Dia após o acidente

Alfa estava em silêncio, uma pequena fresta de luz passava pelas janelas da escola, iluminando parcialmente o Tríscele em suas costas através da camisa rasgada. Em suas mãos, estava um pedaço de corda composto por vários nós, que ele mesmo fazia e desfazia diversas vezes, tentando se acalmar. Alfa estava abatido, por mais que tentasse pensar em como seguir com a sua vida e a carreira, o loiro se encontrava em um beco sem saída.

Na sua frente, o leito improvisado de sua esposa. Poucas horas atrás, Alfa descobriu que Samara havia sido infectada, vendo-a perder o controle e a sanidade, agora ela estava sedada com fortes tranquilizantes, permanecendo num estado de coma induzido. Seu rosto quase não era mais belo, coberto por feridas decorrentes da infecção, a pele pálida e trêmula causava arrepios em quem olhasse, mas Alfa não se importava.

Ela continuava sendo a mulher mais bonita do mundo para ele.

— Alfa? - Natasha abriu a porta da Sala de Artes. - Podemos entrar?

A escritora não estava muito melhor, também havia uma penumbra de tristeza ao seu redor. Ela se aproximou e sentou na cadeira ao lado de Alfa, Max ficara em pé atrás dela, tentando não pirar com a desorganização da sala.

— Como ela está? - Max perguntou.

— Mal, a vacina não parece ter feito efeito. - Alfa permanecia segurando a mão de Samara.

— Não consigo acreditar nisso. - Disse Natasha, recebendo um afago nos ombros por Max. - Como isso pode ter acontecido com ela? Uma pessoa tão boa, que não merecia isso.

— Ás vezes, o destino é uma cruel. - Respondeu - Sinto que estou perdendo o controle, com a minha família, com meus funcionários e tudo mais.

— Vamos ter fé, Alfa. - Max tentou mostrar ânimo. - Estamos todos rezando por ela.

Através da porta aberta, a chinchila de Ester entrou em disparada, pulando em cima da cama e se acomodando perto de Samara. Ester e outro garoto chegaram em seguida.

Alfa reparou no menino parado na porta, que mantinha seu olhar para a mulher, impressionado por ele não ter surtado ou feito uma expressão de nojo, o menino apenas mostrou um olhar complacente para o cineasta.

Ester viu os olhos vermelhos do homem, de tanto que ele havia chorado.

— Papai! A mamãe... O que... - Ester tentou falar, mas ver ao rosto perdido do pai, lágrimas de medo brotaram de seus olhos.

— Foi um acidente, filha. A mamãe ficou doente de repente, por isso ela está assim. Lembra da notícia da epidemia que vimos na televisão?

Ester ainda era mantida no escuro, Alfa não tinha coragem de contar 100% da verdade para ela.

— Que nem a Léa, ela estava igualzinha. - A menina se virou para Samara, sem agir com indiferença. - A mamãe vai ficar bem?

— Torcemos que sim, meu amor. - Natasha sorriu para ela.

Logo depois, a médica que cuidava de Samara apareceu, seus braços e seu vestido estavam levemente molhados, junto com seu kit de primeiros socorros.

— Alfinn, espere lá fora, por favor. Depois você brinca com a Ester. - Alfinn entendeu, se despediu de Ester com um aceno e saiu da sala.

— Dra. Maciel... E então? - Alfa perguntou.

Donatella suspirou, respondendo-lhe com uma expressão negativa.

— Não há nada mais que eu possa fazer, isso está além das minhas capacidades como médica, só resta nos esperar por um sinal de melhora.

— Obrigado por tentar. - Alfa fungou, estendendo a mão direita para ela.

— Eu sei que dói, mas precisa conviver com essa dor, se quiser vencê-la. - Donatella segurou forte a mão dele. - Boa sorte, Demétrio.

Depois que a médica saiu, Max, Natasha e Ester estavam de mãos dadas, esperando Alfa para fazerem um círculo de oração. O loiro se juntou a eles, fechando os olhos cansados e escutando sua filha começar a prece.

— Pai nosso, que estais no céu...

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25 de Dezembro

Era Natal.

No centro do jardim da família, uma moderadamente grande árvore estava sendo decorada. Alfinn usava o chapéu de caubói que ganhara e Donatella colocava os enfeites, que se misturavam harmonicamente com as maçãs penduradas.

— Vamos enfeitar a macieira de novo? - Fred chegou ao jardim, olhando estranhamente para o que a madrasta fazia.

— Que mal tem? - Donatella respondeu, admirada com o resultado final. - É rápido, prático e economiza dinheiro.

— Tanto faz. - Fred deu de ombros. - Acabei de receber um e-mail da minha mãe.

Donatella engoliu seco, Mabel era sempre um assunto delicado naquela casa.

— O que ela disse dessa vez?

— O de sempre, que está com saudades, que o trabalho lá na Austrália nunca acaba, os coalas estão cada dia mais bonitos e até mandou a foto de um.

Mabel, a mãe biológica do Fred, trabalhava como ativista social em diversos países, sempre doando muito de si mesma para ajudar quem precisasse. Pouco depois do Fred ter nascido, Mabel foi embora de casa, depois de ter descoberto que seu marido e a babá, tinham uma conexão além da profissional.

Todos os meses, Fred recebia um cartão-postal ou e-mail de sua mãe, guardados com cuidado. O comprometimento da mãe em causas sociais era louvável, mas um tanto exagerado na visão dele. Afinal, ela cuidava de crianças no mundo inteiro, e não tinha tempo para cuidar do próprio filho.

E aparentemente, o Skype não funcionava muito bem na Austrália.

Isso era o que fazia Fred ser áspero com Donatella, muitas vezes renegando o carinho que sua madrasta tentava lhe dar, e até mesmo descontando em palavras duras para o seu pai. Hoje, ele se arrependia.

Mas o que Fred nem imaginava, era que existia um outro lado dessa história. Somente Donatella, Marco e posteriormente Alfinn, sabiam o que realmente tinha acontecido, guardando esse segredo do garoto durante anos.

Era o segundo Natal que passavam sem Marco Antônio, uma das datas preferidas dele. Donatella sentiu a tristeza no rosto do enteado, se aproximou e abraçou ele, sentindo a temperatura corporal do garoto aumentar.

— Não podemos continuar tristes, o pai de vocês não iria querer isso. Esse é o dia do nascimento do menino Jesus, temos que celebrar e agradecer que estamos vivos.

Alfinn aproveitou a cena e pegou um pequeno objeto, que estava aos pés da improvisada árvore de Natal.

— Fred, esse é o meu presente.

O adolescente olhou ressabiado, já pensando se tratar de mais um brinde ou amostra grátis.

— Um frasco de Pyramidina? Isso é tão.... Útil.

— Não precisa agradecer, sei que gostou. - Alfinn piscou para o irmão.

Quando Alfinn saiu, Donatella percebeu o quanto Fred estava suando, ela nem precisava de um termômetro para saber que ele estava com febre.

Além da dor de cabeça, febre alta era um dos sintomas do vírus.

Fred negava.

— O Ka achou que eu tinha pegado o vírus também, mas eu contaria se tivesse sido infectado, não sou como certas pessoas. O pai sempre dizia, que sou a pessoa mais saudável do mundo, toda vez que eu ia visitar ele lá nas Tumbas.

Donatella se lembrava quando as dores de cabeça do Fred começaram, dois anos atrás. Marco procurava outras formas de tratamento e por isso, levava o filho constantemente para o trabalho, onde lá tentava curá-lo. O que pareceu funcionar por um tempo.

— Eu nunca perguntei isso, mas o que acontecia naquele laboratório?

— Nada de mais, aquela amiga ruiva dele tirava meu sangue, fazia alguns testes e me dava injeções. Ela falava que os meus resultados eram excelentes, até queria tentar mais coisas, mas o pai não deixou.

— Sei de quem está falando, vou conversar com a Gigi e tentar descobrir alguma coisa. - Prometeu a médica. - Agora, vamos cuidar dessa febre.

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26 de Dezembro

Estava escuro, não havia nada ao redor que pudesse ser visto ou identificado, apenas ouvido. Seus próprios gritos, que estavam sendo abafados por uma fina camada de fita adesiva.

O ar estava muito frio, os pelos de seus braços e pernas eriçavam com arrepios. Mas havia alguém ali, Renan podia sentir que sim.

Esperando que acontecesse logo, esperando por um fim.

Depois de suspiro longo, mas acompanhado por um leve riso, seu capuz foi tirado rapidamente, os olhos queimaram com o choque de luminosidade, como se o próprio sol estivesse na sua frente. Renan esperou alguns segundos e tentou abrir os olhos novamente, mas tudo sumiu. Não houve mais nada.

Nada que ele se lembrasse.

Quando Ísis abriu as cortinas do quarto, deixando a luz natural entrar, Renan despertou assustado.

— Pode me dizer por onde esteve andando? - Ísis perguntou. - O Valentim e eu preparamos uma pequena ceia, mas você nem se deu o trabalho de aparecer.

