vamos para a direita — sussurrou meu irmão. — E apague esse maldito fogo!

Apaguei minha chama e caminhei acelerado, seguindo meu irmão. Quando eu fiz sinal que iria correr, ele me parou.

— Não podemos correr ou ele irá saber onde estamos — falou o pequeno espião em tom de voz baixo.

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— Ok, mas o que vamos fazer?

— Vamos tentar achar a namorada de Limcon.

O monstro nos perseguia, mas com uma velocidade mais lenta.

Caminhamos pelo corredor, abrindo as portas e espiando as salas. Infelizmente,a garota atiradora não estava em nenhum dos dez primeiros quartos. Continuamos caminhando silenciosamente até que o corredor nos obrigava a virar à direita. O problema é que era uma curva de 90° e nós não tínhamos como saber o que nos esperava depois da esquina.

Preparei minhas manoplas, assim como meu irmão se preparou para matar. Rapidamente, nos jogamos para o outro corredor, com as mãos levantadas prontas para a luta, mas ninguém estava lá. Nada estava lá.

Suspirei, tentando dar uma folga a meu coração que batia rapidamente.

Se continuássemos muito tempo naquela casa eu teria um ataque cardíaco em alguns minutos. Mas, infelizmente,eu tinha que seguir procurando a namorada de Limcon.

Algo passou na minha mente e eu falei para Fear.

— E se os passos que ouvimos foram da namorada de Limcon?

— Até pode ser, mas, se for, nós descobriremos quando voltarmos. Além disso, o que estava naquele corredor tinha uma aura muito ruim.

O som dos passos ainda estava ecoando, mas agora bem distante e lentamente.

Continuamos a abrir portas e mais portas, que davam lugar a salas de pedra, vazias, sem janelas e iluminadas por pequenos furos do teto, onde entrava luz o bastante para dar visão nos monótonos quartos. Depois de andar muito, mas muito mesmo, meu irmão parou abruptamente, se virou para mim e apontou para o chão, com uma cara de medo.

— O que foi? — perguntei.

Imediatamente eu descobri. No chão, marcas de garras estavam talhadas. Mas não eram marcas de algum felino que arranhou, eram marcas de passos. Se o ser que estava nos perseguindo é quem fez essas marcas, então as unhas dos pés dele deviam ser enormes. Acho que nem um urso iria fazer marcas tão profundas e largas. Muito menos na pedra.

— Vamos continuar e rezar para que não seja do nosso perseguidor — eu disse.

Meu cérebro estava ficando doido. Nós andávamos por dezenas de metros e dobrávamos centenas de vezes, mas, pelos meus cálculos, a casa não era grande o bastante para abrigar tantos corredores. Talvez fosse efeito de alguma mágica ou coisa surreal que acontecia nesse mundo.

Era a milionésima porta que eu iria abrir e já estava ficando sem esperanças de encontrar a garota, contudo, quando girei a maçaneta de ouro da porta branca, escutei alguém falando do outro lado:

— Se entrar, eu ofuzilo, seu filho da puta desgraçado!

Ainda sem abrir a porta, respondi:

— Calma, calma! Somos jogadores.

— Entrem, mas se não forem, irão morrer — disse uma voz feminina.

Devagar, abri a porta. Dessa vez o quarto não era uma sala vazia. Limcon estava deitado perto da parede da esquerda, enquanto uma garota estava de pé ao seu lado, segurando uma super-metralhadora com as duas mãos e me olhando com cara de raiva.

A garota que tanto procurávamos estava ali, mirando uma arma muito perigosa em nossa direção.

— Fechem a porta, rápido.

Eu e meu irmão acabamos de entrar e eu fechei a porta. Olhei para Limcon e perguntei:

— Vocês já estavam aqui quando Limcon entrou no modo off-line, não foi?

— Sim, mas... Como sabe o nome dele? — a garota perguntou.

— Sou Balazar e esse é Fear. Somos da mesma vila que Limcon, por isso quando saímos do jogo ele nos pediu, lá fora, para vir te buscar. Disse que era para te levar à nossa guilda. Você é Skarlatte, não é?

— Sim, sou sim. Então vocês são os amigos que Limcon tanto falava. Ele disse que iria sair do jogo para pedir ajuda a vocês, mas não voltou mais. O que aconteceu com meu amorzinho?

