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A Casa Abandonada


Alguns membros da Corporação Celestia rondavam a parte de fora da casa de Alice, mais precisamente onde o corpo do Magarat jazia sem vida no chão. O monstro de pedra estava sendo guinchado pelos homens e amarrado a três helicópteros.

-É, isso não vai ser fácil. - Maguine comentava pra si mesmo, observando seus subordinados se atrapalharem para enlaçar o Magarat.

-O que vocês decidiram? - Perguntei.

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Maguine notou minha presença, colocou aquele enigmático sorriso no seu rosto e respondeu:

-Ainda não chegamos num acordo. Helena quer tentar desativar o tal aGravity, sem destruí-lo, apesar de Zero ter deixado claro que isso seria perda de tempo. Mas mesmo que decidíssemos por destruí-lo agora, isso não seria possível, afinal não fazemos ideia do paradeiro do satélite. Ele pode estar em qualquer lugar da órbita terrestre.

-Mas você e a Corporação conseguem encontrá-lo, não?

-Sim, mas é um processo que pode chegar a demorar meses. Precisaremos executar uma varredura por toda a órbita para encontrá-lo...

-Deve haver uma maneira mais fácil.

-Talvez. Estou tentando encontrar, pensar em alguma coisa para facilitar, mas... está difícil.

E precisávamos pensar logo. Nós não tínhamos meses para perder. Talvez não tivéssemos nem mesmo dias.

Afastei-me de Maguine em direção ao portão da vila, quando alguém me chamou:

-Seth!

Virei-me. Zero corria na minha direção. Parou de frente a mim... e começou a coçar a cabeça. Depois de algum tempo de silêncio, ele falou:

-Olha, eu... Não sei bem agir... como um pai e... - Ele gaguejava – E por mais que isso tudo seja muito estranho...

Ele olhou para os lados. Suspirou para acalmar-se e disse finalmente:

-Eu fico feliz que esteja vivo.

Eu não sabia se devia sorrir, se devia chorar ou se devia gritar. Eu estava vivo. Ótimo. Todo o seu esforço deu resultado. Mas a que preço? A minha vida valia assim tanto quanto a das outras pessoas? A vida de Teoremo, de Ellen, da minha mãe... de todas as pessoas no mundo... Em troca da minha sobrevivência? Eu não os culpava. Eles não sabiam que as coisas iriam chegar nessa situação catastrófica. Mas não consegui sorrir.

-Obrigado.

Eu me virei para continuar o meu caminho. A vila estava escura, as casas estavam todas cerradas. Porém, não demoraria muito para que amanhecesse. O dia havia passado como um raio, rápido e ao mesmo tempo, destruidor. Contei os passos até minha casa, tentando afastar todos aqueles pensamentos que estavam devorando meu cérebro. Abri a porta e sentei-me na cadeira da cozinha.

Minhas forças estavam liquidadas. Meu cérebro agora tinha preguiça até mesmo de pensar.

A porta que dava ao quarto da minha mãe se abriu e ela surgiu na escuridão. Ela apertou o interruptor para que a luz da lâmpada se acendesse e sentou-se à mesa comigo.

-Como foi seu dia, Seth? - Ela perguntou, sorridente. Seu pijama rosa e sua toca de dormir da mesma cor tornavam a situação um pouco... irritante.

-Não muito bom. - Respondi, sem muita vontade.

-Fiquei preocupada. - Ela disse.

Olhei nos olhos dela e vi que ela dizia a verdade.

-Dona Laura? Preocupada? - Eu zombei.

Ela sorriu, se levantou e falou, lentamente:

-Seth, você acha que sou muito despreocupada?

Meu cérebro começou a trabalhar novamente. Queria responder alguma coisa que não a ofendesse.

-A senhora é sempre bem feliz, não é, mãe...

Ela sorriu novamente, mas de repente, seu semblante se tornou triste.

-Mas nem sempre foi assim.

As coisas pareciam tomar rumos cada vez mais para o lado da angústia... Ela percebeu a preocupação nos meus olhos e, fitando-os, continuou:

-Eu me casei aos dezessete anos e desde então, mudei-me para Gaela para morar com meu marido. Eu o amava mais do que qualquer outra coisa neste mundo. - Ela voltou a se sentar. - Mas ele tinha uma doença rara, por isso, não podíamos ter filhos. E dois anos depois, esta doença o levou... Eu era tola e ingênua, sem dúvidas... Mas a amargura que eu sentia era real. Por dez anos, eu desconheci o que era um mero sorriso...

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Eu me espantei. Minha mãe nunca tinha me contado aquilo. Era difícil imaginá-la numa cena tão mórbida.

-Até que num fatídico dia, há dezesseis atrás, o mar trouxe você pra mim. - Ela me fitou novamente, olhando nos meus olhos. -De todos os meios possíveis, o mesmo mar que levara meu marido, trouxera você pra mim, Seth. Eu me lembro de cada segundo daquele dia. Helena estava comigo, observávamos a praia, quando eu vi aquela cesta flutuando... Trazendo você.