Renan tinha acabado de voltar do restaurante Lamounier, sua mente estava cansada de tentar processar o que aconteceu, ele só teve tempo de chegar em casa e desabar na cama, exausto.

Ísis então reparou nas roupas que Renan vestia, levemente chamuscadas, cobertas de sangue seco e alguns fios de cabelo loiro.

— Renan... O que houve? - A loira olhou preocupada para ele.

— Acredite, fiz essa mesma pergunta várias vezes.

Renan se levantou da cama, fitando suas roupas no espelho do quarto e lembrando dos últimos momentos de Thereza viva.

Flashs se acenderam em sua mente, misturados ao fogo e o caos, Renan viu uma mendiga sendo atacada por um infectado, sendo morta por ele. Foi então que se lembrou dos tais rostos que a falecida mencionara, um deles era da própria Thereza e se seus pensamentos estivessem certos, o da mendiga também era.

Renan se esforçava para lembrar de mais detalhes, arfando com o pulsar de seus nervos. Suas lembranças estavam presas em algum lugar, ele só precisava seguir as pequenas pistas para libertar sua memória.

— Renan, é melhor você ir à um hospital, procurar um médico.

Após escutar isso, um novo flash se acendeu.

— Tem razão, mas não preciso de qualquer um. Preciso encontrar uma certa médica do vestido elegante, cujo nome eu devia ter perguntado antes.

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Gigi entrou apressada pelo hall do Instituto Pyramid, que ela considerava parecer mais com um hotel temático, do que um centro de pesquisas. As estátuas de Hórus e Anúbis cintilavam sob a luz do lustre, o lugar brilhava do chão ao teto, mostrando a decoração natalina e o cuidado em que era mantido todos os dias.

Vestindo um terninho cinza embaixo do jaleco, Gigi passou pelas portas de vidro, encontrando com Bárbara atrás de uma mesa, que olhava preocupada para a tela do computador.

— Precisamos conversar! - Gigi entrou num rompante, ficando de frente para a viróloga.

— Bom dia para você também. - Barbie se levantou, sem o menor ânimo para conversar com alguém alterado. Seu rosto estava livre de maquiagem, revelando algumas olheiras e sinais de cansaço.

— Eu quase perdi meus filhos no túnel, o Querubins está lotado de infectados e as pessoas estão morrendo. E você sabe de quem é a culpa!

— Eu sei muito bem o que fizemos, você tem tanta responsabilidade quanto o Marco Antônio e eu nisso. Não tente tirar o corpo fora, Gigi.

Barbie respirou fundo, tentando se controlar.

Os últimos dias só serviam para lembrá-la do fracasso, resultando numa pandemia que ela tanto temia que se espalhasse e sendo pressionada pelo governador por uma solução.

— Não sei por quanto tempo, vou conseguir evitar todas as perguntas que a Maria me faz. - Gigi passou os dedos pelo rosto, sabendo que rugas poderiam aparecer, se ela continuasse tensa.

— Você acha que eu gosto disso? - A Pyramid pode ser fechada em minutos se alguém descobrir. Eu já chorei muito, continuar me desesperando não vai ajudar ninguém.

— Estávamos mexendo com algo que não devíamos, todo o trabalho era instável, mas continuamos mesmo assim. - Gigi sentou-se de frente para Barbie, já mais calma e pensativa. - Seria mais fácil ter uma poção e acabar logo com isso, mas infelizmente a magia não existe.

— Se fosse assim, todos os cientistas do mundo estão brincando de Deus por aí. Ciência e Religião estão sempre brigando, procurando argumentos sobre o que é certo e errado, mas uma precisa da outra. Sempre precisou.

Gigi concordou, depois tirou seu creme e antirrugas da bolsa e passou para Barbie. Uma funcionária da Pyramid apareceu à porta, trazendo uma bandeja com um bule de café e três xícaras.

— Senhora Velasquez, o secretário do governador está aqui para vê-las.

— Peça para ele entrar. - Barbie assentiu para a recepcionista, que deixou a bandeja e se retirou de imediato.

— Vamos encontrar alguma cura ou algo próximo, só temos quer ser pacientes. - Barbie falou com convicção para Gigi. - Eu tenho um plano.

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Debaixo do semblante calmo de Donatella, sua mente gritava de tantos problemas. O fluxo de pacientes era enorme, ela mal atendia um e já precisava correr para atender dois ao mesmo tempo.

Por muitas vezes, o silêncio desolador fazia a cidade parecer fantasmagórica. Outras vezes, o barulho de carros queimando e de pessoas gritando e chorando, faziam Cabo parecer um digno cenário de um filme pós-apocalíptico. A maioria dos infectados, parecia se concentrar na área industrial e em Baixo da Praga, deixando o centro da cidade seguro, até que algo indicasse o contrário.

Agora que a ponte fora demolida, um vão entre as cidades foi deixado, destruindo a conexão de Cabo da Praga com o mundo. A quarentena estava longe de terminar, o pânico inicial já havia passado e as pessoas tentavam retomar suas vidas, do jeito que podiam. Tendo na Internet, a única forma de sair daquela redoma invisível.

Ela agora tentava se concentrar em seu trabalho. Apesar de ter agradecido ao rapaz de touca que lhe salvara, Donatella não tivera mais nenhum contato com ele ou a dona do restaurante. Ela estava tão dividida entre o hospital e os filhos, que não lhe sobrava tempo para colocar a conversa em dia com os novos conhecidos.

Para a sua surpresa, um deles morrera na noite passada, justamente a irmã de seu colega Elias, Thereza.

— Dona? - Gabriel apareceu no corredor. - Você está bem?

— É meio difícil responder essa pergunta, mas vou ficar. Eu ainda não contei para o Elias, nem para a Emília sobre a Thereza.

— Fala da dona do Lamounier? A comida de lá é ótima. – Gabriel ainda não sabia.

— Sim, foi lá onde o Marco me pediu em casamento.

Donatella lembrou-se da sobrinha da sobrinha da mulher, Maria Thereza, uma das amigas do Alfinn. Nas horas vagas, Elias gostava de contar com orgulho sobre Thereza, de como a irmã tivera que se vestir como homem por algum tempo, da infertilidade, da batalha para conseguir o que tinha e muitas outras também.

— Se precisar de ajuda, pode chorar nos meus ombros. - Gabriel piscou para ela, Donatella não percebeu, apenas conferiu a nova mensagem em seu celular.

— Pode me ajudar pegando mais curativos. E também tem uma idosa, que precisa trocar as fraldas.

Gabriel saiu, entendendo que aquele não era o melhor momento para jogar seu charme.

Na tela, havia várias mensagens do seu amigo virtual, que Donatella ignorara sem querer. E também por ter sido deixada plantada na cafeteria, sem ao menos receber uma mensagem dizendo que ele ia se atrasar, ou não aparecer.

Mas a maioria foi sem querer.

Unknown Joker: Sorry, Mommy. - 10:18

Unknown Joker: Is it too late now to say sorry? - 10:31

Unknown Joker: Me responde - 11:34

Unknown Joker: Eu tentei te encontrar, mas tive que sair da cidade antes, o povo ficou tão preocupado em sair pelo túnel que eu simplesmente aluguei um barco e fui embora. - 11:36

Unknown Joker: O pessoal da Marinha nem notou - 11:37

Unknown Joker: Onde você tá? - 11: 37

Unknown Joker: Ainda na ilha? Aí ferrou tudo - 11: 39

Unknown Joker: Quando quiser responder, sabe onde me encontrar - 11:41

Unknown Joker: I'll be waiting - 14:01

Unknown Joker: Já me ignorou a vida toda, agora continua o mesmo - 17:32

Unknown Joker: Você não me dá escolhas - 23:20

Vários dias depois...

Arlequinn: Eu é que preciso te pedir desculpas. - 07:12

Arlequinn: E Feliz Natal atrasado! - 07:13

Arlequinn: Me desculpe de verdade, vou reparar isso quando puder. E sim, eu ainda estou na ilha. - 07:14

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O escritório de Gigi era enorme, tinha várias fotos dela e dos filhos em suas constantes explorações ao redor do mundo, principalmente no Egito. Maria olhava feliz para as fotos, agradecida por aproveitar todos esses momentos com sua família.

Muitas vezes, Maria tentava imaginar como teria sido, se a morte de seus pais verdadeiros não tivesse acontecido. Como seria viver com eles, talvez sem nunca conhecer a família Salles, num mundo totalmente diferente.

Gigi chegou e cumprimentou a filha com um beijo no rosto, acompanhado dela, estavam Donatella e Alfinn, que preferia ficar ao lado da mãe, do que assistir The Walking Dead com Fred o dia todo.

O garoto deitou estirado no sofá do escritório, já sabendo que as três mulheres falariam de algo importante. As duas médicas se sentaram de frente para a diretora do hospital, esperando o comunicado dela.

— Antes, tenho uma boa notícia: Perry foi encontrada!

— Isso é uma boa notícia? – Maria perguntou. - Ela devia estar na recepção.

