Dezembro de 2014

Havia muito sangue no chão.

Uma mulher andava mancando pelo corredor, ela tinha alguns estilhaços de vidro decorando seu cabelo escuro e seus pés estavam sujos de terra. Atrás dela, uma faxineira limpava cada passo marrom, que a mulher imprimia no piso de mármore branco.

Horas atrás, Eleonor e sua família sofreram um acidente de carro, que matara seu marido e os outros dois filhos. Mas ela e a pequena Alice sobreviveram, a menina de 12 anos foi encontrada inconsciente e com uma perna embaixo das ferragens, correndo um alto risco de perder o membro. E a vida também.

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Seu rosto estava pálido, a menina mal conseguia manter os olhos abertos de tão fraca. Havia lacerações na perna direita, o fêmur estava fraturado e uma artéria tinha sido rompida no acidente.

Alice foi colocada numa cama, cercada por um enfermeiro, dois médicos do PS e uma médica cirurgiã. Todos estavam vestidos com um uniforme azul, prontos para realizar o procedimento.

— Ela está perdendo e retomando a consciência. - Disse o enfermeiro. - Os batimentos estão fracos demais, quase não sinto a pulsação.

— A hemorragia está contida, mas ela perdeu muito sangue antes de chegar aqui. - Elias, um dos médicos do PS, que conseguiu estancar o sangramento.

— Tragam uma bolsa de sangue O Negativo. Agora mesmo! - Ordenou a cirurgiã Donatella Maciel, ela sabia que em poucos segundos, Alice poderia perder seus sinais vitais, devida à falta de oxigenação no cérebro.

Quando a bolsa de sangue foi acoplada na menina, um silêncio se fez na sala, o coração de Alice parou de bater. A linha tênue do monitor parou de oscilar, emitindo um triste e longo bipe.

— Ninguém morre no meu turno. - Donatella pressionou suas mãos sobre o peito da paciente, tentado reanimá-la. - Vamos, querida... Vamos!

— Tarde demais. - Relatou Emília, esposa do Dr. Elias e outra médica do PS. - Ela está morta.

Donatella não pareceu escutar, ela continuava fazendo a massagem cardíaca, para que o sangue voltasse a circular pelo corpo.

— Desfibrilador! - A cirurgiã não se daria por vencida, mesmo sabendo das poucas chances que a menina tinha. O aparelho foi conectado próximo ao coração de Alice, que teve um espasmo com a primeira carga.

— Nada ainda, afastem-se. - Elias tentou de novo.

— Dra. Maciel... - Emília tentou falar, mas foi interrompida pelo monitor cardíaco que reiniciou de repente, a linha voltou a oscilar para cima e para baixo de novo.

— Os sinais vitais estão de volta! - O enfermeiro comemorou com os olhos arregalados. - A pressão sanguínea está subindo, perto de se normalizar.

Donatella parou a massagem.

Alice tentou abrir os olhos, ainda estava fraca, porém viva. A bolsa de sangue esvaziava aos poucos e a paciente recobrava a cor em seu rosto, o ar de preocupação dos médicos ia desaparecendo.

— Bem-vinda de volta, querida! - Donatella sorriu.

Ela olhou para Alice, a menina sorria perdida, tentando entender o que estava acontecendo.

— Mas ela estava morta, o monitor cardíaco mostrava... - Emília olhava sem reação para o aparelho.

— Não acredite em tudo que as máquinas dizem, acredite no seu instinto, querida. Essa pode ser a diferença, entre salvar ou perder uma vida. - Donatella falou com um olhar sério.

Emília e Elias ainda estavam no primeiro ano de residência médica. Sendo inexperientes para cirurgias desse porte.

A porta da sala se abriu com um rangido, revelando a imagem da médica cirurgiã responsável.

Eleonor gritou, vendo todo o sangue na roupa da médica.

— Dra. Maciel! - Gritou. - Como está a minha filha? Me diz logo, por favor! Como está a Alice?

— Ela está bem agora, não se preocupe mais.

Eleonor desabou aos pés da médica, chorando de felicidade, mesmo sabendo que um dia iria se martirizar pela perda do restante da família, mas agradecendo á cirurgiã pela vida de Alice. Donatella se ajoelhou também, segurando as mãos trêmulas da mãe. Eleonor se visualizou nos olhos castanhos da médica, sentido uma paz dentro de si.

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— Não agradeça, querida. - Disse Donatella. - Eu só fiz o meu trabalho.

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Cabo da Praga cintilava naquela manhã, dando à Maria uma vista esplendorosa do Central Park, como era chamado a principal área verde da cidade.

Maria Raja tinha acabado de entrar na antessala do Orfanato Para Meninos Nossa Senhora do Perpétuo Sacrifício, observando as freiras transformando a manjedoura do Menino Jesus, num verdadeiro carro alegórico.

O prédio era velho e cinza, não dava qualquer sensação de bem-estar para seus visitantes, pelo contrário. As poucas crianças que passavam pelos corredores estavam cabisbaixas, exaustas de tanto esperarem por uma família, que talvez nunca tivessem. Maria respirava apreensiva, ela daria um passo muito importante nesse dia, quando finalmente entraria com os papéis para adotar uma criança.

Ela estava trajando um vestido colorido, parcialmente escondido pelo jaleco branco. Destacando sua pele castanha por causa de sua ascendência indiana, ela tinha madeixas escuras e lisas, que caíam sobre seus ombros pequenos. Anos atrás, Maria e seu namorado decidiram ter um filho. Ela já estava perto dos 30 anos e achava que era o momento certo para construir sua própria família.

Mas depois de várias tentativas, o resultado sempre era negativo. Maria descobriu ser infértil, um problema que cresceu e dominou a pediatra, tendo que conviver com crianças todos os dias, sem poder ter uma própria.

Seu namorado também sentia a frustração, ele se tornou milionário depois de vencer um programa de TV e aproveitou a chance para abandonar Maria. Isso só contribuiu para Maria chegar perto da depressão, ela sentia-se vazia, seca e sobretudo sozinha.

— O que aconteceu, filha? - Sentada no banco ao seu lado, estava sua mãe, Gisele Salles.

Gigi tem um curto cabelo loiro, ela já tinha passado dos 60 anos, mas aparentava ter bem menos, graças aos cremes antirrugas. Ela era a médica-chefe e diretora do maior hospital da cidade, o Hospital Geral Querubins.

— Só estou um pouco nervosa. - Maria respondeu. - Não pensei que ser mãe seria tão complicado. Mas eu quero muito.

— Não quero que veja a adoção, como uma forma de suprir esse desejo, Maria. Eu também tive dificuldades para engravidar e depois de um tempo, seu pai e eu finalmente desistimos. - Gigi sabia o sofrimento da filha, ela já tinha passado por um situação muito parecida.

— Mãe, você já contou essa história na ceia de Natal do ano passado.

