O tempo passou rapidamente, e uma semana inteira chegara ao fim. Calista, internada no hospital da cidade de Celadon, permanecia inconsciente. E foi somente no começo da terceira semana que Cynthia tomou coragem para ir vê-la. Como já esperava, encontrou Ash junto de sua irmã mais velha.

Uma olhada de relance para a morena foi mais do que o suficiente. Ela jazia imóvel sobre a cama, tão pálida que mais parecia uma boneca de cera, conectada a várias máquinas. Seu braço esquerdo estava estendido paralelo a seu corpo, com um acesso intravenoso no antebraço. Prestando mais atenção, Cynthia viu o aspecto mais preocupante da cena: a sutil aura avermelhada ao redor da jovem.

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Aquela visão fez a campeã cerrar os punhos, sentindo seu sangue ferver. Estava furiosa, tanto com Darkrai quanto consigo mesma por ter deixado que aquilo acontecesse. Tudo acabara acontecendo exatamente como da primeira vez, e Cynthia se vira, exatamente como antes, incapaz de impedir.

— Ela vai ficar bem. — Ash garantiu, arrancando a campeã de seus pensamentos, interpretando corretamente seu silêncio. — Minha irmã é forte, ela enfrentaria um Gyarados furioso com as próprias mãos se precisasse, e venceria a briga. Isso não é nada que a Caly não possa superar.

— Espero que sim, Ash. — A loira respondeu. — E como você está?

— Eu estou bem. — O rapaz garantiu, abrindo um pequeno sorriso. — Já é bem ruim que nossa mãe nem sequer consiga vir aqui. Um de nós tem que ser forte, não é?

Cynthia assentiu. Ela conhecia bem a determinação de Ash, que fora afinal o que a fizera reparar no garoto anos antes.

— Tome cuidado, está bem? — A loira disse gentilmente. — A última coisa de que você precisa agora é acabar ficando doente.

— Pode deixar. — O rapaz prometeu com uma risada. — Caramba, Cynthia, você está falando igual a minha mãe!

Essa declaração fez a campeã esboçar um sorriso.

— Então ... — Ash disse, quebrando o breve silêncio que se instaurara após seu último comentário. — Você volta para casa hoje, não é? Hitoshi me falou.

— Ainda não. — Cynthia respondeu. — Mudei meus planos. Vou ficar aqui em Celadon mais algumas semanas.

Ash a encarou, surpreso com aquela novidade. Ele sabia o quanto Cynthia levava a sério seus deveres como campeã. Ela não faria aquilo, ele tinha certeza, a não ser que julgasse valer muito a pena.

— Pensei que você precisasse voltar.

— Na verdade não, as coisas geralmente são calmas na Liga nessa época do ano. — A loira confessou. — Descobri uma lenda que me despertou o interesse, vou ficar para investigar. E se ... Se houver alguma novidade ...

— Eu te aviso. — Ash prometeu. — Mas não precisa esperar por mim. Tenho certeza que a Caly vai gostar de saber que você veio.

— Acha mesmo que ela pode nos ouvir, Ash? — Cynthia perguntou, embora, bem no fundo de si mesma, já soubesse a resposta.

— Pode apostar que sim. — O rapaz garantiu com total confiança. — A Caly é teimosa, você sabe disso. Ela não vai ceder assim tão fácil a nenhum pokemon idiota.

Dessa vez o sorriso que curvou os lábios da loira foi genuíno. Cynthia sempre gostara da confiança daquele rapaz, que se traduzia em uma honestidade quase sobrenatural. Mas havia também uma ponta de tristeza naquele sorriso, de culpa e depreciação.

— Ash, eu ... Sinto muito. — A loira disse. — O golpe deveria ter me atingido. Se sua irmã não tivesse me tirado do caminho ...

— É, eu sei. — Foi a resposta, acompanhada por um dar de ombros. — Eu vi. Mas não se culpe. A Caly teria feito a mesma coisa por qualquer outra pessoa. Ela é assim mesmo. Ser irritante não é a única coisa que minha irmã sabe fazer.

Calista, que apesar de sua aparente inconsciência tinha a mente e os sentidos extremamente alertas, sentiu uma onda de orgulho. A admiração na voz de seu irmão mais novo mais do que compensava a crítica em suas palavras.

A jovem tentou abrir os olhos ou fazer qualquer movimento para provar que Ash tinha razão, mas não pôde. Não conseguia sentir seu próprio corpo. Era esse o efeito do Abismo das Sombras, tornando-a uma prisioneira de sua própria mente.

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Mesmo assim Calista continuava alerta e às vezes conseguia, por alguns breves minutos, ouvir o que se passava ao seu redor. Mas mesmo isso exigia muita energia. Como um elástico esticado demais que inevitavelmente acaba se rompendo, Calista sempre acabava sendo lançada de volta ao vazio.

(...)

— Caly.