— Quero dizer, que ela foi encontrada bastante ferida, na rua atrás da cafeteria perto do túnel.

Maria ficou surpresa, ela achava que Perry já tinha saído da ilha.

— Como ela está? – Donatella perguntou preocupada.

— Agora passa bem, o bartender do Coffee Club trouxe ela para cá. Ele quem encontrou e resgatou a Perry antes do túnel ruir, porém, as duas mãos da Perry foram esmagadas e quebradas. – Gigi suspirou. - Ela não vai poder digitar por um bom tempo.

— É uma pena. – Ela foi sincera. – Mas o que queria falar com a gente, mãe?

Gigi respirou fundo.

— Vai haver uma reunião com a prefeitura, o governador, a secretaria de saúde e os diretores de todos os hospitais e indústrias farmacêuticas da cidade. Eu fui convidada e quero as duas indo comigo. Vamos discutir sobre como contornar a situação, procurar outras formas de tratamento, saber o que fazer com as pessoas infectadas e etc. Qualquer coisa que possa ajudar.

— Quando vai ser isso? - Donatella perguntou interessada.

— Em alguns dias, até lá, nós vamos precisar relatar todo o movimento aqui no Querubins, inclusive os infectados que estão sendo mantidos no porão. As trancas automáticas não podem ser nossa única solução, para contê-los.

Como forma de segurança, os infectados eram mantidos numa ala protegida por trancas automáticas, mesmo que eles acordassem do coma induzido e tentassem escapar, uma porta com senha precisaria ser aberta.

— Posso ir também? - Alfinn perguntou.

— Esse tipo de lugar não é para crianças, filhote.

— Tudo bem, Dona. - Gigi disse com um sorriso. - Ele pode ir, não vejo problemas.

A diretora explicou mais alguns detalhes para a cirurgiã, que se retirou com o filho logo depois. No entanto, Maria parecia estar no mundo da lua.

— Está prestando atenção, filha? - Desde alguns dias atrás, Gigi estava repetindo essa pergunta constantemente.

— Sempre. - Não, ela não estava.

Maria não queria admitir, mas seu corpo precisava urgentemente de descanso, assim como a sua mente, que não parava de se preocupar com o mundo além da ilha. Ela escondia seu cansaço de todos, ficando propensa em cometer erros.

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Lívia montava a mesa do café da manhã, no estilo colonial como ela gostava, enquanto esperava a filha Lola, terminar de se arrumar.

Também loira, a mulher não aparentava ter mais de 40 anos, com uma beleza ímpar assim como a filha. Lívia conseguia ser a pessoa mais doce do mundo, a verdadeira melhor amiga de Lola, diferente do pai da garota, que só pensava em se aproveitar do dinheiro da esposa.

Lola chegou à sala, cumprimentando a mãe com carinho e juntas, sentaram-se.

— Como está indo as gravações do novo filme? - Lívia perguntou.

— Vai bem, o Digão não quer perder tempo e esperar a quarentena acabar, ele ainda está procurando um lugar para gravar as cenas da igreja. Já que nenhuma aceitou.

— Espero que dê certo. - Lívia sorriu gentil.

Minutos depois, Carla apareceu, com seu jeito espalhafatoso e se convidando para comer também.

— Trouxe o seu figurino, amiga!

Um reformado hábito de freira, mais apertado e curto nas pernas. Lola logo fez a primeira prova, com o figurino caindo perfeitamente ao seu corpo.

— Ser uma freira é um papel muito importante, filha. Precisa ser tratado com respeito. - Disse olhando para os olhos verdes de Lola. - Você também, Carla.

— Não sou como a Lola. - Tinha bastante arrogância nessa fala. - Tenho certeza que o meu vai ficar melhor.

— Isso é o que veremos. - Lola riu.

— Não podemos nos atrasar, amiga. Quero terminar tudo antes do Ano-Novo.

— É muita irresponsabilidade sair na rua agora, tem vários desses infectados por aí. – Lívia estava bastante aflita.

— Não precisa se preocupar, o Diego vai ficar sempre com a gente. – Lola respondeu.

— Não sei, filha. Tenho uma sensação estranha sobre esse filme, principalmente com a cidade desse jeito. É muito perigoso.

— Mãe... Se acalma, eu vou ficar bem.

O olhar de Lívia era de pura preocupação, algo no seu interior lhe dizia que tinha algo de errado com a sua filha, sentindo o mesmo que sentiu no desabamento do túnel

— Me prometa que vai se cuidar. Me prometa, Lola!

— Tudo bem, eu prometo que não vou morrer, nem me machucar.

Pareceu funcionar, persuasão era um dos melhores talentos de Lola, além da interpretação. Lola trocou de roupa, ela e Carla se despediram de Lívia e saíram do apartamento contentes.

Lívia passou a mão pelo peito, tentando acalmar o seu coração. Ela tirou o colar de pérolas, onde tinha um crucifixo como pingente, logo fez uma pequena oração, pedindo proteção para a sua filha.

Seu instinto de mãe nunca errava, ela tinha certeza de algum perigo sobre Lola.

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27 de Dezembro

A imensa televisão no quarto de Kaíque estava ligada, ele e Fred jogavam video game. Até que Fred parou de repente e jogou os consoles longe, o que era estranho para os padrões dele.

— O que foi cansou de jogar? – Kaíque indagou.

— Não, é só a minha cabeça, sinto que ela perto de explodir.

Fred foi até o enorme jardim de Gigi, o lugar era composto por várias estátuas, andando sem destino por elas, que mais pareciam lápides de um cemitério. Ele deitou na grama, sentindo o sol no rosto e ouvindo o barulho longínquo dos caças militares, tentando acalmar sua cabeça.

— Lembra daquele episódio do Futurama? Onde o Fry fica gripado e acaba contaminando a cidade inteira e para o vírus não se espalhar, Manhattan é colocada em quarentena para ser queimada direto no sol?

— Sim, mas isso não vai acontecer, é meio impossível fazer Cabo flutuar até o sol. - Kaíque também deitou ao lado dele.

— Não estou falando disso, besta. Mas de como ninguém se importava em destruir uma cidade, mesmo aquilo sendo um desenho, é meio macabro pensar. Aqui, eles já destruíram a ponte, o que mais podem fazer?

— Não acha estranho, que não tem quase nada na Internet ou na televisão, sobre como o mundo está reagindo ao vírus e a quarentena? Parece que ninguém lá fora está preocupado com a gente.

— Eles nem se importam, parece que já estamos mortos para o resto do mundo.

Fred suspirou, tirou um cigarro não convencional do bolso e o acendeu.

— Como conseguiu isso? – Kaíque não sabia desse detalhe. - Parece maconha?

— Maconha medicinal. Eu não faço isso para viajar nas vibes, ela está me ajudando com a enxaqueca. Até estou sendo mais legal com Alfinn, parei de chamar ele de Donatonto, bebê de Dona Mary, Alfredonho e o meu preferido: Fred #2.

— O mundo agradece, mas você não precisa disso. – Kaíque atirou o cigarro longe. - Tenho uma coisa melhor.

I wanna sleep next to you But that's all I wanna do right now

Kaíque se aproximou ainda mais, acariciando o rosto do moreno. Fred não esperava, mas fechou os olhos, sentindo suas bochechas corarem ao toque do melhor amigo.

And I wanna come home to you But home is just a room full of my safest sounds Cause you know that I can't trust myself and my 3am shadow

Fred adorava a companhia de Kaíque, ele sempre fora aquele que lhe acalmava depois dos surtos. Depois de tocarem suas mãos, ambos estavam próximos o bastante para que um sentisse a respiração do outro.

I'd rather fuel a fantasy than deal with this alone I wanna hold hands with you But that's all I wanna do right now And I wanna get close to you

Fred estendeu sua mão para o cabelo dourado de Kaíque, aproximando ainda mais a cabeça do loiro. Escutando seu coração acelerar, se comunicando com ele através de olhares expressivos. Depois deslizou sua mão pelas costas dele, sentindo a textura daquela pele de outro jeito.

Com mais desejo.

Cause your hands and lips still know their way around And I know I like to draw the line when it starts to get too real But the less time that I spend with you, the less you need to heal

Eles sempre nutriram algo além da amizade, desde quando os dois brincavam nas árvores, quando dormiam na mesma cama sem maldade e corriam juntos para mar sempre que podiam. Sem se preocuparem com os comentários dos outros.

But I wanna sleep next to you And I wanna come home to you I wanna hold hands with you I wanna be close to you

Fred confiava suas crises com Kaíque, sendo confortado pelo outro, deixando que as palavras de Kaíque fossem seu remédio. Que seu toque forte acalmasse seu espírito e o fizesse esquecer do mundo e dos problemas.

I wanna sleep next to you But that's all I wanna do right now

Os dois sorriram um para o outro, querendo que aquele amor natural durasse para sempre. Esquecendo do clima fúnebre de antes, deixando a tristeza de lado e focando no olhar um do outro.

Os dois garotos foram ficando com os lábios cada vez mais perto, até que se encontraram com um beijo carinhoso.