Estranhei a forma de como aquela garota podia ser tão carinhosa e agressiva ao mesmo tempo. Sua aparência não ajudava a me fazer acreditar. Ela era uma canina, a raça de humanos que viveu com o s lobos. Seus olhos eram vermelhos com riscos verticais negros. Os dentes caninos saíam alguns milímetros da boca. Os braços eram mais fortes que os meus, assim como suas pernas. Ela vestia um curto vestido vermelho, que não tinha mangas e parte do pano das pernas, pois tinha sido rasgado por garras ou algo do tipo. Um cinto prendia alguns itens, como poções, facas de combate corpo a corpo e uma granada. O cabelo castanho estava amarrado em um curto rabo-de-cavalo. A metralhadora em sua mão era uma grande caixa negra com duas alças nas quais Skarlatte segurava. Da caixa saía também uma série de tubos que formavam um círculo. Possivelmente era dali que os projéteis eram liberados. Ela era mais baixa que eu, mas sua força era evidente. Manchas vermelhas pintavam seu rosto, como desenhos de guerra. As unhas eram um pouco compridas, feitas para caçar. Resumidamente ela parecia um lobisomem, mas menos peludo e enlouquecido.

— Limcon teve um problema de saúde por causa do tempo que ficou jogando sem descansar — respondeu meu irmão.

— Bem, espero que ele melhore logo. Mas quanto a vocês nos salvarem... Não tenho certeza se nós três conseguiremos sair daqui. Pelo menos não com aquele monstro lá fora.

— Que monstro é esse? — perguntou meu irmão.

— Ele é um ser horrível. Parece que foi torturado das piores maneiras, pois seu corpo é muito machucado. Ele não tem os braços, e por isso suas pernas são fortes. No lugar dos dedos do pé, garras de aço afiadíssimas foram colocadas. Seu rosto é coberto por um pano cheio de sangue. Mas não conseguirei descrever ele muito bem, já que ele é uma coisa indescritível. Por causa do pano ele não enxerga direito, mas ouve muito bem e se alguma luz é acesa ele corre em direção, já que possivelmente é uma pessoa. O estranho é que dizem que ele não tem olhos, mas enxerga a luz de fogo. Ele mata pessoas somente por diversão, mas geralmente é só uma por vez. Se tiver duas, ele sequestra a outra.

— Mas como ele conseguirá pegar a segunda pessoa? — eu questionei.

— Ele sempre está fazendo um zunido com a boca. É um zunido muito alto que está em um tom tão agudo que a pessoa desmaia por dor no tímpano. Quando ele está perto o bastante para você escutar no volume alto demais, já era. O pior é que esse filho da puta fica andando pelos corredores, procurando pessoas para matar. Felizmente ele não consegue entrar nos quartos, pois não tem mãos para girar a maçaneta. Claro que isso não o impede de rasgar as portas com os pés. Mas geralmente ele não faz isso, pois fica fácil atacá-lo enquanto estava fazendo isso. É um monstro difícil de matar, mas com estratégia se torna uma tarefa possível.

— Ele parece ser muito perigoso. Quem sabe,quando ele passar pela porta nós poderemos sair e voltar o caminho que fizemos — meu irmão disse.

— Se ele passar pela nossa porta, nós vamos morrer só com o barulho do zunido. Ele estava seguindo vocês?

— Estava — respondemos em coro.

— Então temos que sair daqui agora. Ele parece lento, mas chegará aqui daqui alguns minutos. Algum de vocês pode carregar o Limcon?

— Eu carregarei — respondi.

— Então vamos lá.

Coloquei o braço de Limcon sobre meus ombros e o levei. Skarlatte pegou uma das duas granadas que tinha no cinto e colocou no centro da sala, talvez para marcar onde tinha ficado. Saí da sala junto com a canina e o helmen, com os ouvidos atentos para tentar medir a distância entre nós e o monstro. Pelo barulho dos passos, eu deduzi que estávamos a uns cinquenta metros da aberração.

— Você sabe qual é o nome desse monstro? — perguntei cochichando para a Skarlatte.

— Não sei se ele tem um nome específico, mas os jogadores que Limcon conversou disseram que ele se chamava Lâmina Perseguidora ou Caçador de Sangue. São nomes bem macabros, por isso,eu só o chamo de Monstro dos Corredores. Chame como quiser — ela respondeu em tom de voz baixo.