Eu estava paralisado. Ela me olhou e sorriu. Depois de alguns segundos, disse gentilmente:

-Eu sempre estarei feliz enquanto você estiver bem. A única coisa no mundo que me preocupa é você, Seth.

Ela se levantou, me beijou no rosto e voltou para seu quarto.

Eu não sabia o que pensar mais. Tantas coisas haviam acontecido e eu nunca havia sequer tomado conhecimento. Helena não teve coragem de me tirar dos braços da minha mãe. Por isso ela não me criou.

E eu estava feliz por isso...

Por mais loucas que as coisas haviam se tornado, eu ainda tinha coisas pelas quais valia a pena lutar. Coisas horríveis tinham acontecido? Sim, tinham. Mas também tinham acontecido coisas maravilhosas...

Subi as escadas para o meu quarto e me debrucei na janela. Pus-me a olhar o céu. As estrelas pareciam mais belas agora... Mesmo em toda aquela escuridão celeste, o brilho delas se destacava... Olhei para baixo e observei aquela vila... A pequena vila Gaela, onde eu havia crescido, feito amigos formidáveis e vivido intensamente... Podia ter sido diferente? Sim, podia... Mas eu realmente queria que fosse?

Enquanto eu recebia um jato de pensamentos positivos, minha mente finalmente focalizou num ponto da cidade. Um ponto que eu ainda não tinha estudado e que poucas pessoas tinham notado...

A velha casa totalmente lacrada por tábuas de madeira, onde no meu estranho sonho vivia, a mais estranha ainda, Dona Esmeralda.

Eu não ia conseguir dormir mesmo.

Abri minha mochila sobre a cama e retirei minha lanterna. Puxei minha caixa de ferramentas de baixo da cama e coloquei-a debaixo do braço. Desci as escadas e deixei minha casa, tentando não fazer barulho. Corri até a casa abandonada, subi os degraus e me deparei com a porta, a primeira vista, cerrada.

Mas ela não estava cerrada...

A madeira que prendia a porta só estava pregada na parte superior da extremidade esquerda. A tábua, que servia de tranca, girava livremente para o lado esquerdo de forma rotacional, dando acesso direto à porta. Retirei a tranca e girei a maçaneta. A porta se abriu, rangendo estridentemente. Empurrei-a para que se abrisse totalmente – provavelmente eu tinha acordado metade da vila com aquele ato.

Não dava para enxergar um palmo a minha frente. Acendi a lanterna e adentrei à escuridão. Procurei por algum interruptor nas paredes. Encontrei, mas não havia eletricidade. Era de se esperar. A lanterna iluminava muito pouco. Sentindo-me um gênio, voltei para o lado de fora da casa e coloquei a caixa de ferramentas no chão, abrindo-a e pegando minha chave de fenda lá dentro. Com um pouco de dificuldade, desparafusei as madeiras que trancavam as janela e as empurrei para dentro da casa, para que fossem abertas. Desta forma, a pouca iluminação noturna invadiu a casa, tornando os interiores desta mais visíveis.

Com a lanterna em mãos, tornei a explorar a sala de estar – que aparentemente, era o único cômodo da casa. Havia uma mesa de madeira no centro, rodeada por alguns banquinhos do mesmo material. Em cima da mesa, vários papéis, aparentemente milenares, estavam espalhados. Iluminei-os com a lanterna e admirei o conteúdo de um a daquelas folhas: um desenho, feito à mão, provavelmente por uma criança, retratando duas pessoas de mãos dadas – o pai e uma filha. Era um desenho meio sinistro , então o deixei de lado. Os outros papéis continham milhares de termos estranhos... Decidi deixá-los também. Voltei a olhar em volta. Havia uma pá, estranhamente familiar, recostada contra a parede esquerda do aposento...

Abruptamente, alguma coisa tocou meus pés. Mirei a lanterna para baixo – um rato tentava cravar os dentes no meu tênis, sem muito sucesso. No susto, acabei chutando-o para frente e ele simplesmente se espatifou na parede contrária, caindo em formato de vários pedaços de gelo.

Perdoe-me, ratinho. Não foi minha intenção.

Mirando nos cacos do rato, meus olhos se desviaram para outra coisa - uma coisa que havia debaixo dos restos mortais do animal.

Um alçapão.

Empurrei o gelo para o lado. Não havia uma alça para que eu abrisse aquilo. Olhei em volta, mas minha caixa de ferramentas estava lá fora – não que fosse tão longe assim, mas... Peguei a pá que estava ali mesmo e enfiei a ponta dela no vão do chão com a portinhola, empurrando-a para cima. Uma escada de ferro vertical se revelou. Mirei com a lanterna para ver até onde a escada dava... Devia dar uns quinze metros abaixo da terra. Notei se alguém estava vindo antes de descer a escada – um susto num momento daqueles provavelmente me mataria do coração. Felizmente, ninguém à vista. Desci a escada – que por sinal estava bastante enferrujada – e quando toquei meus pés no chão, várias luzes no teto se acenderam e continuaram a se acender, até que aquele longo corredor onde eu me encontrava estivesse totalmente iluminado.