Apenas o primeiro de muitos que se seguiram.

But home is just a room full of my safest sounds So come over now and talk me down (Talk me down)

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Rita precisou ser carregada até um anexo do Hospital Querubins, já que o prédio principal parecia estar interditado. Vestida apenas com uma camisola florida e sandálias, ela foi colocada numa cadeira de rodas por um rapaz.

— Não precisava, Einstein. - Disse com má vontade.

— Na verdade, meu nome é Stein. - Ele a corrigiu.

— Tanto faz, tanto fez. - Rita não via diferencia nenhuma na pronúncia.

Antes disso, Rita foi encontrada caída na porta de sua mansão, alguns passantes ignoraram a mulher, já que os comentários ácidos de Rita incomodavam a maioria de seus vizinhos. Stein estava passando na rua e não pensou duas vezes antes de ajudá-la, mesmo sob os protestos de Rita, que discutira sobre não precisar da ajuda de um gay. Stein apenas ignorou.

Quando Rita chegou, ela reconheceu uma mulher loira com o cotovelo engessado. Uma vez, Rita se perdera na cidade, pedindo ajuda numa igreja na qual ela nunca tinha ouvido falar. Para sua surpresa, um gogoboy lhe recebera ao lado da loira, que se apresentou como Debora e perguntou se Rita queria aproveitar os serviços da boate.

— O que aconteceu com a senhora? - Donatella se aproximou.

— É o meu velho coração, ele não é mais tão bom quanto antes, mas já me sinto bem agora.

— Não posso deixá-la sair assim, precisa fazer alguns exames para sabermos a gravidade do problema.

— Depois do que aconteceu ontem? Não, obrigada.

Rita já foi se levantando, o massacre no Querubins já era notícia em toda ilha.

— Ainda estamos nos recuperando, perdemos alguns médicos, mas temos que lidar com esse incidente. Eu te garanto, que não tem mais nenhum infectado aqui. – Donatella garantiu.

— Espero que sim, minha filha. De tragédias e desgostos, a minha vida está cheia. - Rita apontou para Stein. - Acredita, que quando fui resgatada lá do túnel, vi um menino usando batom? Isso é uma vergonha? Cadê a mãe desse garoto?

— Está bem na sua frente e é melhor pensar duas vezes, antes de falar do meu filho.

— Ver seu filho fazendo isso não lhe dá raiva?

— Por que eu deveria? Ele não fez isso por querer, foi o beijo que dei nele mais cedo e mesmo se não fosse, meu amor é maior do que preconceito.

— A bíblia diz claramente, que nenhum homem deve se deitar com outro homem, do mesmo jeito que deita com uma mulher.

— Não é da minha conta quem fica com quem. O amor é o mesmo, entre qualquer tipo de casal. #LoveWins, querida.

A negra ficou branca de tão pasma, por não ter um resultado como o de Lourdes dias atrás. As outras pessoas que escutaram a conversa, aplaudiram Donatella e vaiaram a ofensora.

Rita saiu cega de raiva do hospital, quase sendo atropelada por uma van, que poderia tê-la atingido em cheio, mas o motorista parou vários metros antes dela.

— Obrigada, meu bom Deus! - Rita ergueu as mãos para o céu. - Por estar sempre livrando a minha pele, não deixando que nenhum mal me atinja.

Atrás da primeira, outras vans brancas deixavam o estacionamento, só que sem o logotipo do Querubins impresso nelas. A diretoria estava retirando todos infectados do hospital e levando-os para um lugar desconhecido.

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29 de Dezembro

Lola estava de frente para o espelho, passando creme hidratante por todo o seu corpo. Deslizando o líquido brilhante com sensualidade, sem querer ser.

Aquela não era a sua casa, apenas dormira lá com um novo amigo, que concordara em lhe ajudar em seu novo papel. Lola estava ansiosa para interpretar uma freira, uma personagem que ela nunca pensara em fazer e precisava se sair bem.

Entre suas andanças, encontrou um candidato perfeito para orientá-la: Tobias, um rapaz alto e musculoso, de pele clara e cabelos loiros bem curtos. Atraente e fácil de ser convencido.

Diferente da maioria das pessoas com quem saiu, a sua noite com Tobias foi incomum, o encontro começou sendo amigável e romântico. Lola não precisou manipular ou mentir para o rapaz, ele fora gentil e a tratou com carinho.

E para a sua surpresa, terminou sem sexo.

Tobias estava na cama atrás dela, fazendo suas orações matinais, quando precisou se levantar para atender a porta, dando de cara com sua mãe de consideração.

— Rita, eu não te esperava aqui hoje. - Tobias improvisou um sorriso. - Essa é a minha amiga, Lorelai.

Rita a fitou com os olhos semicerrados.

— Como conheceu o meu fil... Tobias?

— O meu próximo papel é ser uma freira, aí eu precisava de alguém da igreja para me ajudar e o Tobi foi tão gentil. - Lola falava, enquanto a passava a mão no rosto de Tobias.

— Entendo. - Rita se segurava para não pular no pescoço da menina. - Bem vi que está vestida como uma verdadeira meretriz.

— Nossa, muito obrigada! - Lola não escutou muito bem. - É tão bom ver que a terceira idade me reconhece como atriz.

Rita sentiu uma mistura de raiva e vergonha pelo rapaz, vendo aquilo como uma traição. Quando Lola aproximou seu corpo seminu de Tobias, dando-lhe uma visão gratuita de seus seios, Rita não pensou duas vezes e mostrou o seu lado possessivo.

— Fora daqui, sua vagabunda!

Lola não teve tempo de reagir ou falar, Rita agarrou a menina pelos cabelos e jogou-a porta afora, deixando a loira ao relento, apenas de lingerie vermelha para quem quisesse ver.

— Devolve a minha roupa! Sua demônia! Tobi!

— Não precisa de tudo isso, devolve o vestido dela, por favor. - Tobias pediu, ainda meio em choque pela cena.

— Eu vou devolver sim, sem problemas. Só que do meu jeito.

Com as próprias mãos, o vestido caríssimo foi feito em retalhos. Rita abriu a porta pela metade e jogou o que restava do vestido para Lola e a bolsa da garota.

— Aliás, meretriz é o mesmo que prostituta. - Disse sarcástica e bateu a porta de novo.

— Sabe o quanto custou esse vestido? Mais do que a sua casa, sua velha!

A loira se enfureceu ainda mais, além de ter pedaços de pano que mal lhe cobriam um dos seios, sua casa estava muito longe dali. Ao menos, ela ainda tinha a sua bolsa.

— O que deu em você? Perdendo sua virtude com qualquer rabo de saia que aparece por aí?

Dentro da casa, Tobias continuava perplexo pela reação de sua criadora.

— Eu sou homem, Rita. Tenho as minhas fraquezas pelo pecado da carne. Mas não aconteceu nada entre mim e a Lola.

— Isso não é desculpa, é falta de vergonha na cara.

— Também não é desculpa o que fez com ela, pode até estar brava, mas não precisava reagir assim. Rita, eu amo ser da igreja, mas isso não significa que eu concorde com tudo o que ela diz. Já me viu alguma vez, perseguindo e jogando pedras nos outros? Apenas por eles serem diferentes?

— Onde está querendo chegar?

— Agora que o pastor foi embora, eu vou destruir o GJC e quero que a senhora esteja ao meu lado nisso. – Tobias encarou os olhos cor de carvão dela. - Por favor.

— Perdeu o juízo, menino?

— Pelo contrário, Deus pode me escutar de qualquer lugar e aquela igreja, só faz transmitir o pior de mim. Ensinando violência e discriminação, do que o amor de Jesus pela humanidade.

— Acho que agora sei, por que você é o meu favorito. – Ela sorriu.

Rita passava as mãos sobre o peitoral de Tobias, como se estivesse limpando ele. Limpando até demais.

Ela sentia-se diferente ao estar perto de Tobias, um pouco diferente em relação aos outros filhos. Era como no início de seu casamento, a paixão e o desejo pelo corpo do marido, aquele calor entre as pernas que ela se esforçava para controlar.

— Pegando garotões agora, Rita? Você nunca foi disso.

Rita se afastou de Tobias com rapidez, assustada pela voz que escutara em sua mente, a voz de Raimundo.

— O que aconteceu? Parece que viu um fantasma. - Tobias estranhou os pulinhos que Rita dera.

— Não é nada. Pode colocar uma roupa, por favor? Meu coração não vai aguentar outro infarto.

Tobias nem se tocara, que estava usando só uma cueca apertada branca, com alguns pelos pubianos claros saltando para fora. Ele sentiu uma súbita vergonha, por Rita ter reagido desse modo, pensando que ela o via apenas como filho e pensar nela de outro jeito, seria pecado.

Quando Tobias entrou no banheiro, Rita visualizou Raimundo deitado na cama, o sorriso cínico estampado no seu rosto e os olhos brilhando por vê-la assustada.

— Esse é o garoto que você chama de filho? Imagina se não fosse.