A voz de sua mãe a trouxe de volta à superfície, fazendo Calista se sentir mais acordada do que em qualquer uma das ocasiões anteriores.

— Eu te disse, não foi? Te disse mais de uma vez, mas você nunca me ouviu. Exatamente como o seu pai. — Dehlia soltou um longo suspiro, trêmulo por causa das lágrimas. — E quanto a Liam ... Eu não lhe falei toda a verdade sobre ele.

Não mesmo. A morena pensou acusadoramente. Tarde demais, mamãe. Agora é tarde demais.

— Ele ... Ele nos deixou. Antes de Ash nascer. E nunca voltou. — Dehlia confessou baixinho, seu pranto silencioso se tornando soluços altos. — Caly, por favor, acorde. Se ... Se eu perder você também ... Eu não vou aguentar.

Calista não estava com raiva por sua mãe ter guardado aquele segredo. Não conseguiria mesmo se quisesse, porque podia entender o motivo. Sua mãe havia mentido para protegê-la, porque acreditar que seu pai havia morrido era melhor do que saber que ele era um homem sem coração capaz de abandonar a própria família.

A jovem redobrou os esforços em sua luta para conseguir fazer qualquer movimento, tentando fazer sua mãe saber que a ouvira, que a perdoara. Sem sucesso.

A escuridão que a envolvia parecia sólida, como paredes ao seu redor. Calista imaginou-se batendo naquelas paredes, estilhaçando-as com socos e chutes como se fossem feitas de vidro. Mais uma vez a exaustão a dominou e qualquer vestígio de consciência desapareceu no vazio.

Um mês inteiro se passou dessa forma. Dehlia não suportou, desistindo de qualquer esperança. Mais um mês se passou. Cynthia mantinha contato constante com Ash, Calista podia ouvir seu irmão falando com a campeã pelo telefone. É claro que sim. Afinal, ele prometera mantê-la a par de qualquer novidade. O problema era que não havia nenhuma.

Três, quatro e então cinco meses se passaram sem nenhuma mudança no quadro da jovem performer. Pelo menos não alguma que pudesse ser detectada. Nesse interim, embora ninguém que a observasse pudesse adivinhar, Calista se tornava cada dia mais forte, mais capaz de lutar contra os efeitos do Abismo Sombrio, e seus intervalos de consciência se tornavam mais e mais longos.

A jovem pôde ouvir quando Cynthia foi visitá-la, o que aconteceu pelo menos mais duas vezes depois daquele primeiro dia, quando ela revelara a Ash que estenderia sua estada em Kanto. Em ambas as ocasiões as duas mulheres foram deixadas a sós e Calista se surpreendeu.

Cynthia era a única outra pessoa além de seu irmão mais novo que não se abalava com o fato de que a jovem não parecia ser capaz de ouvi-la, e aquelas conversas unilaterais fizeram com que Calista mudasse completamente sua opinião sobre a campeã, amaldiçoando o quão cega seu orgulho a tinha levado a ser.

(...)

Algo envolveu seu pulso direito. Calista sentiu um peso morno e macio contra seu peito, e sorriu por dentro. Sabia exatamente o que, ou melhor, quem, estava aninhada contra ela.

— Desculpe por não tê-la trazido antes. — Disse a voz conhecida de Gary, soando completamente sem jeito. — Nós ... Bom, o Ash achou que ela não fosse aguentar. Mas eu pensei que seria uma boa ideia, no fim das contas. Mira é tão durona quanto você, e ela queria te ver.

Claro que não foi uma boa ideia!, Calista esbravejou em pensamento. Seu idiota!

E a morena estava certa, levar Mirabelle para vê-la se mostrou uma péssima ideia. Poucos minutos na presença de sua treinadora e a Sylveon já chorava incontrolavelmente.

Ouvir os soluços de sua companheira, sempre a mais durona de seu time, a pokemon mais durona que jamais treinara, fez o coração de Calista se estilhaçar em milhões de pedacinhos. Era como se a dor dela fosse sua também, compartilhada e acrescida.

— É, garota. — O neto do professor Carvalho disse baixinho. — Eu sei bem como você se sente. Também sinto falta dela.

Mirabelle cutucou a bochecha de sua treinadora com o focinho, e a jovem sentiu as lágrimas da pokemon tipo Fada caírem sobre sua pele, o que fez uma renovada onda de energia percorrer seu corpo.

Calista investiu contra as paredes de escuridão mais uma vez com toda a força de que dispunha, cheia de indignação. Qualquer coisa que fizesse sua parceira sofrer era odiada pela morena com fúria, e isso a fez querer mais do que nunca vencer os efeitos do Abismo das Sombras, derrotar Darkrai e mostrar que era mais forte do que seu inimigo.

Sua luta, porém, só serviu para deixá-la cada vez mais exausta, até que Calista se viu incapaz de continuar. Ela sabia, porém, que tentaria de novo. E de novo. E de novo. E de novo, não importando quantas vezes fossem necessárias.