— Mas quando vi você no hospital, vestida com um sari rosa, ao lado de uma moça da Assistência Social. Tão pequena e assustada. Sem saber ainda que era uma órfã. Nós nos apaixonamos por você e não pensamos duas vezes, antes de te adotar. Mas não foi para suprimir o desejo de ter uma criança, você era especial, Maria.

— E anos depois, o Kaíque nasceu por livre e espontânea vontade. - Maria falou com certa rispidez. - Eu sou infértil, mãe! Não adianta esperar por uma coisa que não vai acontecer. Como médicas, nós sabemos que milagres assim não acontecem, tipo a Virgem Maria.

Gigi respirou fundo, Maria sabia erguer uma parede de gelo quando queria.

— Ser mãe, não é apenas colocar uma criança no mundo, é cuidar de uma com todo o amor que puder dar. Do mesmo jeito que uma mulher adota, que uma madrasta cuida do enteado ou uma avó cuidando do neto. É o amor que conta.

— O que está tentando dizer, mãe?

— Eu sei que não quer ficar sozinha, filha. Mas seu irmão e eu estaremos com você, sempre que precisar. Até quando não precisar também.

Uma das freiras se aproximou delas, a senhora carregava uma boneca feita com porcelana, delicada e realista. Era perfeita se não fosse por um mínimo detalhe: uma rachadura próxima dos olhos. Mas isso não apagava a beleza do rosto inocente e tolo da boneca.

— Desculpe fazê-las esperar, eu estava ajudando no bazar de caridade da Igreja. Se vierem comigo, posso mostrar os nossos queridos anjinhos. Acabamos de receber um lote de bebês loirinhos e de olhos azuis, temos alguns mais escurinhos também, isso se desejar.

Maria olhou para a freira, depois para Gigi e voltou o olhar para a freira de novo. Seu coração queria ir com a freira, sua mente acreditava fielmente em Gigi e ela não sabia em quem deveria ouvir.

— Obrigada, Irmã Joaquina. Mas eu mudei de ideia.

— Como? - A freira trincou os dentes amarelados.

— O meu irmão vale por mil e tenho as minhas crianças no hospital, acho que não preciso ter um filho para me sentir completa, minha família está aqui para isso.

Gigi segurou a mão da filha com satisfação.

A freira tentou se mostrar conformada, lhe desejou boa-sorte e continuou andando, até sumir além da recepção. Maria se sentia mais leve, ela poderia mesmo adotar uma criança no futuro, mas sabia que essa não era a chave para a sua felicidade.

— Vamos, mãe. - Maria se levantou, pegando sua bolsa tiracolo e indo para a saída. - Não posso deixar minhas crianças me esperando.

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O expediente noturno de Donatella Maciel Arlequinn Alcântara já tinha acabado, ela seguia pelos corredores do hospital, penteando os cabelos escuros na altura dos ombros, que contrastavam com a sua pele alva. Olhos castanhos e o batom vermelho, que era o único colorido de seu visual completamente preto.

— Dra. Maciel! - Uma voz masculina lhe chamou. - Oi, eu sou...

— Você é o novo Gabriel, o estagiário. - Disse ela assim que o viu.

— Eu mesmo, Gabriel Ferrer. - Dono de olhos verdes, parecendo ser mais velho do que realmente era, uma leve barba pendia de seu queixo quadrado e era possível notar seus músculos, marcados pela camisa.

— É um prazer te conhecer, querido! - Ela sorriu.

— Eu ouvi falarem muito bem você... Digo, da senhora.

— Obrigada. - Depois que ela respondeu, Gabriel ficou olhando fixo em seu rosto, deixando-a sem graça. - Mais alguma coisa?

— Sei que pode parecer estranho, mas a gente poderia sai... Quer dizer, se poderia me dar uma dicas? Eu ainda tenho um longo caminho pela frente.

Donatella entendeu muito bem a primeira frase.

— Quantos anos tem, querido?

— Fiz 22 em maio.

— Nada não. - Ela respondeu pensativa. - Qualquer coisa eu te aviso.

Ela já estava acostumada em ser cumprimentada por seus feitos, porém a alegria dava mais lugar para tristeza, fazendo ela se lembrar que convivia com a morte todos os dias. Seu marido, Marco Antônio de Alcântara, falecera no ano passado, por ter reagido perante um assalto.

Sua vida se tornou um pesadelo, e isso atingiu também seus filhos: Fred, que na verdade era seu enteado de 15 anos e Alfinn, seu filho mais novo com apenas 9. Um garoto prodígio, com inteligência acima da média.

Sua aliança estava no dedo anelar da mão esquerda, o diamante reluzia tristemente, assim como a sua dona. Ela não tinha coragem de tirar a prova de seu amor.

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Todos os dias, ela precisava se reconstruir.

O amor que nutria por seu marido e filhos era incondicional, só o pensamento de se apaixonar novamente era algo ilógico para ela. O amor era abstrato para os aquarianos.

Contrariando o que seu signo diz, Donatella é tanto emocional, quanto lógica. Ela gosta de ser rodeada por amor. Sempre tentando fazer o que era melhor e seguindo o seu horóscopo.

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Donatella chegou na recepção do Hospital Querubins, ela ia passar direto até a saída, mas notou uma figura estranha no lugar da senhora gorda de sempre e voltou, dando de cara com uma asiática de 20 e poucos anos: Pereira, a ex-recepcionista do hospital, mais conhecida como Perry.

— O que faz por aqui? Achei que tinha sido demitida.

— Também é um prazer te rever, Mommy! É a terceira pessoa que me pergunta isso. Sentiu a minha falta?

Mommy era o apelido dado pelos funcionários para Donatella. Sua personalidade maternal era a sua principal característica, sendo mãe, amiga e conselheira para todos que encontrassem.

Donatella reparou nos pacientes que esperavam, alguns com ferimentos superficiais, outros esperavam por uma vaga para casos mais sérios. Algumas pessoas próximas olharam para Perry, ela fingiu que nada tinha acontecido.

— Agora que voltou, você não tem nenhum trabalho para fazer? Tipo, atender essas pessoas?

— Por incrível que pareça, nunca acontece nada de interessante aqui. Cabo da Praga é uma das cidades mais seguras do Brasil, poucos casos precisam ser atendidos com tanta urgência assim.

— Você ficou muito tempo na ilha, querida. Precisa se atualizar.

Cabo da Praga tinha sido um ótimo lugar para se viver, mas o crescimento repentino do tráfico de drogas aumentou a violência e aos poucos, a cidade ia perdendo seu brilho, sendo só mais uma na lista de lugares para não visitar.

— Eu sei, é que estou pensando nos detalhes do meu casamento. - Perry deu pulinhos de animação.

— Não lembro de ter te dado a minha aprovação. - Donatella tentou mostrar animação. - Quem é ele?