— Por que você não volta para o túmulo? - Rita rangeu os dentes. - Onde é o seu lugar.

— Eu vou sim, mas você virá comigo antes. Juntos na Vida e na Morte.

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30 de Dezembro

Num dos prédios do centro, o escritório de psicologia da Dra. Soave recebia muitos novos clientes a cada hora. Cresciam os casos de sustos e mortes causados por infectados, junto com o número de pessoas que precisavam de apoio psicológico por causa deles.

Maria estava sentada numa das poltronas de veludo, tentando observar e escutar o que era discutido. Além de Maria, tinha mais três pessoas fazendo terapia em grupo, sobre como foram atacadas por infectados.

A pediatra não queria estar ali, achava que podia contornar a situação sozinha, mas Gigi praticamente lhe obrigara, era isso ou férias forçadas do trabalho.

— Quer compartilhar sua experiência conosco, Maria? - A Dra. Soave perguntou.

— Oi? - Ela nem estava prestando atenção. - Claro, me desculpem.

Ela respirou fundo, pensando apenas no fato em si e não no pânico.

— Eu lembro que fiquei presa no elevador do hospital, até aí tudo bem, sabia que uma hora ou outra já, o problema seria consertado. Depois de alguns minutos, saí do elevador no andar errado e fui para as escadas, mas... - Ela não conseguiu terminar.

— Tudo bem, querida. - A psicóloga lhe acalmou. - No seu tempo, não tenha pressa.

— Encontrei com um infectado na minha frente, meu cérebro congelou e tudo o que passava na minha cabeça eram pensamentos inviáveis, apenas corri e até ser ajudada por um amigo.

Maria arfou com tristeza, lembrando dos médicos que morreram nas mãos dos infectados, seus próprios pacientes.

— Fomos programados para falhar, Maria. Naquele momento, seu instinto de sobrevivência ativou, seu subconsciente só se preocupava em achar uma saída, por menos lógica que ela parecesse.

— Esse é o problema, antes e depois do desabamento do túnel, eu consegui me controlar perfeitamente. Não sei o que deu em mim, tenho um Q.I. de 170, francamente.

— Muitas pessoas vêm aqui dizendo serem capazes de lidar com pressão, mas nem sempre isso acontece. É totalmente normal se desesperar. Tire um tempo para ficar com a sua família, com seus amigos ou qualquer coisa que lhe faça se sentir bem.

— Obrigada, preciso mesmo estar totalmente recuperada antes de voltar ao trabalho. Ajudar pessoas é o que me faz se sentir bem, até mais do que debater sobre o Big Bang.

Maria parou para refletir, que depois de noites em claro, o cansaço e sua teimosia lhe provocaram aquela reação. Ela precisou se desligar do remorso, voltando sua atenção para a Dra. Soave, que sorria orgulhosa para ela.

— Quando você chegou, vi uma mulher destruída e se sentindo culpada por ter errado. Agora, vejo uma mulher muito inteligente, pronta para aprender com seus erros e aproveitar o máximo de sua vida.

O cronômetro zerou, indicando o término da conversa, os outros pacientes já tinham sido escutados e eles se dirigiram para a saída, mais tranquilos e confiantes.

=-=-=-=-=

Thiago fechava os portões de ferro da loja, já que a Sabrinfetamine's não recebia um cliente há dias. Enquanto as escolas da cidade continuassem fechadas, ele precisava de algo para se ocupar, qualquer coisa, menos ficar no tédio de uma loja vazia.

Seus cabelos loiros balançavam com o vento, sentindo a brisa marítima no rosto. Depois dele e de Sabrina decidirem fechar a loja mais cedo, Thiago seguia para a sua casa, poucas pessoas estavam na rua, assim como poucos carros passavam.

Uma garota passou correndo por ele, seguida de um homem alterado e que gritava ameaçando a vida dela. Thiago continuaria andando, mas ao ver o rosto da garota, contra um homem duas vezes maior que ela, o loiro decidiu intervir.

— Essa mini vadia me roubou! – O homem gritou.

— Vadia é a sua mãe! - A mendiga retribuiu lhe mostrando o dedo do meio.

O homem avançou contra a moradora de rua, segurando-a pelo pescoço. A garota foi levantada no ar, se debatendo e tentando arranhar seu agressor.

— Calma, cara. – Thiago não pensou, apenas tentou separá-los.

— Não se mete! - O homem o afastou.

— Seja lá o que aconteceu, quebrar o pescoço dela não vai adiantar. Pensa bem no que está fazendo.

A menina chegou perto de ficar azul, mas foi solta, caindo no chão com um baque.

— Você tem muita sorte, pirralha. Eu tenho uma ótima vida e não vou desperdiçá-la, por causa de um nada feito você. – E foi embora.

A garota se levantou e tentou se recompor.

— Isso foi muito heroico da sua parte. Ou muita burrice.

— Você está bem? - Perguntou.

— Vou ficar, obrigada... Kurt Cobain.

Thiago sorriu.

— Bom, se precisar de ajuda, eu posso te comprar alguma coisa. Aceita?

Os olhos dela brilharam.

— Qualquer coisa, menos pão. Já estou cansada de pão!

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Mesmo sendo de noite, numa cidade assustada e próxima à virada para um novo ano, Maria tentava se controlar e manter a calma em qualquer situação. Kaíque estava com ela e os dois voltavam para casa.

Eles tinham pegado o metrô, não que Maria quisesse estar ali, mas o seu carro fora perdido no acidente e com as crescentes guerras entre taxistas e motoristas do Uber, o metrô parecia ser mais seguro naquela ocasião. No vagão onde estavam, só havia mais um rapaz, que parecia distraído demais para notar a presença deles, podendo até achar que estava sozinho ali.

— Essa é uma péssima ideia. - Disse ela baixinho. - Me lembra de não te escutar na próxima vez.

— Não se preocupe. - Assegurou Kaíque ao seu lado. - Tem militares do lado de fora, eles não vão deixar nenhum infectado entrar.

Era meio verdade, a presença militar continuava ativa na cidade, mas só as unidades médicas e de controle da peste apareciam com frequência.

Com o Querubins interditado, Maria e outros médicos restantes foram redirecionados para outros hospitais menores da região, ela foi colocada num lugar onde Gigi julgava ser mais seguro: uma maternidade.

O metrô chegara ao seu destino, o rapaz loiro saiu carregando uma rosa amarela, permanecendo na mesma estação e esperando pelo próximo trem.

Maria e Kaíque estavam próximos da escada rolante, que os levaria de volta à superfície. Uma mulher apressada trombou com ela, deixando sua bolsa cair e Maria parou para ajudá-la na recolha de seus pertences.

Havia diversos papéis, maquiagem, um macacão amassado e uma imitação de óculos Prada. Mesmo que não usasse roupas e acessórios de grife, Maria sabia reconhecer o falso de um original apenas olhando.

— Você viu o que eu vi? - Maria olhou para o irmão, assim que a mulher se afastou. - Uma arma?

Kaíque assentiu em silêncio.

— Aquela não é a editora da Falcon Magazine? - Perguntou o garoto. - Meio difícil de reconhecê-la sem o macacão.

— Podemos chamar isso de milagre.

Maria continuou observando a mulher, que se aproximava do loiro com a rosa, na área de embarque e desembarque. A pediatra estava pronta para subir pelas escadas e esquecer o que vira, mas um grito de socorro lhe fizera mudar de ideia.

Por algum motivo, o loiro caíra nos trilhos do trem, a editora da revista se prontificou para ajudá-lo, um pouco tarde demais. O impacto do trem contra o rapaz foi forte o suficiente para dividir seu corpo ao meio, numa explosão violenta de sangue e órgãos do sistema digestor.

Suas pernas foram fatiadas em pedaços pelas rodas, sendo espalhadas pelos trilhos, o odor de carne fresca fizera alguns ratos se aproximarem, prontos para o jantar. A editora continuava gritando, coberta de sangue e um pedaço do intestino delgado no cabelo. Ela espanou os resíduos de seu vestido longo, fez o sinal da cruz e se afastou, tentando não escorregar no sangue.

Maria e Kaíque se aproximaram do corpo, nenhum deles estava com medo. Maria trabalhava principalmente com crianças, mas fizera e assistira muitos trabalhos que lidavam com corpos desmembrados e se acostumou com isso. Kaíque era fascinado por séries de zumbis e jogos violentos, tais cenas sangrentas não mais lhe assustavam.

— Liga para a polícia, Ka. - Maria lhe deu o celular. - Avise que tem... metade de um corpo na estação Laura Hale.

Na metade que sobrara, o dorso repousava na estação com o sangue ainda jorrando, Maria respirou fundo e tentou focar apenas no rosto, vendo a expressão do morto congelada num sorriso inocente.

A mochila do rapaz se abrira e uma correia de bicicleta parou perto dos pés de Maria, a correia embrulhada para presente, com um cartão preso a ela. Maria se abaixou e o pegou. Dentro do cartão, havia uma foto do rapaz com uma garota morena, sorridentes em cima de uma bicicleta amarela e um parque verdejante atrás.

