Pompeii

Capítulo 2 - Escola e tarefas diárias: mais um dia monótono


Lembro-me até hoje do dia em que eu estava no hospital, esperando ter alta. Os médicos me escreviam tudo, e tinham que ficar no mínimo dez minutos segurando suas pranchetas para que eu pudesse ler. Não me culpem, eu tinha apenas seis anos e com essa idade minha leitura era pior que a de alguém analfabeto lendo pela primeira vez.

Assim que saí do hospital fiquei preocupado com minhas amizades; será que eles me aceitariam, mesmo eu sendo surdo? Minha resposta foi um grande e belo “não”.

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Nós nos reuníamos todos os dias no parquinho da praça em frente á escola para brincar, conversar, e depois nossas mães nos levavam para tomar sorvete. Era uma delícia aquela vida; uma pena eu tê-la perdido.

Quando contei á todos o que acontecera, eles começaram a falar coisas que eu não entendia. Ficava repetindo que eu estava surdo e não podia ouvi-los, mas eles teimavam em conversar comigo e fazer perguntas. Entendia algumas palavras apenas por ler seus lábios, mas eram poucas já que eu era apenas uma criança!

Quando eu estava a ponto de gritar, Althea surgiu no meio deles. Fiquei aliviado, já que ela era e até hoje é uma das meninas mais quietas do mundo todo. Assim que ela chegou perto de mim, segurou minha mão e disse algo para nossos amiguinhos. Aquilo fez com que todos calassem a boca e a escutassem. Percebi que ela estava morrendo de vergonha, porque suas mãos tremiam.

Falei obrigado, e me lembro de dizer algo como:

– Eu percebi que não consigo entender vocês, então vou voltar pra casa e ficar lá até isso melhorar. Quando melhorar eu volto pra brincar e tomar sorvete. – prometi.

Todos sorriram e acenaram com a cabeça. Pedi á Althea para ir comigo até em casa, já que eu morria de medo de atravessar a rua sozinho e algum carro buzinar e eu acabar atropelado.

Ela me acompanhou até em casa e acenou com a mão em um sinal de despedida ao chegar em frente á porta. Ela sorria gentilmente, como sempre.

Depois de anos, era sempre assim que Althea fazia comigo quando ia embora ou quando chegava. Ela foi a única que veio me visitar em todos esses anos. Mesmo sendo vizinhos, muitas das crianças que brincavam comigo moram, até hoje, na mesma rua que eu, e nenhuma delas nem sequer veio falar um “oi”, ou dar um sorriso simpático para mim.

E agora lá estava eu, no meio daquela multidão de adolescentes, cada um indo para um lado, esbarrando uns nos outros, falando e se abraçando, sorrindo e provavelmente contando histórias vividas nas férias de inverno de cada um. A minha história com certeza seria a mais trágica de todas, já que haviam se passado dez invernos e só agora eu ia para a escola.

Althea me puxou até a secretaria, e lá uma moça bonita, de longos cabelos negros e olhos castanhos falou comigo na língua de sinais.

– Olá, Nick. – moveu as mãos. – Meu nome é Kim. Eu sou sua professora de História. Tenho um irmão surdo e mudo de nascença, então sei falar corretamente a língua dos sinais. Será um prazer tê-lo em minha aula. Sei que você consegue ler meus lábios, mas eu gosto mais de falar assim, já que na maioria das vezes meus alunos não entendem. Risos. – falou.

De verdade, ela moveu as mãos formando a palavra “risos”. Quem em sã consciência fala que está rindo? Poxa, eu sou surdo e mudo, não cego. Era só ela sorrir que eu saberia que estava rindo.

Dei um sorriso amigável para ela e, assim que Kim se virou, revirei os olhos. Ela parecia uma daquelas pessoas asiáticas que são tão frias, mas tão frias, que nem precisa de ar condicionado na sala pra esfriar o loca. Entenderam o trocadilho?

Assim que estava tudo pronto para eu poder ter aulas normais com pessoas normais, Althea me puxou com força para fora dali.

– Não gosto da secretaria, principalmente quando a Professora Kim está lá. Aquela mulher parece uma nevasca de tão fria. – comentou.

Ri de sua comparação. Viu? Eu falei.

Al me levou até nossa sala de aula. Ela explicou-me que minha mãe havia me colocado em todas as aulas que ela estava para que eu não me sentisse mal por não conhecer ninguém, e eu me senti tão feliz. Minha mãe realmente merecia um prêmio!

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Sentamos-nos nas últimas carteiras, bem no fundo mesmo. Althea me explicou que “os populares” se sentavam nas primeiras fileiras; os “nerds” nas do meio, e o resto das pessoas no fundo. Não entendi bem isso, já que nos filmes geralmente é ao contrário, mas assenti e fiquei paradinho no meu lugar ao lado dela.

Ficamos esperando um bom tempo até a aula começar, o que foi bom para mim, já que adiou a minha agonia. Sim, agonia, já que em praticamente todas as escolas os professores perguntam seu nome no primeiro dia. E cá entre nós: passar o vexame de ser aluno novo e ainda ter a audição bem afetada era o pior mico do mundo.

