Se você acha que as coisas ficaram melhores depois daquela noite estão muito enganados, Ana era muito atenciosa, me ajudava o quanto podia, mas o problema era comigo. Agora era eu quem fugia ao toque e quem evitava seu olhar, não que eu não quisesse, eu queria, e queria muito, só não conseguia. Era constrangedor ter que vê-la limpando o meu vômito toda vez que sentia um mal estar por causa da terapia antirretroviral, me amparando quando sentia tontura ou fraqueza, estava cada vez mais magro, e estava cada dia mais difícil de esconder dos outro a minha condição.

No trabalho as pessoas já notavam a diferença e começavam a desconfiar, se afastavam sempre que eu chegava em alguma sala comum a todos os funcionários, e sinceramente eu preferia assim, pelo menos não sentia todos aqueles olhares as minhas costas e nem ouvia os cochichos sobre meu estado físico e sua suspeitas. Quando as manchas na pele começaram a aparecer foi que a coisa ficou feia, as pessoas descobriam de cara que eu tinha AIDS, e simplesmente se afastavam, não se preocupavam nem em dar uma desculpa, como se eu fosse transmitir o vírus pra elas em uma simples conversa informal, mas não posso culpá-los, se ainda hoje as pessoas são desinformadas e preconceituosas imagina só naquela época?

Certa vez ouvi colegas de trabalho cochichando sobre mim na salinha do café, inventavam mil e uma coisas a meu respeito, entre as histórias que circulavam sobre mim nos corredores da repartição, a mais famosa era a que eu era uma “bixa louca” que nunca gostou de mulher e que meu casamento era uma farsa, por isso não tinha filhos, que eu tinha um amante e que foi assim que eu contraí o vírus, imagine que eu até me divertia ouvindo tais coisas de tão absurdas que eram.

O ambiente no trabalho ficou tão insuportável que meu chefe, João Loureiro, decidiu que eu precisava de uma licença médica, disse para que eu ficasse afastado o quanto fosse necessário. Na verdade sabia que ele só não queria ter que lidar com um “aidético” dentro do escritório, e que talvez até usasse esse tempo para estudar uma forma de me mandar embora sem se complicar, mas sinceramente, eu já nem me importava, ou melhor, eu já não tinha forças pra me importar.

Naquela tarde voltei pra casa e encontrei Ana ao telefone, pelo que pude entender ela estava tentando encontrar um grupo de apoio para que eu participasse, mas eu não queria participar de grupo nenhum, naquele momento eu só queria deitar e morrer em paz. Nós discutimos feios, lembro-me dela me dizendo que se eu não queria falar e me abrir com ela eu teria que falar com alguém, caso o contrario eu iria morrer e não seria por culpa da aids, mas sim de solidão, Na hora não raciocinei direito e disse que desde que eu morresse não importaria a causa, ia acabar o sofrimento tanto o meu quanto o dela, então ela atacou um vaso de flores em mim, fiquei em choque, ela se aproximou e segurou nos meus braços e disse “Nunca mais diga isso.” , nunca a tinha visto desse jeito! Baixei os olhos e só então percebi que estava sangrando, minha primeira reação foi afastá-la, não podia de forma alguma deixar que ela se contaminasse, é claro que não aconteceria assim, mas a ideia de ela estar tão próxima do meu sangue infectado era assustadora de mais para correr qualquer risco, pedi que fosse pro quarto e me pus a recolher os cacos no chão, daquela noite, me lembro de ouvi-la chorar e mais nada, até acordar no hospital dois dias depois.

No momento em que acordei, estava mais confuso do que nunca, não me lembrava de qualquer coisa que tivesse acontecido depois que eu sai de casa para trabalhar pela manhã, não fazia nem ideia de quanto tempo fazia essa última recordação. Procurei por um daqueles botões que costumam ter ao lado do leito para chamar alguma enfermeira ou médico, só queria que alguém pudesse me explicar o que havia acontecido, minutos depois entrou uma enfermeira, pela sua cara era possível perceber que estava ali a contragosto, e isso me fez me encolher na cama, não por medo ou coisa assim, mas por me sentir um lixo, um objeto infeccioso que não deveria estar junto ao convívio social, que deveria ser no mínimo isolado. O fato de causar repulsa até mesmo na pessoa que deveria cuidar de mim me arrancou a última gota de esperança que ainda me restava, e de novo comecei a considerar o suicídio. A Mulher mediu minha pressão e temperatura, apertou a região do pescoço e ombros e murmurou algo sobre “gânglios linfáticos” que eu não pude compreender, tentei chamar sua atenção antes que ela saísse, mas só consegui soltar um grunhido baixo, não tinha percebido o quão seca estava a minha boca, a enfermeira saiu assim, sem sequer perguntar se eu estava bem, sem nem notar meus esforços para chamá-la, isso se não estivesse me ignorando e mais uma vez eu estava sozinho e ainda mais confuso.

O tempo foi passando e eu me perguntava onde estaria Ana, será que ela tinha mudado de ideia e resolvido partir antes que eu causasse algum mal a ela ou que eu morresse ao seus pés? A mesma enfermeira entrou e saiu algumas vezes, sempre ignorando as minhas tentativas de me comunicar, outra moça, um pouco mais simpática me trouxe comida, me ajudou a comer e me deu água, foi a primeira pessoa que sorriu pra mim sabendo da minha condição, além de Ana, claro. Um poco mais tarde a porta se abriu novamente, imaginei que fosse a enfermeira rabugenta de novo, cansado de tentar, nem fiz questão d abrir os olhos, até sentir mãos macias acarinharem a maçã ossuda do meu rosto, ela estava ali. Aproveitei suas carícias o quanto pude, pois a ideia de que ela me deixaria a qualquer momento não me saia da cabeça, perguntei a ela o que havia acontecido, e após seu relato me senti ainda mais inútil. Ficamos em silêncio por vários minutos até que se sucedeu a conversa que deveríamos ter tido a muito tempo:

— Me desculpe, eu não deveria ter atacado aquele vaso em…

— Ana… - tentei interromper.

— Não, você está fraco, nessa situação, eu não deveria....

— Ana… - Qual é, hoje era o dia mundial de ignorar o Odair?

— É só que te ouvir falando em morte daquele jeito como se fosse a solução, me deixou tão aflita...

— Ana, se tem alguém aqui que precisa pedir desculpas sou eu, eu errei desde o começo, mesmo te amando muito não fui capaz de cuidar de você quando você mais precisou, e acabei lidando com todas as minhas frustrações da pior maneira possível, na verdade eu mereço tudo isso, é o meu castigo por não ser bom o suficiente pra voc… - A voz falhou, e ela prontamente me ajudou a beber um pouco de água. - Obrigado.

— Eu também me afastei de você, fui egoísta e não pensei que talvez você também estivesse sofrendo a sua própria maneira, eu não quero e nem posso cometer o mesmo erro mais uma vez, eu vou ficar com você e cuidar de você, isso ainda não é o fim. Eu te amo!

Aquilo me emocionou e de repente eu tinha esperança de novo!

— Eu também te am…

Não pude completar a frase, comecei a tossir como um condenado, não importa o que eu fizesse, eu simplesmente não conseguia parar de tossir, chegava a juntar lágrimas nos olhos. Vi Ana correr porta a fora e voltar com um médico em seu encalço, eu tentava me acalmar e parar de tossir, mas quando vi o sangue que saia junto a minha tosse foi impossível conter o desespero. Não sei se desmaiei ou se fui sedado, só sei que apaguei, e desejei estar assim pra sempre.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.