Além da foto, tinha um bilhete, na qual estava escrito:

"Diana, sei que será difícil me perdoar, por todo o que te disse e fiz. Nunca foi minha intenção ser um completo idiota e te magoar. Talvez, eu não veja o seu rosto de novo, mas os momentos que passamos juntos, foram os melhores da minha vida."

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31 de Dezembro

Rita chegou na igreja de manhã cedo. O primeiro andar do prédio era bem alto, com mais de três metros de pé-direito, acima dele, funcionava o escritório do pastor. No pouco tempo que Rita deixara de entrar ali, a igreja parecia abandonada e empoeirada, e os bancos de madeira haviam sido amontoados numa pilha enorme perto da porta.

— Minha boa igreja, o que fizeram com você?

— O que fizeram antes eu não sei. – Tobias respondeu. – Mas sei o que faremos agora.

Nas mãos de Tobias, estavam um galão de gasolina e um extintor de incêndio, para caso de alguma coisa der errado.

— Religião pode ser usada para o bem ou mal, infelizmente, ela não foi aplicada da melhor maneira aqui. Abra os olhos, Rita.

— Foi nesse lugar que me senti aceita. – Uma lágrima escorreu pelo rosto dela. – Depois de tudo o que fiz.

— Eu não acredito que seja assim, sempre vi bondade em seu coração, mas ele foi corrompido pela fé cega que mantem por esse lugar e vamos nos livrar desse mal.

— Isso ainda não vai apagar tudo o que falei sobre os gays, esse pensamento nasceu comigo.

— Se até o Papa, o maior líder da Igreja, apoia o casamento deles, quem somos nós para dizer não? Eles são gente como a gente, só que gostam de outras coisas.

Rita calou-se, tocada pelas palavras de Tobias. Antes de ter recebido a visita das Testemunhas de Jeová, Rita viveu presa em sua mansão, fechando-se para as mudanças do mundo, ela nem conseguia pensar no que sabia sobre homossexualismo da forma que pensava agora.

A luz que vinha de fora, iluminava os vitrais coloridos da igreja, refletindo um arco-íris no rosto de Rita.

— Vamos acabar logo com isso!

Ela despejou um galão inteiro na pilha de bancos de madeira e os incendiou, as chamas cresceram tímidas, dando espaço para uma grande fogueira.

Quando ela e Tobias estavam saindo, se depararam com uma movimentação estranha no lado de fora

— O que aconteceu?

— São os infectados! – Tobias disparou.

Eles estavam entre a fogueira e os infectados.

— Valha me Deus! – Seu coração disparou.

— Vá logo, esconda-se no andar de cima. Eu bloqueio a porta!

Rita esqueceu da idade e foi bastante ágil, se lançando escadaria acima.

Suas sandálias se moviam pelo assoalho de madeira do pequeno escritório, tentando desviar das cordas estiradas ali, já que o piso estava instável depois de um vazamento de água anterior. Rita esqueceu estar interditado,

As paredes estavam rabiscadas com diversas frases, mas nada em português, elas pareciam estar escritas em arcaico antigo.

— Vai finalmente desistir, Rita?

— Quando você vai me deixar em paz?

— O mal feito pelos homens, fica em segundo plano comparado com o mal primordial e esse não pode ser combatido.

— Você não existe mais, está só na minha cabeça. Uma memória que vou esquecer.

Parecia que a escuridão se movia, rostos surgiam ao seu redor, ganhando forma conforme ela tentava enxergar e ia girando e girando. As cordas iam se enroscando em seus pés e a cada rodopio que Rita dava, o piso de madeira ia rangendo ainda mais.

E antes que percebesse, o piso cedeu e Rita caiu através dele, mas para a sua sorte, ela conseguiu se segurar nas cordas presa no andar superior.

Rita tentava se mover, mas as cordas se prendiam ainda mais aos seus braços, suas pernas e o seu torso, deixando a mulher dependurada, como uma marionete. A pequena chama que ela criara anteriormente, cresceu e transformou os bancos de madeira numa fogueira sob Rita.

O fogo do inferno espera por você!

As chamas chamuscavam seus pés, fazendo a mulher se sentir como uma presa num churrasco, não demoraria para morrer sendo assada em fogo baixo.

Mas não foi o que aconteceu, quando Rita pensava em finalmente desistir, Tobias apareceu com o extintor de incêndio do seu carro. As chamas foram se apagando aos poucos, Rita gemia de dor por causa das queimaduras em seus pés, mas ela sorria.

Sentindo-se vitoriosa.

— Pela Graça do meu bom Deus, eu não vou morrer agora! Obrigada!

=-=-=-=-=

Amélia estava na recepção do CAPS, assistindo Tico e Teco procurando desesperados por Mariano, o paciente fugitivo. No começo da manhã, ela não acreditava que Mariano fugira de verdade, mas ficara feliz e esperava sua bomba-relógio fazer contato.

Ela imaginava como seria sua vida ao lado do esquizofrênico, mas também estava preocupada, tanto com ele, quanto o seu emprego no CAPS. Se a diretoria soubesse, que ela tinha dormido e tirado a virgindade de um paciente, era demissão na certa.

— Amélia! - Janisce lhe chamou atenção. - Quer uma xícara de lê café com chocolát?

— Acho que agora não. Você tem notícias do Mario?

— Eu sonhei com ele, mas parecia tão real. Não sei explicar, mas ele deve estar num lugar melhor agora.

As duas estavam na ala feminina da clínica e através de uma janelinha de vidro na porta do quarto, Amélia via uma senhora ninando um boneco, cuidando dele como se fosse uma criança de verdade.

— O que aconteceu com ela? - Janisce perguntou.

— Ela vivia repetindo que não deveria estar aqui, que uma megera destruidora de lares tinha roubado o seu bebê e outras coisas. Não prestei atenção na ficha dela quando cheguei.

— Só tem gente maluca nesse lugar. - Deu de ombros.

— Percebi. - Amélia continuou observando a paciente, que colocou o boneco no berço e tirou um celular escondido nas dobras do corpo. - Não sabia que permitiam celulares aqui.

A mulher escutou e escondeu o celular embaixo do travesseiro, sorrindo para a funcionária, como se não tivesse feito nada.

— Não vai demorar muito, i will take my baby de volta. Ele foi sequestrado, sabia? Se te oferecerem uma maçã, não aceite, is poison. The Evil Queen mente, sempre mentiu.

Amélia não entendia a fala confusa da mulher. Quando a paciente estava medicada, parecia se comportar como uma adolescente normal, sem os remédios, ela misturava o português com inglês australiano e ninava seu filho de plástico o dia todo.

— Qual é nome dela? – Janisce já tinha acabado seu café com chocolate. - É alguma famosa?

— Márcia Bella, mas é chamada só de Mabel. A Dra. Maciel é quem cuida dela.

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Depois do almoço, Lola e Carla chegaram no teatro, que ficava no centro da cidade. A rua estava movimentada, pelas pessoas que saíam de seus trabalhos para poderem comemorar o novo ano. Isso aumentava a segurança de Lola sobre o aviso de sua mãe.

— Estão atrasadas. - Disse Diego, ligando logo a câmera.

— Tem sei lá quantos infectados por aí, obrigada pela preocupação.

— Carlinha, por incrível que pareça, você está ótima hoje.

— Não vai me elogiar não? – Lola sentiu uma pontada de ciúmes.

— Você não precisa de elogios, já que é segunda mulher mais bonita. Desculpa meninas, mas só tenho olhos para a Emily.

Elas nem se abalaram

— Mas não vemos perder tempo, nessa cena de hoje, a freira foi baleada e sabe que vai morrer, ela desce até o final da escadaria, onde o Anjo da Morte espera para dar lhe um beijo.

— Anjo da Morte? – Lola perguntou.

— A Carla improvisou um pouco e acho que ela vai ser ótima nesse papel.

— Agora entendi o porquê dessa fantasia de urubu aí.

Carla se sentiu ofendida.

— Eu sou o Anjo da Morte, querida! Estou aqui para levá-la.

Diego, Lola e Carla já estavam prontos para começarem.

Uma escada em espiral foi montada no palco, sendo pouco menos de três andares de altura, mas para a loira, era o mesmo que cem andares.

— Essa escadaria parece meio frágil. – Lola percebeu

— Foi feita nas pressas, mas aguenta sim, é só não mexer na fundação.

— Eu tenho que subir até lá em cima?

— A ideia é essa.

— Diego, sabe que tenho medo de altura. Não me arrasa não!

— Certos sacrifícios precisam ser feitos, vamos lá, Lola. Você consegue!

A fobia de altura de Lola era sempre um problema, ela nem prestava atenção quando subia para o seu apartamento. Mas aquele era o seu trabalho.

E ela faria o que fosse preciso.

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Como muitos dos pacientes internados, Cabo da Praga sobrevivia com a ajuda de aparelhos, procurando por motivos para se manter de pé, quando tudo parecia estar acabado.