O que é esse lugar?

Desliguei minha lanterna e a pendurei rente ao cinto. Caminhei até o final do corredor, onde uma porta velha guardava um possível cômodo subterrâneo. Abri a porta e me deparei com uma espécie de laboratório, paradoxalmente iluminado. Havia algumas máquinas empoeiradas pelo local, mesas com arquivos espalhados e vários tubos de ensaio gigantescos juntos às paredes, que davam a forma quadricular à extensa sala. Lembrou-me vagamente o laboratório de Targo, embora esse no qual eu me encontrava agora fosse menor.

Meus olhos varreram o lugar várias vezes, mas demoraram para perceber que eu não era a única pessoa ali...

Entre dois tubos, uma garotinha de prováveis dez anos ocupava minimamente o espaço do vão. Ela parecia concentrada em alguma coisa que desenhava num caderno em seu colo. Seu cabelo castanho estava preso num rabo-de-cavalo lateral. Sua roupa se reduzia a um vestido sujo simples e um par de botas remendado, o qual ela mexia para frente e para trás.

Sem olhar para mim e antes que eu pudesse fazer qualquer pergunta, ela disse:

-Estava te esperando, Seth. - Sua voz tinha um timbre doce, mas nem um pouco gentil.

Das milhares de perguntas que eu queria fazer para aquele estranho pequeno ser, a que conseguiu se livrar da minha garganta foi:

-Quem é você?

Ela ainda estava concentrada no seu desenho. Sem tirar os olhos do caderno, disse:

-Não perca seu tempo fazendo perguntas que você já sabe...

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Esbocei um sorriso em meu rosto – que ela não viu – e sentei-me do seu lado. Ela fazia vários rabiscos no caderno dos quais eu ainda não tinha noção do que realmente eram.

-Qual é o seu nome? - Tentei.

Ela gastou mais alguns segundos rabiscando o papel e respondeu:

-Ayede.

-Ayede... Você estava me esperando?

Ela não respondeu. Tentei novamente:

-Por que você estava me esperando?

-Eu não queria que você sofresse por minha causa. - Ela disse, sem mudar a entonação – Nem você, nem seus amigos.

-E por quê nós sofreríamos?

-Você só tem uma decisão para tomar. E por mais que eu não goste dela, eu vou deixá-la acontecer.

Do que ela estava falando?

-Olha, Ayede – Eu comecei – Conversaram em enigmas comigo por um período de tempo que, para mim, passou como se fossem séculos. Se não for muito incômodo, você poderia ser mais direta?

Ela parou de desenhar. Sorriu um belo sorriso e colocou o caderno ao seu lado. Levantou-se com gestos sólidos e pouco infantis, virou-se para mim e me fitou com seus olhos grandes e negros:

-Escute – Ela disse, séria – Você nunca se perguntou por que Athema cismou tanto com você? Por que ele teria tanto trabalho por causa de uma mera vida a mais na Terra? E quais as reais razões para que sua família e amigos terem sido castigados tão brutalmente? Você teria realmente essa arrogância de achar que o mundo todo vai mudar por causa de você?

Eu não havia pensado por aquele lado.

-É o que me contaram. - Decidi encará-la – Mas não vejo isso como um motivo para me vangloriar. Eu preferia que não fosse assim...

-As pessoas se superestimam e acabam ficando cegas para o verdadeiro problema. Só destruir esta tal coisa que está sugando as outras dimensões para a Terra não vai resolver o problema principal.

-Como você sabe de tanta coisa?

-É simples. Você, seus pais e seus amigos foram meras peças de um jogo. O verdadeiro conflito não se encontra entre vocês.

-Até agora, não vi ninguém a mais se colocar contra o que está acontecendo. Somente nós estamos lutando. - Respondi, friamente.

Ela se agachou no chão, enfiando a cabeça entre os joelhos. Logo disse, chorosa:

-Eu só não queria fazer ninguém sofrer...

Eu acabei ficando sensibilizado – ela atingira meu ponto fraco.

-Ayede... - Eu disse, tentando ser gentil – O que você está querendo dizer de verdade?

-Você não devia estar metido nisso. Nenhum de vocês. É tudo culpa minha... Só minha...

Ela se levantou e me encarou, limpando as lágrimas nos olhos com as mãos e voltando ao seu semblante ríspido.

-Poderia me explicar melhor?

Ela balançou a cabeça.

-Venha. Vou te mostrar tudo.

Ela me estendeu a pequena mão. Eu me levantei e, me sentindo um pouco esquisito, dei minha mão a ela. E então, o chão abaixo dos meus pés simplesmente desapareceu.