— É um bombeiro, maravilhoso de tão lindo, ele aproveitou que salvou a minha vida, para roubar meu coração também. Conheci no mês passado.

— Em menos de um mês, você conheceu, namorou e já pensa em se casar? Deve ser um recorde.

— Devia aproveitar também. - Perry falava mais seriamente. - Sua vida é sempre o hospital e os filhos, você precisa se divertir um pouco, seguir em frente e deixar a tristeza para trás. Um novo namorado talvez? Até a chata da Maria precisa de um. - Ela falava muitas coisas ao mesmo tempo, ás vezes era difícil entender.

— Não estou tão desesperada assim, a Maria também não.

— Maria também não o quê? - Chegando na recepção, vinha a Dra. Raja, pediatra do hospital. - Já começou a hora da fofoca?

— Mais ou menos isso. - Donatella respondeu.

Enquanto Donatella se vestia em luto eterno, Maria abusava de roupas alegres.

— Oi, Dona e... Pereira? O que faz por aqui? - Maria olhou Perry da cabeça aos pés, ainda incrédula por vê-la. - Achei que tinha sido demitida.

Demitida justamente por falar mal da Maria. Os funcionários do hospital desdenhavam da pediatra, mas não falavam diretamente por ela ser filha da diretora. Achavam que Maria era uma pessoa arrogante e pedante, tendo um ar de superioridade contra quem tinha não tinha um alto QI.

— Eu voltei, querida! O hotel onde eu trabalhava foi destruído, depois da erupção do vulcão na Ilha Vermelha.

— Sinto muito por isso, nós tínhamos um estagiário lá. Lembram do Gabriel?

— Ele é um bom menino. - Donatella se lembrava com carinho do antigo estagiário. - Mesmo tendo só 18 anos, ele se comporta como alguém bem maduro. Soube até que arranjou uma namorada.

— Mas voltando ao assunto, o que me dizem sobre uma nova paixão? Eu tenho jeito para ser Cupido.

— Ao contrário de você, Pereira, eu tenho muito trabalho para fazer.

Maria se despediu apenas de Donatella. Ela ia seguindo para a sua sala no segundo lugar, quando olhou para trás e viu Perry fazendo gestos de desdém. Maria retrucaria, mas para ela, Perry não valia a pena.

— Por isso, que todo mundo acha ela uma chata.

— Só você, querida. Quer ser demitida de novo? Posso conseguir isso num segundo.

— Depois do meu casamento, a família dele é bem rica. Mas você ainda não respondeu a minha pergunta.

— Agradeço o que está tentando fazer, mas isso não é para mim. Eu sou muito bem casada.

— Mommy, o Marco morreu. Já deve ter virado pó numa hora dessas.

— Obrigada por me lembrar, querida! Tinha me esquecido disso. - Donatella revirou os olhos, sem paciência. - Eu quis dizer, que ainda sou fiel à memória do Marco. Esse lance de "até que a morte nos separe" não é conosco.

— Mas todos os homens daqui querem ter uma chance. Até a neurologista do quinto andar, ela ainda não desistiu de você. Eu sei que ela não é o seu tipo, Dona. Mas talvez seja muito melhor do que um velho rico.

A viúva passou grande parte de sua relação com Marco, sendo alvo de rumores desse tipo. De que ela tinha se envolvido com um homem casado, apenas para poder lhe aplicar um golpe no futuro.

— Você tem mesmo muita sorte, querida. - Donatella tentou não falar com raiva. - É uma pena que assassinato seja crime nesse país. Se bem, que a minha advogada podia cuidar disso, a Analice Kitty resolve qualquer caso.

— Bem selvagem. - Perry rosnou. - É por isso que eu gosto de você.

— Que bom. Posso ir embora agora?

— Não, não pense em namoro, pense em conhecer novos amigos, pessoas que também estão na mesma situação. Tenho certeza que vai fazer muito sucesso na Uol. Se não estiver segura, pode usar um apelido bem legal, alguma coisa com o seu nome. Que tal "Arlequinn"?

Donatella torceu o nariz.

— Eu não gosto desse, tem todo aquele lance com a minha mãe e...

— Vai dar certo. - Perry interrompeu.

Falar da Mama Arlequinn era um assunto delicado. Quando ela e Donizetti Maciel se casaram, a italiana deixou claro que era mulher quem mandava na relação. Se o marido fizesse qualquer coisa que ela julgasse ser errado, ele saberia o peso de um rolo de macarrão na cabeça. Sua tirania sobrava para a filha também, que fora criada para arranjar um pretendente rico e não medir esforços para consegui-lo.

Donatella não se importava, mas Mama tinha passado dos limites onde não devia, Donizetti não fizera nada para impedir e a filha não pensou duas vezes antes de sair de casa, para nunca mais voltar. Ela conseguiu mesmo um marido rico, trinta anos mais velho que ela.

Não era um casamento por amor no início, mas Marco sabia e não se importava, ambos tinham seus motivos para se unirem. Com o tempo, Donatella aprendera como amá-lo.

A médica deixou se levar pelos seu pensamentos, quando voltou para a realidade, Perry já havia montado entrado numa sala de bate-papo para ela e só esperava aparecer alguém interessante.

— Eu não pedi nada isso! Pode desfazer o que fez, se quiser continuar viva!

— Devia ter falado antes, agora é tarde. Você já tem um candidato!

Donatella deu a volta no balcão, para visualizar melhor a tela do computador. Alguém tinha mandando uma mensagem, Donatella esboçou um leve sorriso, que depois se desfez numa carranca.

Unknown Joker: Oi! :)

— E agora? O que vai responder? - Perry perguntou.

— A verdade, que isso um acidente e não estou interessada em conhecer ninguém.

— Tudo bem, eu digito para você.

Arlequinn: Oi ;) Como vai?

— Um dia, você ainda vai me agradecer por isso, Mommy. - Perry piscou para ela. - O que de pior pode acontecer?

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Dezembro de 2015

O tráfego aéreo tinha aumentado nos últimos dias, alguns caças passavam ocasionalmente por cima do condomínio, deixando um rastro de fumaça branca no céu.

Afastado da área nobre, Donatella dirigia sua BMW 2007 até sua casa no subúrbio, bem perto da fronteira que separava a classe média de Baixo da Praga. A nova casa velha foi comprada num leilão, a antiga moradora era uma freira que morrera sem deixar herdeiros, nem qualquer objeto de valor.

A ex-socialite tinha de se contentar em morar ali, numa casa cinco vezes menor que a antiga mansão. Marco morreu sem contar que estava falido, após sua demissão dos laboratórios científicos Tumbas, o local onde era feito as pesquisas da Corporação Farmacêutica Pyramid.