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Gigi reativou o prédio anexo ao Querubins. Um lugar pequeno, mas era o suficiente para atender os pacientes restantes. Graças à desastrosa chacina, que abatera quase o hospital inteiro, incluindo médicos e pacientes.

Donatella e Alfinn estava na sala de espera, quando Gabriel procurou por ela, acompanhado de uma mulher.

— Dona, lembra da minha irmã, a Hello?

— Lógico que lembra, eu que ensinei ela esse visual de motoqueira sexy, toda montada no couro. - Mia piscou para a médica.

— E também, a minha advogada é a professora dela, foi assim que nos conhecemos.

Passado o momento de apresentações e cumprimentos, os gêmeos se lembraram do motivo

— Dona, é ótimo ver você de novo, mas precisamos conversar sobre um assunto sério. – Tinha muita preocupação na fala de Mia. – E é melhor chamar a Maria também.

Mia estava pronta para contar o que tinha escutado no bar, mas não queria que Alfinn escutasse, isso não era para a idade dele. Gabriel então percebeu a deixa da irmã.

— Alfinn, que tal você e eu irmos até aquelas máquinas de lanche, e trazer um monte de chocolates para todos? - Gabriel perguntou e Alfinn logo olhou para mãe, lançando uma expressão de dúvida.

— Tudo bem, mas não exagere, não vai querer ter outra cárie de novo.

— Vamos lá, parceiro!

Donatella observou como o Alfinn e Gabriel se davam bem, Marco não tinha muita disposição para brincar com os filhos, sempre reclamando de dores nas juntas. Gabriel era jovial, bonito e sobretudo, gostava de seus filhos. Era só o que precisava para fazer ela se apaixonar.

Assim que os dois saíram, Mia entregou um resumo detalhado do que ela e seu amigo Erick sabiam, contando também sobre o homem que testemunhara morrer de madrugada.

— Nós nem sabíamos o nome dele, foi tudo tão rápido.

Donatella não conseguiu falar nada, tentando absorver a novidade nada agradável de Mia.

Mia ainda ia contar mais coisas, porém a conversa foi interrompida, quando um enfermeiro apareceu na sala.

— Dra. Maciel, tem um rapaz te procurando lá em baixo, um tal de Renan.

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— Gravando!

Lola já estava no alto da escadaria, depois de muito custo ter chegado ali. Ela subiu cada degrau sem olhar para baixo. Todas as outras cenas já foram gravadas, só faltava a morte da freira.

— Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.

Tinha uma mancha de sangue falso em seu hábito, a freira descia a escadaria arrependendo-se dos seus pecados.

— Não te lembres dos meus pecados da minha mocidade, nem das minhas transgressões; mas a segundo a tua misericórdia, lembra-te de mim, por tua bondade, Senhor.

Carla olhava para ela, numa mistura de companheirismo e inveja. Diego mantinha sua câmera no rosto de Lola, muito bem maquiado e transmitindo uma dor verdadeira.

Enquanto descia os degraus, tentando se concentrar em suas falas, Lola escutou um barulho estranho, os refletores do palco começaram a piscar e um vento frio percorreu o seu corpo.

— Senhor fizeste subir a minha da alma da sepultura; conservaste-me a vida para que não caia no abism... Inferno! - Lola gritou, quando todos os refletores piscaram e se apagaram.

— O que aconteceu? – Carla e Diego perguntaram ao mesmo tempo.

— Alguém pode acender logo isso e me tirar daqui de cima?

— Lola, fica calma! – Diego gritou lá de baixo.

As pernas da loira tremiam, ainda mais por estar usando salto alto. Lola só conseguia pensar no medo que tinha da altura, sentindo que despencaria a qualquer momento.

— Não.... Eu não consigo!

Estar presa no alto de uma escada bamba e sem poder enxergar era aterrorizante para ela.

— Eu vou até aí, Lola! – Carla tateava no escuro, procurando pelo primeiro degrau da escada, enquanto Diego ligava a luz noturna da câmera.

— Não, não, não...

Ela não conseguia ficar parada, se baixou e começou a descer engatinhando para trás.

Lola se acalmou sentindo que estava conseguindo, até sentir algo lhe pegando e puxando para baixo. Lola tentou focar no vulto Anjo da Morte, antes das duas perderem o equilíbrio e serem atiradas no vazio.

=-=-=-=-=

Renan chegou tímido, tentando se lembrar se um já vira as pessoas daquela sala, apenas reconhecendo Donatella e Maria, que chegou junto com ele.

— Motoqueiro! – Mia exclamou.

— Você me conhece?

— Não, mas você é quase uma celebridade entre a gente. – Ela riu.

— Sou Donatella. – A médica cumprimentou o rapaz. - Me disseram que você estava me procurando?

— É, eu lembro que você acreditou em mim, lá no túnel, antes de toda aquela tragédia acontecer.

— E você previu o acidente, antes dele acontecer.

— Como sabe?

— Você teve uma premonição. – Mia disse. – A editora da Falcon Magazine, que também estava no túnel, me contou tudo.

— Já tem mais gente sabendo disso? – Renan se sentiu passado para trás.

Mia afirmou.

— Ela disse, que existe três métodos para escapar da maldição: ter um filho, matar alguém fora da lista ou matar o visionário, você nesse caso.

Maria, estava em silêncio até então, mas ela não pode deixar de se sentir incomodada ao mencionarem a editora da revista.

— Esperem um pouco, ontem mesmo eu vi essa mulher, eu me esbarrei com ela na estação do metrô e a sua bolsa caiu. Quando eu parei para ajudar, notei uma arma de verdade e logo depois disso, um rapaz caiu nos trilhos do trem e foi morto.

— Está achando que foi ela? – Donatella perguntou.

— Eu pensei que ela estivesse ajudando ele, mas se tudo o que estão dizendo for verdade. Talvez ela tenha escapado da lista. Ou não, vai saber.

— Se essa mulher realmente estiver atrás de você, Renan. Vai precisar tomar cuidado, se ela já matou uma pessoa, pode te matar também. – Mia lhe alertou.

— Sim, se você é mesmo o visionário, é melhor se lembrar de cada detalhe do que viu naquele túnel. – Foi a vez de Donatella.

— Esse é o problema. – Renan se sentiu constrangido para falar, mas era necessário. – Eu tenho amnésia, de todo o meu passado e o túnel.

O nível de esperança das mulheres despencou.

— Você deve ter amnésia psicogênica. – Maria disse como se fosse simples.

— Desculpa, acho que nem todos aqui sabem o que é isso.

— Em casos de traumas ou problemas sérios na cabeça, as ligações entre as células nervosas do cérebro são rompidas com a lesão no hipocampo, depois disso, ele envia suas memórias para diversas partes do córtex cerebral. Consegue me entender?

— Mais ou menos, mas continue.

— Suas lembranças antigas estão aí, essas nunca serão apagadas, mas as lembranças recentes são perdidas e outras deixam de ser assimiladas. Por isso você não consegue se lembrar.

Renan fez uma expressão confusa.

— Quer dizer que eu perdi tudo o que vi?

— Lamento dizer, mas provavelmente sim ou talvez, é um milagre que ainda consiga se lembrar do rosto da Donatella.

— Isso não é bom, segundo essa Marcela, existe uma lista com a ordem das pessoas que vão morrer. – Mia disse.

— Já temos as duas médicas, a Mia e o amigo dela, essa tal editora, Thereza e a mendiga. Quem mais falta? – Perguntou Renan.

— É o que precisamos descobrir. – Donatella estava pensando em Alfinn e Fred. – Antes que seja tarde demais.

=-=-=-=-=

Apesar de Rita ter comemorado anteriormente, ela ainda estava presa naquelas cordas, que não se partiam por nada. Tobias continuava tentando deter os infectados de entrarem.

O rapaz era forte, mas não segurar aquela porta para sempre.

Em outras situações, Rita teria usado a força física para punir qualquer um, que cogitasse em lhe abandonar, mas com Tobias era diferente. Se ele continuasse ali, seria morto.

— Deixe-os entrar e fuja, filho. – Rita disse com dor.

— Não! – Gritou. - Não vou te deixar sozinha aqui.

— Eu já tenho companhia, Tobias. Salve-se logo.

Rita significava muito para Tobias e ele não tinha coragem de deixá-la, mas reconhecia a situação dos dois. Os infectados lhe matariam antes que ele pudesse libertar a mulher daquelas cordas.

— Me perdoe, Rita. Eu tentei.

Num impulso, Tobias correu para o lado, deixando que as portas fossem arrombadas e os cinco infectados passarem direto por ele e se aproximarem cada vez mais de Rita. Assim que pode, ele lançou um olhar triste para a senhora e foi embora.

Bem perto de Rita, Raimundo ali, esperando por ela.

— Não vai demorar muito e estaremos juntos, só deixe os infectados acabarem logo com isso. Esse é nosso destino.

O casamento de Rita com Raimundo era como um negócio, a família dela precisava do dinheiro, ele precisava de um corpo jovem para se satisfazer. Por mais que Rita sofresse, sua devoção e esperança no marido a prendiam, ela acreditava que Raimundo pudesse mudar e ser mais gentil, só precisava se esforçar mais.