— Pode ser — sussurrei.

Andamos para o lado contrário do Monstro dos Corredores (MC Psicopata. Ok, essa foi pior que a ursorada, desculpem-me). Nossa velocidade era razoável, mas não parecia nos distanciar do monstro. Como eu tinha que carregar Limcon, que não era um cara pequeno, por causa da musculatura dele, minha velocidade era limitada.

Viramos alguns corredores até que chegamos a uma enrascada. O chão que estava a nossa frente era coberto de pequenos cacos de porcelana, como de pratos e vasos de flor. Talvez, em algum momento no passado, alguém tivesse lutado contra o Caçador de Sangue ali e feito todo aquele estrago. Mas agora nós tínhamos que atravessar aquele corredor sem fazer barulho, para não chamar a atenção do monstro faminto que nos seguia cegamente a alguns corredores atrás.

— Cuidado onde pisam — meu irmão disse como se fosse ajudar muito.

— É meio difícil ter cuidado quando se está andando com uma baleia atiradora apoiada nos ombros — eu retruquei.

— Essa baleia é meu namorado, então cale a boca — Skarlatte disse, terminando a briga.

Calculando cada passo, comecei a andar. Limcon parecia pesar vinte vezes mais. O zunido do perseguidor parecia crescer, mas bem lentamente. O suor escorria pelo meu rosto.

Pé direito, pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo. Cada passo era como uma maratona, de tanto que me cansava. Minhas pernas estavam fraquejando sob o peso do meu amigo desmaiado.

Em certo ponto do corredor, os cacos estavam muito pertos um do outro, não dando espaço para que meu pé se encaixasse. A única maneira de passar era saltando para depois desses cacos e aterrissar entre vários outros, com o equilíbrio de um artista de circo.

— Temos que pular — Skarlatte avisou.

— Eu vou primeiro — meu irmão disse.

Fear ser preparou para o salto, agachou-se para pegar impulso e voou por cima das peças de porcelana, como se nem fosse difícil.

— Belo salto, pequenino — brincou Skarlatte.

— Não me chame de pequenino — meu irmão respondeu com rispidez.

Às vezes ele era tão frio que eu me assustava. O que poderia ter tornado meu irmão assim? Algo dentro de mim dizia que não era o desejo de viver na Lua nem a determinação de ganhar o jogo. O pior era que ele não se abria para mim. Senti meu coração pesar mais do que o Limcon.

— Minha vez! — foi o que Skarlatte disse antes de pular como uma águia e aterrissar do outro lado, sem nenhum som.

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Era minha vez de pular, mas eu não conseguia ver como eu passaria aqueles longos três metros com um cara apoiado nos ombros e ainda aterrissar suavemente como um ninja.

Peguei impulso me agachando, mentalizei o salto e empurrei o chão de pedra com toda a minha força. Senti meu corpo sair do solo e voar com uma bomba de canhão, pronta para causar um estrondo quando atingisse o chão. Mas não foi exatamente isso que aconteceu.

Eu consegui aterrissar com suavidade, mas Limcon escapou dos meus ombros e caiu rumo ao monte de cacos de porcelana. Por sorte Skarlatte se moveu rapidamente e segurou a camisa dele, parando a queda a milímetros do chão, tão perto que o nariz de batata de Limcon parecia estar tocando o pedaço de porcelana mais próximo.

Mas claro que a vida não é feita só de sorte. A escopeta de Limcon, que estava nas suas costas, começou a escorregar por seus ombros, até que caiu no chão com um baque estridente, seguido do barulho de vários cacos sendo quebrados em cacos menores.

Um grito de fúria e insanidade veio dos corredores anteriores ao nosso. Os passos aceleraram e as garras dos pés do monstro pareciam agora uma legião romana desembainhando centenas de espadas. O zunido crescia rapidamente e ameaçava explodir meus ouvidos.

— Corram! — gritei.

Puxei Limcon do chão e recolhi sua escopeta, colocando o gordo (ele não é realmente gordo, mas pesa como um) nas minhas costas e levando a escopeta com a mão.