Isso trouxe um imenso choque de realidade para família, que precisava sobreviver sem todo o luxo na qual estavam acostumados. Donatella precisou recomeçar como podia, fazendo mais turnos no hospital e vendendo o que podia..

Assim que passou da porta, ela pode escutar o barulho alto da televisão. Fred, deveria estar jogando videogame, junto com seu melhor amigo, Kaíque Salles.

Frederico das Neves Alcântara, filho de Marco Antônio com Mabel, sua primeira esposa. Donatella tinha trabalhado como babá do Fred, antes de casar com o pai dele e construir sua própria família.

— Mãe! - Ela recebeu um abraço caloroso de Alfinn, seu filho de 9 anos. Alfinn era o apelido de Donato Alfredo.

Donatella lhe deu um selinho carinhoso, deixando metade do seu batom nos lábios dele. Ela se aproximou de Fred e beijou o topo da cabeça dele, o garoto normalmente reclamaria, mas atirar em zumbis o fazia se esquecer do desgosto pela madrasta.

Ela não precisava se preocupar com Alfinn, Alfinn era perfeito em todos os sentidos. Fred era o motivo de toda a sua preocupação, sempre zelando pelo bem estar do enteado, mesmo que ele não quisesse.

— Posso ganhar um selinho também? - Kaíque perguntou.

— Claro, querido! - Donatella se aproximou dele, Kaíque podia sentir o cheiro de maçã que vinha do pescoço dela, mas Donatella foi mais além e lhe deu um beijo na testa.

Fred não gostou nem um pouco, limpando a marca vermelha de seu amigo com as próprias mãos.

Kaíque tem cabelos beirando entre castanho claro e loiro, pequenos olhos escuros e pele branca. Fred tem cabelos pretos, os olhos eram uma mistura harmoniosa de verde e azul, assim como o mar. Os dois vestiam roupas largadas na maioria das vezes, camisas de bandas que não escutavam e jeans. Como a maioria dos adolescentes de 15 anos, Kaíque e Fred tinham uma certa tendência em arranjar problemas.

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Alfinn e Fred eram quase gêmeos, menos a altura, idade e cor dos olhos, Alfinn herdara os olhos castanhos da mãe e Fred, os olhos azuis do pais. A semelhança física dos dois, lhe rendera por muito tempo o apelido de "Fred #2".

— O que andaram aprontando o dia todo? - Donatella perguntou, enquanto retocava o batom no reflexo da faca de cozinha.

— O de sempre. - Fred respondeu. - Matando zumbis no Xbox One.

— Como vai a cabeça?

—Vai indo. - Fred suspirou desanimado. - Comprou o meu remédio?

— Tem um estoque inteiro de Pyramidina no porta-malas do carro.

De dois anos para cá, Fred começou a sofrer de dores de cabeça constante. Às vezes, o remédio amenizava a dor, mas ultimamente elas vinham com força total. A viúva temia que isso estivesse relacionado com o vírus, já que esse era um dos sintomas.

Donatella e muitos médicos cuidavam daquela virose, com os tratamentos comuns para os sintomas apresentados. A vacina usada não mostrava efeitos imediatos de reversão, fazendo as pessoas infectadas sofrerem por uma resposta de seu estado de saúde. As pessoas internadas sentiam dores fortes na cabeça, vomitavam com frequência e mal conseguiam para em pé de tão fracas. Algumas pessoas iam mais além, chegando a ter alucinações sobre tempo e espaço, provavelmente delirando por causa da febre alta.

— Não podemos esperar mais, alguns médicos foram embora da cidade, acho que deveríamos fazer o mesmo.

— Mas a gente já tomou a vacina. - Alfinn disse.

— Não podemos confiar totalmente nela, querido. Eu vejo a situação das pessoas no hospital e aquilo não parece nada bom.

Mesmo tomando cuidado com a água que ingeria, sem nem chegar perto das praias e do cais, o número de vítimas só aumentava e Donatella temia, que a vacina dada pelo governo fosse apenas um placebo. Gigi e os líderes dos demais hospitais concordavam que sair da cidade, era a melhor escolha.

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Maria deixou suas malas num canto do quarto, junto com a sua cópia do segundo livro da série "Flores Mortas", ao sair do aeroporto, ela encontrou com a autora Natasha Silveira Martinez, que fora gentil em autografar a versão do livro preferido da pediatra.

Ela acabara de chegar de uma longa viagem à Índia, por onde continuaria por mais tempo, mas ela tinha outros planos. A reunião anual da MENSA chegara, uma sociedade internacional formada por pessoas de alto QI, que conversavam e debatiam sobre diversos assuntos, relacionados à estudos científicos e a dotação do intelecto.

Conforme o tempo foi passando, Maria percebeu que seu comportamento, por mais natural que fosse, estava lhe conduzindo à solidão. Assim como ela, vários usavam a reunião, para conhecer pessoas intelectualmente interessantes, que pudessem trocar e obter conhecimento.

Maria estava entre as pessoas mais inteligentes do mundo. Aproximadamente 2% de toda a população.

Quando ainda era pequena, seus professores notaram o quanto a menina era inteligente, podendo resolver complexas contas de cabeça em segundos. Com 16 anos, Maria percebeu o seu potencial e conseguiu entrar para a MENSA com louvor. Ela também se formou-se em primeiro lugar no curso de Medicina, especializando-se em Pediatria, trazendo ainda mais orgulho para seus pais adotivos, que já eram médicos respeitados na cidade.

Maria foi adotada com três anos, depois de seus pais serem mortos, quando a pequena loja que mantinham se tornou palco para um confronto entre policiais e traficantes, na favela onde moravam. Seus pais adotivos lhe criaram no luxo da cidade grande, numa realidade totalmente diferente, mas Maria nunca esqueceu de suas raízes indianas.

Gigi nunca escondeu a verdade sobre a família biológica da filha. Contando a verdade para Maria, assim que a menina começou a perceber a diferença étnica entre ela e o restante da família. Tirando o carinho de sua família, ela tem dificuldades em aceitar o afeto alheio, mantendo-se reservada e impessoal o quanto podia.

Aquele era o dia, mas o local do evento foi alterado para outra cidade de última hora. A organização ficara alarmada com as notícias sobre a virose, que deixara metade de Cabo da Praga doente. Maria esperava ansiosamente pela reunião, mas agora ela tinha que assistir pela internet, através de uma transmissão ao vivo direto de Valadares Brandão.

Na tela de seu iMac, um homem sorridente estava no centro de um anfiteatro, com uma numerosa plateia de frente para ele.

"Bem-vindos à Annual Gathering de 2015, tenho certeza que os ânimos de todos esperaram com ardor por esse dia. A MENSA tem muito orgulho de escolher esta cidade maravilhosa, como palco da nossa reunião anual. Como a maioria deve saber, Cabo da Praga recusou a nossa estadia, em virtude da contaminação no abastecimento de água."