My lover's got humour She's the giggle at a funeral Knows everybody's disapproval I should've worshipped her sooner

Com o tempo, Raimundo a fizera acreditar em uma vida solitária sem ele, que Rita jamais seria feliz com outra pessoa. Aproveitando a falta de afeto na vida de Rita, para transformar a mulher numa escrava sem correntes, presa por suas emoções.

If the heavens ever did speak She is the last true mouthpiece Every sunday's getting more bleak A fresh poison each week

Ambos nasceram doentes: Raimundo por não saber controlar sua ira e Rita por querer ser submissa a ela. Raimundo poderia ser a pior pessoa do mundo, seu veneno, mas Rita não se importava, deixava seu marido matá-la todos os dias, só para mantê-lo ao seu lado. A Igreja provava, de como a mente de Rita era fácil de ser influenciada, moldando a mulher frágil em qualquer situação, fazendo ela se sentir bem, mesmo que não estivesse realmente.

We were born sick You heard them say it My church offers no absolutes She tells me, "Worship in the bedroom" The only heaven I'll be sent to Is when I'm alone with you

Rita era como uma boneca, uma marionete recebendo e atendendo à diversos comandos. Primeiro de Eleonora, depois de Raimundo, a Igreja e por último, de seu próprio subconsciente, distorcido após tantos anos de controle.

A Igreja era onde estabelecera sua base, dedicando sua vida para um Deus, que ela não sabia ou importava se existia, mas sentia que estaria segura nos passos dele e de seus seguidores.

Take me to church I'll worship like a dog at the shrine of your lies I'll tell you my sins So you can sharpen your knife Offer me that deathless death Good God, let me give you my life

Os mesmos seguidores que foram infectados e adentraram na Igreja. Rita não tinha forças para se soltar, seu corpo era pesado demais, ela reconheceu os rostos dos jovens da GJC, quem ela tratava como seus filhos e esperou por eles.

Presa numa cruz figurativa, os infectados se aproximavam rapidamente, subindo pela fogueira morta dos bancos, logo suas velozes mãos arrancaram e despedaçaram seu velho vestido de Rita, deixando-a como veio ao mundo.

Ao primeiro grito que dera, um infectado lhe estapeou a boca, deixando uma mancha de sangue contaminado em seus lábios. Rita cuspiu enojada, mantendo o olhar fixo em suas crias.

We've a lot of starving faithful That looks tasty That looks plenty This is hungry work

Os infectados abriram passagem para Lourdes, que também foi infectada, ficando de frente para a mulher.

Lourdes cravou suas unhas nos braços de Rita, deixando que o sangue escorresse pelos ferimentos. O olhar de Lourdes era confuso e perdido, mas havia uma chama dentro deles, de que a justiça estava sendo feito pelo filho suicida.

Após Lourdes, os outros infectados usaram sua unhas e dentes como pequenas facas, arrancando pedaços de pele da mulher, sentindo o cheiro e o sangue que emanava de sua criadora, os banhar.

Seu grito ecoou por toda a igreja.

Enquanto a pele de Rita era tirada pedaço por pedaço, ela sorria, a dor estava lavando a sua alma, limpando-na de uma vida mentirosa e pecadora. Os infectados perfuravam sua carne rapidamente, apenas pelo prazer de fazer isso.

No masters or kings when the ritual begins There is no sweeter innocence Than our gentle sin In the madness and soil of that sad earthly scene Only then I am human, only then I am clean Amen, amen, amen

Sua cabeça foi tombada para frente, e uma mulher infectada aproveitou para tirar seus dreads á força, levando um pouco do seu couro cabeludo também.

O corpo quase sem vida de Rita era carne viva, a pele negra da mulher descolava de seu rosto várias vezes arranhado, assim como quase todo o seu corpo. Rita continuava pendurada, com os braços abertos e olha fixado nos anjinhos desgastados no teto, que sorriam para ela.

Sua vez tinha chegado e tanto importava para onde iria, sua alma estaria liberta daquele mundo.

Offer me that deathless death Good God, let me give you my life

Rita só teve tempo de fechar os olhos e erguer suas mãos, pronta para deixar sua vida e finalmente descansar.

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Poucos minutos para a meia noite

Tobias acreditava que seria diferente, que Rita poderia ter uma nova vida ao lado de Rita, querendo apagar seu passado sofrido e turbulento e construir um novo Grupo Jovem Cristão ao lado dela.

Maria Rita dos Prazeres era uma mulher complicada, mas era a uma pessoa boa que teimava em não mostrar isso, uma chance lhe foi dada para mudar e ela a abraçou antes de morrer.

Another year you a made a promise

Another chance to turn it all around

Lola acordou nos braços de Lívia, ela só sabia que tinha desmaiado durante a queda e caído por cima de Carla, o Anjo da Morte. Lola sorriu ao receber o abraço de seus amigos e junto com eles, comemorara por estar bem.

Aquela não era a sua vez de morrer.

And do not save this for tomorrow

Embrace I will give the world to you

O apartamento de Natasha tinha uma vista perfeita para a queima de fogos. Cabo da Praga queria ressurgir, não mais ficar abatida pela prisão forçada, ela ainda vivia pela resistência de seus moradores, que gritariam o quão forte eles eram.

Speak louder that the words before you

And give them meaning no one else has found

Cause in the end we have each other

Max tirou um pedaço de papel de seu bolso, desdobrou e o passou para Natasha. Impresso na página de obituários da Falcon Magazine, a notícia que Gustavo Lyra morrera ao cair nos trilhos do metrô. Natasha olhou para Alfa, suspirou e amassou o papel.

Seu amigo não precisava de mais essa tristeza agora, decidindo contar quando achasse apropriado.

And that al least one thing worth living for

And I would give the world to you

Amélia continuava esperando, já havia se passado várias horas desde o desaparecimento. Ela sabia que as paredes do CAPS não prenderiam Mariano por muito tempo, mesmo que ele não voltasse para ficar com ela.

Seu celular tocou e ela atendeu esperançosa, era o CAPS, comunicando que Mariano tinha sido encontrado morto numa casa abandonada, do outro lado da cidade.

Suas pernas fraquejaram e assistente desatou em lágrimas.

A millions suns that shine upon me

A million years you are the brightest blue

Let's tear the walls down that divide us

And build a statue strong enough for two

Brilhando no ar, os primeiros fogos de artificio foram lançados.

Com Samara infectada e a ilha em quarentena, o produtor teria que remarcar as gravações em Valadares Brandão, onde aconteceria seu novo filme. Para Alfa, 2016 seria o pior ano de sua vida, mas o produtor faria tudo para torná-lo, o melhor para Ester e seus amigos.

Ele não desistiria tão fácil.

I pass it back to you

And I will beat for you

Cause I would give the world

Renan ficara intrigado com o que Donatella e Mia lhe disseram sobre uma possível lista da Morte, mas isso o fizera confiar ainda mais nos seus instintos e encontrar as pessoas no túnel. Ísis apareceu sorridente na sacada da janela, onde ele se encontrava, segurando duas taças com champanhe, ele sorriu ao vê-la e os dois brindaram.

Mesmo sem lembrar de seu passado, um novo futuro lhe esperava e Ísis era a melhor pessoa para se ter ao lado.

And I would give the world

And I would give the world to you

This is the new year

Maria ainda estava com a correia da bicicleta, prometendo que entregaria para Diana quando tivesse a chance.

Ela finalmente conseguia se sentir bem consigo mesma, deixando os acontecimentos do passado no passado. Sua família estava ao seu lado, contentes por sua reviravolta.

Nada poderia estragar isso.

A new begining

You made a promise

You are the brightest

We are the voices

Donatella parou de olhar para o celular, Unknown Joker não lhe respondera mais e no fundo, ela achava que era melhor assim. Foi uma amizade que surgiu de repente, sem bases ou visão de futuro.

Gabriel estava fisicamente ao seu lado e novos sentimentos estavam surgindo por ele. Era um novo ano, onde qualquer coisa poderia acontecer entre os dois.

This is the new year

Depois que os fogos se extinguiram, Donatella carregou Alfinn até o quarto de hóspedes, colocando o garoto com cuidado na cama.

— Mãe, ainda falta uma coisa. – O garoto disse. - Vou pedir à Deus, que mande um Feliz Ano Novo, para o pai lá no céu.

— Então vamos fazer isso, filho.

O garoto ajoelhou nos pés da cama, com as mãos juntas e os olhos fechados, Donatella se ajoelhou também e deixou que Alfinn orasse em voz alta.

Depois de escutar o que foi dito entre Renan e as meninas, Donatella temia que Fred e Alfinn estivessem na lista também, por isso, ela não desistiria em ficar o máximo de tempo com eles. E fazer o que fosse necessário para livrá-los da maldição.

Quando se tocou, Alfinn já estava terminando a prece.

— Para livrai-nos de todo o mal... Amém.