Minhas pernas esqueceram o cansaço e ganharam uma nova fonte de energia, chamada de “medo”. Fear disparou, mas não ficou muito longe de nós, para que pudesse nos ajudar caso o monstro nos alcançasse. Skarlatte não parecia ter dificuldades para correr enquanto segurava sua super-metralhadora. E também não estava com problemas, mas não conseguia correr tão rápido quanto o espião maratonista que era meu irmão.

Lâmina Perseguidora parecia correr cada vez mais rápido, já que nos escutava cada vez melhor. Nossos passos eram muito barulhentos pois estávamos correndo em um chão de placas de pedra. O som dos passos ecoava muito no corredor de pedra. Novamente,eu percebi o zunido crescer.

Não podia me preocupar em escutar o nosso assassino, eu tinha que me preocupar em correr, algo que estava me cansando bastante. Minhas pernas protestavam contra meus comandos, mas ainda assim eu conseguia me mover rapidamente. Não sabia que era possível sentir tanto cansaço em um jogo, assim como eu não sabia que se podia sentir tanto medo.

Virávamos à esquerda, à direita, corríamos centenas de metros, sem nunca saber para onde estávamos indo. Os corredores só levavam mais para dentro da mansão aterrorizante. Os novos corredores onde passávamos eram muito destruídos. Possivelmente era ali que o monstro conseguia capturar a maior parte das suas presas. As portas das salas eram destruídas, manchas de sangue marcavam as paredes e o chão, com o formato de mãos, garras e corpos, pedaços de roupas estavam espalhados junto com pedras arrancadas do chão, mas o pior de tudo eram os esqueletos dentro dos quartos. O medo dominou meu coração e minha mente. Senti vontade de desistir e morrer, para que esse terror acabasse finalmente.

Por incrível que pareça, meu irmão não demonstrava medo algum. Talvez fosse pelas coisas que ele já passou ou pelos filmes de terror que ele assistia junto com o Jeff enquanto eu jogava. Mas algo me dizia que devia ser pelo treinamento que ele tivera com o mestre do elemento Morte. Eu não entendia como a Morte podia ser considerada um elemento. Talvez o elemento Morte fosse a arte necromântica, como o domínio de mortos vivos ou coisas malévolas. A única coisa que eu sabia era que Fear sabia dominar esse poder muito bem.

O Caçador estava se aproximando. Ele corria ferozmente, até que... Silêncio. Seu zunido parou, seus passos cessaram, as garras pararam de raspar no chão. No início eu não entendi o porquê. Mas assim que eu olhei para o fim do corredor, tudo ficou claro.

Corpos em decomposição estavam empilhados em um corredor com fim, diferente dos outros. A parede, que sinalizava o fim da nossa fuga, estava marcada com sangue. Alguns corpos estavam irreconhecíveis, de tão estraçalhados. Era uma cena aterrorizante, macabra, sanguinária e cruel. Meus olhos se fecharam, se negando a olhar para aquela carnificina. Os corpos eram tanto de crianças quanto de adultos. Aquele monstro não tinha preferência, só queria matar.

Uma porta, que ficava na esquina do corredor, se abriu. O monstro saiu dela, bem devagar. Era uma armadilha. Possivelmente, se ele não conseguia pegar suas vítimas pelo caminho, levava elas até esse lugar. Então ele devia poder se teletransportar pelas outras portas do corredor, saindo diretamente nessa.

Por muita sorte, o monstro não estava zunindo. Nós estávamos no meio do corredor, cerca de dez metros longe dos corpos e dez metros longe do monstro. Daquela distância, o zunido teria nos matado. Mas acho que o monstro queria nos matar de medo antes.

Como Skarlatte tinha dito, o corpo do monstro era destruído, como se ele tivesse sido atropelado por um caminhão várias vezes antes de cair em uma trituradora e depois ser atacado por cachorros. O tronco era cheio de rasgões, como cortes ou furos. Alguns lugares eram cobertos por placas de metal pregadas a pele e aos ossos. Seu rosto era coberto por um saco de palha cheio de sangue. Suas pernas eram moles, como se não tivessem ossos, mas, mesmo assim, tinham uma aparência forte, como a de um atleta de olimpíada. Mas depois de olhar alguns segundos para ele, percebi que seu corpo era como uma miragem. Sua pele era um pouco transparente, assim como os órgãos internos, o que permitia olhar através dele, mas com pouca clareza, pois seu corpo ainda tinha um pouco de cor. Era como se ele estivesse ali e ao mesmo tempo não estivesse. Talvez ele fosse um espírito preso a esse mundo, e ficou por tanto tempo sendo atormentado por sua prisão que acabou enlouquecendo.