"O tema dessa reunião não podia ser outro: A Sobrevivência da Espécie Humana. De como nós colaboramos para nossa autodestruição, não mencionando apenas as guerras incessantes, os pequenos e grandes atos com a natureza, mas também as armas biológicas. Doenças criadas em laboratórios, usadas para dizimar populações e dizer que foi pelo bem da nação..."

No avião, ela tinha lido uma notícia sobre a epidemia que acontecia em Cabo da Praga, confirmada ao ter que realizar testes assim que desembarcou. O atraso fez ela desmarcar seu compromisso com Emília, as duas tinham combinado de passarem no shopping, para comprar biquínis e aproveitarem o verão.

" [...] Mas o que fazer, quando estamos na mira de nossa própria arma? Sentindo na pele os efeitos dela? E se perguntando sobre uma cura, que pode não chegar para todos. Ou talvez nem exista..."

Maria não sabia o quão terrível estava sendo o vírus, ela estava, pensando ser apenas uma virose qualquer. Gigi nem queria que Maria voltasse tão cedo, orientando seus filhos à deixarem a cidade antes do anoitecer, apenas por precaução.

Maria estranhou o pedido, ela acreditava que devia ficar e ajudar, mas se Gigi dizia que estava tudo bem, não havia com o que se preocupar.

Gigi nunca esconderia nada dela.

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A família já estava quase pronta para partir.

Fred pegava as roupas e jogava de qualquer jeito na sua mochila, Alfinn pegava cada uma delas, dobrava e organizava com calma. Kaíque estava conversando com Maria e Donatella, teclava com o Unknown Joker

Donatella nunca admitiria, mas Perry podia ter acertado. O Unknown Joker se mostrou uma grande amigo para ela, apenas isso. A viúva deixou bem claro que não pensava em namoro, ele pareceu ter entendido, mesmo que mandasse algumas mensagens provocantes de vez em quando.

Sobre a sua vida pessoal, Donatella não tinha contado muita coisa, apenas que era viúva e tinha dois filhos. Ela sabia que nome dele era Bernardo, um homem divorciado, eles já tinham conversado por telefone algumas vezes, mais de 30 anos, cabelos e barba num tom claro de castanho. E tinha uma tatuagem de leão no braço direito.

Nesse mesmo dia, ele enviara uma mensagem, perguntando se podia se conhecer. Donatella não sabia como responder, nem se realmente queria fazer isso depois de um ano.

— Está falando com o seu "amigo"? - Fred perguntou, com um pouco de malícia em sua voz.

— Sim. - Respondeu sem jeito. - Ele está perguntou quando vamos nos encontrar.

— O que você escreveu aí?

— Ainda nada, não faço ideia do que responder.

— Nunca deixe uma pessoa no vácuo! Esse é o pior crime possível. Você não tem coração?

— Não. - Respondeu.

— Você ainda acredita, que isso é sério? Acho que deve ser alguém da minha idade, querendo pegar o máximo de mães gostosas que conseguir.

— Devia fazer isso, mãe. - Alfinn disse.

— De jeito nenhum! Isso pode esperar o tempo que for, o importante é tirar vocês da cidade.

— Eu não sou mais criança, Donatella. Sei me virar sozinho. - Fred já tinha arrumado sua última mala.

— Da última vez que você se virou sozinho, a casa pegou fogo.

— Todo mundo pode ir para minha casa. - Kaíque apareceu no quarto. - Eu falei com a minha mãe e ela concordou, a Maria vai vir nos pegar.

Donatella achava que Kaíque, era uma ótima companhia para Fred, bem melhor do que os amigos que ele fizera na clínica psiquiátrica.

— Se vai mesmo fazer isso, precisa usar roupas mais coloridas. - Fred se aproximou da madrasta. - Use as botas de couro que vão até o joelho, o casaco de pedrarias e um cachecol, assim não vai parecer que é uma falida. Mas ainda falta alguma coisa.

— Já sei o que é. - Alfinn saiu e foi para o quarto dele, depois voltou uma correntinha nas mãos, que tinha um pingente no formato de um pequeno anjo. O símbolo da deusa egípcia, Ísis.

— É lindo, querido. Não precisava ter me comprado nada. - Ela beijou a bochecha do filho.

— Não comprei, veio como brinde no pacote de salgadinho.

— Se os três estão mesmo certos disso, eu vou me arrumar, depois me encontro com vocês perto do túnel, para sairmos juntos. - Donatella pegou o celular, pronta para oficializar o encontro.

Arlequinn: Me encontre na Coffee Club, três quadras antes do túnel. 21:00 em ponto, não se atrase. - 18:37

Unknown Joker: OMG!! Juro que vai ser inesquecível!!! - 18:37

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Uma leve chuva caía naquele fim de tarde.

De volta ao Hospital Geral Querubins, Gigi tentava conter o alvoroço que reinava no local. O hospital já estava em sua capacidade máxima e mais pessoas chegavam. Recebendo mais pacientes, do que conseguia tratar.

Gigi saiu de seus pensamentos ao ouvir gritos, vindos da ala ao lado, três seguranças, médicos e enfermeiros, tentavam conter um paciente. Um homem completamente alterado, mais uma vítima da doença. O homem foi rendido rapidamente, depois de uma dose hiper concentrada de tranquilizantes, mas atrás dele, várias pessoas infectadas surgiram, todas vindas do porão do hospital e indo para a saída.

Gigi trancou-se em sua sala, lá tinha uma janela com vista em linha reta para a ponte, a única forma térrea de sair da cidade. Uma barricada militar estava sendo montada no túnel antes da ponte, e aquilo não era novidade para ela. A médica agradecia o fato da jornalista, que outrora estivera internada ali, já ter ido embora.

O barulho de um helicóptero se tornou audível, Gigi olhou para cima e viu que a máquina iria pousar no teto do hospital. O corredor já estava em silêncio, ela confirmou que era seguro e se encaminhou para a escadaria, que levava ao telhado.

Gigi estava apreensiva e preocupada com seus filhos, o que lhe renderia algumas rugas mais tarde. Afinal, ela estava fazendo isso por eles, querendo que nada acontecesse com quem amava.

O prefeito e os outros líderes corruptos da cidade, tinham proibido a imprensa de mostrar a verdadeira epidemia, os hospitais também não podiam passar informações graves sobre seus pacientes. Para eles, Cabo da Praga deveria continuar sendo vista como um lugar paradisíaco e quem dissesse o contrário, seria severamente punido.

Marco era a prova morta disso.

O logotipo do Instituto Pyramid estava impresso na cauda do helicóptero, o piloto ergueu uma guarda-chuva sobre a médica, ajudando ela a embarcar. Além de Gigi e do piloto, havia mais uma pessoa na aeronave, a responsável por tudo aquilo.