Quando todos os meus colegas começaram a se arrumar em suas carteiras deduzi que o sinal havia tocado, então fiz o mesmo: virei-me para frente, endireitei as costas deixando-as eretas e coloquei as mãos alinhadas corretamente em cima da mesa. Olhei para frente e esqueci-me do mundo ao meu redor.

Literalmente. E isso não foi nada bom, já que o professor veio até mim pelo lado, e eu não pude enxergá-lo porque estava muito ocupado tentando não ser notado e me comportar como um aluno normal.

Aparentemente, não funcionou muito bem.

Althea me cutucou com o dedo, e eu apenas bati nele com minha mãe. Não queria levar bronca por conversar na aula logo no primeiro dia. Ela cutucou de novo; eu bati novamente.

Então acho que ela se cansou e me deu uma brusca puxada para trás pelo ombro, o que fez com que eu quase a mostrasse o dedo do meio. Quando levantava a mão, vi o professor ao meu lado com um sorriso de lado no rosto, e tive vontade de virar um tatu e me esconder no meio da terra. No entanto aquilo não seria possível no momento.

Sorri de volta para o professor e ele me falou algo.

– Olá. Qual seu nome, aluno novo? – perguntou-me.

Engoli em seco e virei-me para Al de olhos arregalados e expressão desesperada. Ela me apresentou á ele e ao resto da turma, e também mencionou meu problema. Um engraçadinho lá do grupoinho dos populares gritou algo como:

– Então se eu chamar ele de babaca ele não vai ouvir? – com seu sorriso cínico, ele perguntou-lhe.

Irritei-me instantaneamente e não me contive: elevei a mãos, abaixei quatro dedos e lhe mostrei o famoso dedo do meio. Todos riram do meu gesto e eu me senti realizado por humilhá-lo na frente da turma. Al deu um sorrisinho e explicou que eu sabia ler lábios também. E ainda adicionou:

– Ah, e babaca é a senhora sua mãe, seu idiota.

Todos mais uma vez caíram na gargalhada e o brutamonte se calou pelo resto da aula. Até que não foi tão ruim assim, pensando e analisando bem.

Quando todas as aulas acabaram, Althea novamente me acompanhou no caminho até em casa. Ela tagarelava sobre várias coisas, mas eu nem me dava ao trabalho de olhar para sua boca se mexer; eu estava extremamente cansado. Ir á escola as sete da manhã não é fácil, não!

Quando chegamos ela se despediu e foi para sua casa. Entrei e Gemma estava do mesmo jeito de quando eu saí: sentada no sofá com a caneca de chocolate quente em mãos enquanto assistia á algum de seus seriados favoritos.

Soltei um longo suspiro e joguei a mochila no pé da escada. Minha mãe, como em um passe de mágica, apareceu no batente da cozinha e fez sinais para que eu levasse a mochila para meu quarto.

Relaxei os ombros e praticamente me rastejei até a bolsa. Peguei-a, coloquei no ombro e subi as escadas apoiando as mãos nos degraus bem acima de mim. Entrei em meu quarto e novamente joguei a pobre coitada da mochila em algum canto; estava cansado demais para colocá-la certinha e bonitinha em cima de minha mesa.

Joguei-me na cama e fiquei abraçado ao Chantilly por um longo tempo. Chantilly é meu bichinho de pelúcia no formato de um donut. Não me pergunte o porquê desse nome; eu tinha apenas quatro anos quando o nomeei, e minha palavra favorita na época era “chantilly”.

Quando eu estava prestes a cochilar abraçado do meu bichinho de pelúcia – eu sei que até agora eu pareço o cara mais gay que você conhece, mas não posso fazer nada para mudar isso – minha mãe entrou no quarto e me arrastou para fora do mesmo. Era meu dia de lavar a roupa suja. Droga!

Fui até a lavanderia e passei horas em um tédio interminável. Era blusa manchada pra lá, calça fedida para cá, meia encardida aqui, moletom molhado ali. Não terminava nunca aquele monte! Eu já estava prestes a me jogar no meio daquelas roupas e tirar um cochilo.

Uau! Eu realmente estava cansado! Isso nunca acontecia comigo. Eu culpo a escola; afinal, pra quê ter aulas tão cedo? Eles têm algum preconceito com a parte da tarde? Não gostam do sol, são todos vampiros, por isso preferem estudar de manhã? De verdade, ás sete horas eu poderia estar dormindo, tomando café, vendo televisão, não sei, qualquer coisa melhor do que me vestir para ouvir pessoas mais velhas contar histórias mais chatas que as aventuras dos meus tios!

Acabei de fazer minha tarefa diária obrigatória e voltei para meu quarto. Avisei para minha mãe que tomaria banho e dormiria até a hora do jantar; e foi isso mesmo que fiz. Vesti um moletom quentinho, de lã, e uma calça comprida bem grossa. Coloquei meias nos pés, uma touca na cabeça e me joguei no colchão. Embrulhei-me nas cobertas e se alguém tentasse me achar perderia dez minutos de sua vida me tirando do monte de edredons que me cobriam.

Fechei os olhos, respirei fundo, e comecei a cantar uma música mentalmente. Como até meus seis anos eu ouvia direito, ainda lembrava-me de algumas músicas. Cantei Love Me Do, dos Beatles, em minha mente e adormeci tanto quanto um recém-nascido.