Isso não importava agora. O que importava era que iríamos morrer.

— Skarlatte, a metralhadora, na boca dele antes que ele comece a zunir — gritei.

— Sim!

Skarlatte levantou a arma, mirando na cabeça do monstro. Os tubos, que eram da largura de um dedão, começaram a girar e logo começaram a atirar. Uma rajada de balas fumegantes acertou o inimigo, tirando pedaços do pano, que estava se encharcando de mais sangue. O monstro gritou, mas sua voz agora era rouca. Ele pareceu tentar zunir, mas não conseguiu.

Furioso, fez menção de avançar, mas meu irmão já tinha previsto isso. Fear invocou seus zumbis, que avançaram mancando. Mas o monstro era forte como um tigre. Girou suas pernas em um movimento de capoeira e agarrou o primeiro zumbi com um pé, como se fosse uma mão. As garras envolveram o corpo do morto-vivo, que foi atirado contra seu conterrâneo do mundo dos mortos. Os dois zumbis se despedaçaram em ossos e músculos apodrecidos.

— O que fazemos agora? Ele é muito forte! — meu irmão disse desesperado.

— Tenho uma ideia — disse a garota canina.

Ela puxou a granada do cinto de ferramentas e disse:

— Me sigam!

Levantou o braço, para arremessar a bomba, mas, ao invés de atirar contra o monstro, atirou contra os corpos. E o pior de tudo é que ela correu na direção dos corpos depois disso. Mas como ela tinha nos mandado seguir, eu não pensei duas vezes antes de correr atrás dela.

O monstro começou a correr atrás da gente, mas sem fazer zunidos. Nós nos aproximávamos dos corpos despedaçados, o que me permitiu tirar detalhes dos mortos. Eles não tinham braços, talvez porque o monstro não gostasse de ver pessoas com braços, assim como não tinham olhos. Essa última informação me fez imaginar que o monstro também não tinha olhos.

Skarlatte correu diretamente para onde sua granada tinha caído, no meio do estômago de um dos feridos. Mas quando nós chegamos perto da granada, ela explodiu. O que me surpreendeu é que não era uma granada de ataque, era uma de efeito. A explosão nos sugou para dentro da granada e fomos teletransportados para a outra granada que Skarlatte tinha, que estava na sala onde eu e Fear a encontramos.

Devíamos estar a centenas de metros do monstro, mas não perdemos tempo. Voltamos a correr, mas em direção contrária ao monstro. Tínhamos de sair dessa casa, agora!

O monstro rugiu tão alto que o escutamos, mesmo estando tão longe dele. Isso me deu um pouco mais daquela estranha fonte de energia, o medo. Os pés de Limcon arrastavam pelo chão. Aquele gordo maldito tinha me feito passar por tudo isso, enquanto ele estava dormindo e babando no meu ombro. Eu iria tirar muito ouro dele quando ele acordasse.

Aos poucos, o som dos passos do Caçador de Sangue aumentava. Ele estava se aproximando rapidamente, mesmo nós nos movendo naquela velocidade.

Quando eu achava que o perseguidor devia estar a uns cinco ou seis corredores atrás de nós, chegamos à sala principal, onde a escada levava à porta. Desci as escadas tão rápido que quase caí. Meu coração estava a mil. Olhei para trás por um breve estante e vi o monstro surgindo no corredor, freando no topo da escada. Ele dobrou os joelhos para pular em minha direção, mas eu saí da casa no exato momento em que ele saia do chão.

Silêncio. A casa estava em total silêncio. Do lado de fora nós não podíamos escutar nada que se passava lá dentro. O zunido nos meus ouvidos não era mais do monstro, mas da minha pressão altíssima.

Virei-me e dei de cara com um homem. Cambaleei para trás, quase gritando de medo. Meus nervos ainda estavam apavorados.

— Balazar, finalmente te achei! — o homem disse.

Engoli em seco. O homem estava exatamente entre mim e o sol, então seu rosto estava coberto de sombra. Quem seria esse homem que estava me procurando?

— Não me reconhece mais, Balazar?

— Quem é você? — perguntei.