— Isso precisa acabar ainda hoje! - Gigi disse com firmeza, a pessoa ao lado concordou com um aceno de cabeça, mas nada respondeu. - A quarentena é a única opção.

E o helicóptero decolou, rumo à área industrial de Cabo da Praga

=-=-=-=-=

A chuva parecia ter dado uma trégua, mas o trânsito não.

Alguns tanques do exército estavam parados nas principais ruas, as pessoas buzinavam impacientes, como se isso fosse fazer o trânsito fluir melhor, tornando o caos ainda mais insuportável. As duas pontes estavam totalmente paradas, nenhum carro se movia mais.

Maria começava a se arrepender por ter ficado a tarde inteira assistindo a reunião. Ela já tinha buscado as crianças e agora tentava chegar ao túnel, que estava bem próximo e Gigi não atendia o celular.

Kaíque estava sentado ao seu lado. Alfinn estava deitado no colo do irmão, mais velho, com ele fazendo carinho em sua cabeça, Fred estava com tampões nos ouvidos, sem escutar absolutamente nada do que acontecia ao seu redor. Mesmo trabalhando no mesmo hospital por anos, Maria e Donatella só se tornaram próximas por causa da amizade entre Fred e Kaíque.

— Engole essa buzina, desgraçado! - Kaíque gritou para o carro que vinha atrás.

— Você anda passando muito tempo com o Fred, ele definitivamente não é boa companhia.

— Está com ciúmes? - Kaíque perguntou.

— Lógico que não. - Sim, ela estava.

Kaíque sempre fora o seu melhor amigo, a principal ajuda quando terminou o namoro, agora ela sentia que estava perdendo isso. Não que quisesse privar o irmão de outras pessoas,

— Maria, Maria... Mesmo se eu tiver um milhão de amigos, você sempre será a número 1.

— Vou fingir que acredito.

— Nada de dar uma de Elsa, não precisa mais montar esse castelo de gelo. Eu prometo, que daqui para frente, as coisas vão ser diferente.

Ela sorriu, até tinha parado de se preocupar com a notícia da quarentena.

Quando alguém bateu delicadamente no vidro da janela, Maria viu um mulher parada ao lado do carro, segurando um bebê nos braços. A mulher estava vestida totalmente de preto e era difícil visualizar o seu rosto, por causa do chapéu com véu de luto.

— Precisa de ajuda? - Maria perguntou. - Quer uma carona?

A mulher nada respondeu, continuou parada sem se importar com a confusão ao redor, Maria desviu o olhar rapidamente para Kaíque, mas quando voltou para a janela, a mulher tinha sumido em segundos.

— Vocês viram isso? - Perguntou para os meninos.

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— Vi o quê? - Kaíque não tinha visto nada.

— Esquece, nós temos que chegar ao túnel, nem que seja andando. Maria manobrou o carro como pode, estacionando-o na calçada.

— Mas e as nossas malas? - Alfinn perguntou.

Antes que Maria pudesse responder, ela reparou em movimentação na entrada do túnel. Uma mulher estava correndo desenfreada, tentando quebrar os vidros dos carros e atacando quem tentasse chegar perto.

— Mas que droga é aquela? - Fred indagou para si mesmo.

— Não importa o que seja, a saída esta depois disso. Não podemos voltar agora. - Maria disse, pegando a mão de Alfinn.

— Não! - Alfinn se desvencilhou. - A gente precisa achar a mãe! Ela não pode ficar sozinha.

Donatella estava por perto, ele sabia que poderia encontrar a mãe e correu para a cafeteria do outro lado. Fred não teve escolha, seguindo o irmão contrariado.

— Eles vão ficar bem. - Kaíque disse. - Temos que ir, Maria. Agora!

Maria queria ir atrás deles, ela nunca se perdoaria se algo acontecesse com Alfinn, mas tinha que confiar em seus instintos e garantir a segurança de Kaíque.

Além disso, a pediatra pensava na longa conversa que teria com Gigi. Queria saber absolutamente sobre o vírus.

=-=-=-=-=

— Oi, bem-vinda ao Coffee Club! O que posso fazer pela senhora? - Um bartender sorria animadamente para Donatella, sendo que ela era a única cliente daquele início de noite.

— Nada não, só vim usar o Wi-Fi.

— O wi-fi é só para os clientes. - Disse. - Não quer nada?

— Eu sou uma cliente, mas me eu aceito uma Blood Mary, por gentileza, querido.

O bartender sorriu conformado, enquanto fazia o drink, ele não tirava seus olhos castanhos de Donatella, analisando as feições delicadas e firmes da mulher.

Donatella tinha chegado um minuto antes do horário marcado, ela pegou o celular e mandou uma mensagem para Bernardo Unknown Joker.

Arlequinn: Já estou aqui. - 20:59

Arlequinn: E você? Já está chegando? - 21:07

Arlequinn: É melhor que tenha uma boa desculpa. - 21:30

Arlequinn: Isso não tem graça nenhuma! - 21:42

Arlequinn: Você morreu? - 21:50

Arlequinn: É melhor que tenha morrido mesmo. - 21: 54

Arlequinn: Não falei sério, foi só força de expressão. 21: 54

— Algum problema? - Perguntou o bartender. - Até agora, a senhora nem tocou na sua bebida.

— Não é nada. - Ela guardou o celular, já pronta para ir embora, quando um alto estrondo ressoou do lado de fora, logo depois, Fred e Alfinn entraram exaustos.

— Meninos? O que aconteceu?

— O Apocalise Zumbi, Donatella! - Fred respondeu ofegante. - Eu te disse que isso era possível.

Através da vitrine, pessoas se aproximavam da loja, elas não estavam se comportando de forma natural. Muitas delas estavam vestidas com a roupa do hospital, os mesmo pacientes que ela ajudara a tratar anteriormente.

— Eles são zumbis! Isso é tão legal! - Fred apontou o celular para fora e tirou uma foto. - Meu Instagram vai bombar.

— Isso parece aquela série da televisão, esqueci o nome. - Alfinn disse.

— Vocês realmente estão pensado nisso? - Donatella estava quase histérica. - Cadê o bom senso?

— Saiam pela porta dos fundos! - Gritou o bartender, tirando um bastão de beisebol de debaixo do balcão. - Eu cuido deles!

=-=-=-=-=

Ela queria ter percebido antes.

A situação já tinha perdido qualquer controle, os doentes chegavam aos montes no hospital, deixando ela e os outros médicos impotentes. O que antes parecia ser mais um vírus qualquer, se mostrara o contrário.

Um vírus capaz de potenciar a raiva, aumentando a pressão intraocular e tirando a consciência de suas vítimas, deixando-os sem saber o que faziam. A vacina aplicada não funcionava, apenas disfarçava os efeitos até que fosse tarde demais.

Agora sua vida estava em perigo, nem seu kit de primeiros-socorros poderia ajudá-los. Donatella já amaldiçoava a ideia de se encontrar com um desconhecido. Seu celular estava em silêncio, ela esperava que seu amigo virtual respondesse. Aquele deveria ser o momentos, onde uma amizade pela internet se concretizasse.

Mas não havia tempo para isso, os doentes atacavam qualquer um em seu caminho.

Donatella segurava fortemente a mão do filho menor, Alfinn.Fred, estava na frente, correndo sem saber para onde e entrando sem querer em um beco escuro.

— Eu sabia que zumbis existiam. Eu disse isso várias vezes, é como estar em um vídeo game! - Ele parecia estar em êxtase.

— Não é hora para isso. Apenas corra! - Donatella olhou para trás, três infectados estavam atrás deles, se aproximando rapidamente.

Até que Alfinn desabou na sua frente, tinha tropeçado em alguma coisa e gemia baixinho de dor.

— Meu tornozelo. Dói muito! - O garoto tentou andar, mas percebeu que não podia.

Donatella parou ao lado dele, tentando ignorar o policial morto, onde o filho tropeçara, os doentes se aproximavam mais, Donatella não teve escolha, pegou a arma do morto e apontou para os infectados.

— O que está esperando? Atira logo! - Fred gritou.

— Não posso fazer isso, eles precisam de uma cura, não de balas na cabeça! - As mãos dela tremiam, estava indo contra tudo o que acreditava. Uma médica salvava vidas, não tirava.

Fred carregou Alfinn em suas costas, correndo ao lado da madrasta, até que o beco se revelou sem saída, havia uma parede de tijolos de um lado e vários infectados do outro. Os três estavam cercados.

— Agora sim, acaba com a raça deles! - Fred insistiu mais uma vez.

Os doentes estavam perigosamente perto, encarando Donatella com seus olhos vermelhos, a espuma borbulhante escorrendo de sua boca, exalando um odor de carne em decomposição.

A médica nunca pensara em atirar em alguém, mas a vida de seus filhos estava sempre em primeiro lugar, e ela faria qualquer coisa para protegê-los. Qualquer coisa. Ela apontou a arma para eles, mas antes que pudesse atirar, todos os infectados foram fuzilados antes.

— Oi de novo! - Gabriel estava na entrada do beco, com uma arma automática na mão.

— Devia ter atirado na cabeça. - Disse Fred. - É mais prático.

— Como sabia que eu estava aqui? - Donatella perguntou incrédula.

— Não sabia, eu estava procurando a minha irmã, mas é melhor sairmos daqui.

Os três doentes não se mexiam, mas isso não era bom sinal de qualquer forma, havia outros por aí. Com a quantidade enorme de pessoas afetadas, logo outros surgiriam.

Donatella não respondeu, pensava apenas em encontrar um esconderijo, um abrigo seguro para sobreviverem.

=-=-=-=-=

I was left to my own devices

Many days fell away with nothing to show

Cabo da Praga estava desmoronando, a notícia de que uma possível quarentena fora o pivô de sua autodestruição. Ninguém parecia se importar com os outros, só se preocupavam com a sua própria segurança.

And the walls kept tumbling down

In the city that we love

Great clouds roll over the hills

Bringing darkness from above

A maioria tentava sair do túnel para fora da cidade, outras mais desesperadas, tentavam voltar para a cidade. E havia também, quem só estava interessado em saquear o centro financeiro.

But if you close your eyes

Does it almost feel like

Nothing changed at all?

Mesmo farta de tanto correr, Maria estava absolutamente calma, sabia que o pânico numa hora dessas seria muito pior. Ela encontrou uma mulher caída, depois ela percebeu que era uma rapaz, ajudou ele a se levantar.

And if you close your eyes

Does it almost feel like

You've been here before?

Maria olhou para trás, ela se tranquilizou ao ver Donatella e os filhos entrando no túnel. Até em uma situação como aquelas, Donatella não perdia a pose, correndo tranquilamente com o salto agulha de suas botas

How am I gonna be an optimist about this?

How am I gonna be an optimist about this?

No meio da confusão, Donatella sentiu uma pessoa pegando a sua mão, levando ela para uma porta de manutenção mais adiante, era um rapaz de touca, o mesmo que tinha gritado sobre um futuro acidente. Ao lado dele, estava a dona do restaurante Lamounier.

We were caught up

And lost in all of our vices

In your pose as the dust settles around us

Gabriel, Fred e Alfinn passaram na frente deles, entrando no cômodo. O abrigo era uma espécie de depósito, feito para guardar os materiais de manutenção do túnel, grande o suficiente para mais de trinta pessoas. Maria e Kaíque tinham conseguido entrar.

Oh where do we begin?

The rubble or our sins?

Oh where do we begin?

The rubble or our sins?

Antes de conseguir se salvar, Maria viu uma criança presa dentro de um carro em chamas, o choro dela quebrou a calmaria da pediatra, que desabou em lágrimas quando o carro explodiu e os gritos cessaram. Ela agora chorava assustada, principalmente por ter uma mulher ao seu lado, falando coisas desconexas sobre morte.

How am I gonna be an optimist about this?

How am I gonna be an optimist about this?

O celular da viúva começou a tocar, indicando que uma mensagem havia chegado, ela pegou o aparelho quando escutou mais uma explosão.

Por um segundo, Donatella achou que se encontraria com Marco mais cedo do que imaginava, mas ao reparar o rosto assustado de Fred, ela mudou de ideia. Seu filho merecia a verdade antes disso.

Ela abraçou Fred, que retribuiu sem querer, com Alfinn sendo espremido entre os dois.

Unknown Joker: Ainda tá viva? - 22:12

— Mãe... A gente vai morrer? - Alfinn perguntou o menino.

— Hoje não, querido. - Largou o celular e beijou a testa dele.

Ela sentiu a temperatura do cômodo aumentar rapidamente, explosões arremessavam carros contra a parede do túnel, causando ainda mais temor entre os refugiados. Ruídos vieram do lado de fora, o concreto parecia estar cedendo e se partindo.

If you close your eyes

Does it almost feel like

Nothing changed at all?

— Vai ficar tudo bem, meninos. Eu prometo. Vai ficar tudo bem!

=-=-=-=-=

Dia seguinte.

Havia militares em cada canto do Centro Acadêmico Marian Fontinni.

Maria e Donatella eram umas das poucas médicas de verdade por ali, a maioria eram voluntários, como Amélia e Gabriel.

A pediatra assumiu a liderança médica, dividindo o trabalho entre os mais capacitados, Donatella cuidava dos casos mais graves, Gabriel ajudava como enfermeiro das duas e Maria fazia o primeiro atendimento das vítimas assim que chegavam. Uma tenda lhe foi montada no pátio da escola, ela também conseguiu um jaleco, vestindo-o por cima de seu vestido branco com rendado preto.

Maria tinha passado por um péssimo momento logo no início, quando uma mulher infectada lhe atacou e acabou ferindo a pediatra. Além de estar colocando compressas de gelo no tornozelo de Alfinn, ela também precisava cuidar de seu próprio tornozelo, por sorte, fora apenas uma torção em ambos.

— Está melhor, querido?

— Melhor agora, Tia Maria!

Alfinn abraçou a pediatra, ela agiu com um pouco de estranheza, ao sentir o calor humano e o amor inocente do menino. Era bom e ruim ao mesmo tempo. Tal gesto fazia ela se lembrar, do quanto seria gratificante ter um filho.

Ao lado de Alfinn, estava a filha da mulher infectada, que ainda não sabia a situação da mãe. A garota alisava os pelos macios de sua chinchila, enquanto olhava apreensiva para os lados, procurando por qualquer sinal de seus pais.

Ela se aproximou com cuidado da menina, sem saber como dar a notícia, de que os militares não queriam uma pessoa infectada entre os sobreviventes, pretendendo eliminar a ameaça assim que pudessem.

— Oi! Como está a minha mamãe?

— Ela está dormindo agora, querida. A Dra. Maciel está cuidando dela.

— Não se preocupe, a minha mãe consegue qualquer coisa. - Alfinn disse.

Ester não pareceu animada.

— Deixa eu te mostrar uma coisa, isso é um estetoscópio, serve para ouvir o seu coração bater. Também serve para escutar a conversa dos vizinhos.

— Posso usar?

Maria encaixou o instrumento nos ouvidos da menina, para que ela escutasse o coração da chinchila em seus braços.

— Está escutando?

— Sim! - Ester sorriu alegre.

— Eu preciso voltar para a minha tenda agora, e se precisar de qualquer coisa, por mínima que seja, pode me chamar. O Alfinn pode te fazer companhia enquanto isso.

— Então... Esse lugar é bem grande, vocês querem brincar de alguma coisa. - Alfinn cumprimentou o animal, arrancando alguns risos de Ester.

De repente, a chinchila pulou dos braços da menina e saiu correndo pelos corredores.

— Acho que ela quer brincar de pega-pega. - Ester respondeu, logo, ela e Alfinn ja procuravam a chinchila, que agora brincava de esconde-esconde.

=-=-=-=-=

Assim como todas as pessoas presas no túnel, Donatella fora resgatada por uma equipe pela manhã, ela reconheceu o logotipo no uniforme deles, eram da mesma empresa onde Marco trabalhava, por isso muitos funcionários lhe reconheceram.

Ela tinha conseguido limpar seu casaco, seu vestido e suas botas de toda poeira e fuligem, o cachecol tinha se perdido. Donatella tentava agir normalmente, querendo se convencer de que tinha tomado a atitude certa ao atirar nos doentes, mas Alfinn e Fred estavam seguros e só isso importava. Agora não era hora de remorso.

Ela também pensava em Samara, a infectada que atacara Maria anteriormente. Os voluntários cuidavam dos ferimentos e bem-estar das pessoas resgatadas, mas ninguém queria ter contato direto com a mulher doente. Donatella era a única profissional de saúde que aceitara o serviço.

Samara dormia numa maca improvisada dentro da sala de Artes, recebendo doses cavalares de tranquilizantes e antibióticos. A mulher precisava de tempo.

Por mais que a situação estivesse ruim, Donatella mantinha um sorriso tranquilizador no rosto. Retocou o batom e foi ajudar quem precisasse, carregando seu kit de primeiros-socorros numa mão e uma cesta de maçãs na outra, para quem estivesse com fome. O que era quase todo mundo.

Ela notou um rapaz de olhar perdido, com um cabelo num topete desajeitado. Seu braço estava ferido, ela supôs ter sido um tiro de raspão, pela forma como a pele em volta do ferimento tinha sido cauterizada.

— O que aconteceu com você, querido?

Ele não respondeu, dividido entre sentir medo ou confiar nela.

— Você tem um rosto tão bonito, querido. É uma pena ele estar escondido, embaixo de toda essa sujeira. - Ela dizia, passando um lenço umedecido no rosto dele.

— Boa. Você boa. - Respondeu desconexo.

Donatella percebeu que se tratava de um morador de rua, com algum tipo de deficiência mental. O ferimento poderia infectar ainda mais rápido, por causa do longo tempo sem a higiene necessária.

— Que tal tomar um banho e vestir uma roupa limpa? Tem um banheiro de verdade lá embaixo, com shampoo e condicionador. Eu ajudo você!

Nisso, Fred e Kaíque apareceram.

— O que está fazendo? Ele é um mendigo, olha só como está sujo. Se quisesse dar um banho na Mimi Chantilly, a gente ajudaria. Nós acabamos de tirar uma selfie com ela.

— Você não devia falar isso. - Kaíque disse. - Ele não escolheu ser um mendigo.

— Eu vou ignorar a sua grosseria, por enquanto. - Donatella não queria elevar a voz. - Ninguém aqui é melhor do que ninguém.

— Não foi isso o que eu quis dizer.

— Nossa vida de viagens extravagantes, beber champanhe na praia e comprar o shopping inteiro, já acabou faz tempo. Não somos mais os mesmos de dois anos atrás.

— Mas eu mudei também, isso foi só uma brincadeira!

— Não me subestime, querido.

Donatella deu as costas, ela levou o morador pelo corredor, sem ter qualquer medo ou desprezo por ele.

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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Fred e Kaíque ficaram sozinhos, eles estavam dentro da escola, enquanto a maioria das pessoas estava no pátio do lado de fora.

— Vocês são a causa da minha dor de cabeça. - Fred tirou o frasco de Pyramidina do bolso e engoliu duas pílulas.

— Não sei por que ainda ando com você. - Na maior parte das vezes, Kaíque não gostava do modo de agir do seu amigo.

Fred se aproximou de Kaíque prensando o loiro contra a parede, mas não de forma agressiva.

— Você me ama e eu te amo. Vamos nos casar e ser muito felizes com nosso filho, o Kico. - Sussurrou no ouvido dele;

— Isso aqui não é clipe do Troye Sivan. - Kaíque o empurrou, sem estar bravo, pelo contrário. Esse tipo de brincadeira era comum entre eles.

— Falando sério agora, você e a Donatella usam o mesmo perfume? É o mesmo cheiro de maçã.

— Não, por que todo mundo sempre pergunta isso?

Mesmo não sendo parentes de sangue, Donatella era como a versão feminina de Fred, ou Fred era a versão masculina de Donatella. Qualquer um acreditava que eram mesmo mãe e filho.

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Donatella tinha deixado a sua bolsa na tenda que dividia com Maria, mas nenhuma das duas estava por perto. Dentro dela, o celular anunciara que mais uma mensagem chegara.

Unknown Joker: Sorry, Mommy. - 10:18