(...)

Flutuar na névoa negra nem sempre era fácil. Haviam intervalos de consciência, em que Calista podia ouvir e sentir tudo o que se passava ao seu redor. Haviam intervalos de exaustão e esquecimento, puro vazio. E haviam os pesadelos, terríveis imagens de sangue, sofrimento e morte que superavam qualquer horror capaz de ser criado mesmo pela mais perversa das mentes.

Nessas horas, presa do horror dos pesadelos, Calista se perguntava se realmente valia a pena continuar lutando. Os pesadelos se tornavam cada vez piores na medida em que sua luta para despertar se tornava mais desesperada. A jovem temia por sua própria sanidade, sabia que não aguentaria aquilo por muito mais tempo. Não daquele jeito. Não sozinha.

(...)

— Ah, claro. Só porque você quer, cara.

A voz penetrou o torpor da jovem morena, atraindo sua atenção. Era a voz de um homem jovem, mas não era a de Ash. Calista não reconheceu quem falava.

— Eu só vim porque minha irmã insistiu. — A voz continuou — Ela me pediu para trazer isso. Disse que Calista entenderia. Como se ela pudesse entender qualquer coisa nesse estado.

Calista ouviu algo ser colocado em uma superfície sólida, e então o cheiro de lírios do vale a atingiu. Mesmo naquela prisão criada por Darkrai, o perfume das flores trouxe a lembrança de volta com clareza e a irmã de Ash viu Cynthia como se ela realmente estivesse ali.

Em sua lembrança a campeã estava cercada pela neve que caía, incitando-a com aquele sorriso cheio de malícia. De sob o capuz de seu casaco de inverno, casualmente jogada sobre seu ombro direito, escapava uma grossa trança cuja ponta era presa por um enfeite na forma de um lírio do vale.

As flores eram mais do que um simples presente, disso Calista teve certeza no momento em que Hitoshi as mencionou. Os lírios eram uma mensagem da campeã, embora a jovem não conseguisse entendê-la.

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— Acha que a sua irmã vai melhorar? — Hitoshi perguntou. — Não que eu me importe, mas a nee-chan está preocupada pra caramba. Nunca a vi tão abalada.

— Você é um babaca, Sugimoto. — A voz de Ash se fez ouvir, um pouco mais distante. — Pode dizer para Cynthia que Caly vai melhorar, sim. Ela vai acordar quando estiver pronta.

— Será mesmo? — O tom do irmão de Cynthia foi cínico. — Minha irmã não te contou, não é?

— Me contou o que?

— Já vimos isso acontecer. — O jovem treinador de Sinnoh revelou. — Uma pessoa sob a influência de Darkrai. Ele nunca se recuperou totalmente.

— A Caly é diferente. — Ash declarou com convicção. — É como ela sempre diz: somos Ketchum. Nós nunca desistimos. É nisso que ela sempre acreditou. Vai por mim, minha irmã não vai ceder até superar isso.

A certeza na voz de seu irmão a emocionou. Era a primeira vez desde que fora embora de casa, aos quinze anos, que Calista ouvia Ash falar dela daquela forma, como a irmã mais velha toda-poderosa, a heroína invencível que um dia ele acreditara que ela era.

Depois de algum tempo os passos de Hitoshi se afastaram e sumiram à distância. Só então ela ouviu Ash soltar um suspiro longo e pesado, cheio de cansaço.

— Ele meio que tem razão. — O moreno disse pensativamente. — Caly ... Você está tentando, não está? Está tentando acordar?

Eu estou, Ash. Eu estou tentando!

— Se você não estiver ... — A voz do jovem tremia, num misto de raiva e tristeza. — Ou se tiver desistido ... Se você sequer pensar em desistir ... Saiba que eu nunca ... Nunca ... Jamais ... Vou te perdoar. Nunca, ouviu?

Eu estou tentando, Ash!, Calista lutava com ferocidade contra a névoa negra, agora mais do que nunca. Estou tentando. Eu nunca vou parar. Prometo!

Um clique, uma mudança, a súbita compreensão do por quê Cynthia lhe enviara os lírios. As flores eram um lembrete, um modo de lhe dizer que não estava tão sozinha quanto os pesadelos a levavam a crer.

Sua determinação veio à tona novamente, junto com uma onda de vergonha ao pensar nas semanas antes do torneio de Snowpoint, nos vários encontros com a campeã em locais históricos ao redor da região de Sinnoh, no quanto as duas haviam se dado bem. Mas, quando chegara a hora, Calista fora intolerante e idiota, descartando a amizade que havia nascido entre elas ao virar as costas sem nem mesmo dar a Cynthia uma chance de se explicar quando a loira claramente tinha algo a dizer.

Que droga! A morena pensou. Droga, droga, droga! Eu preciso consertar essa besteira!

A luta da jovem se tornou ainda mais feroz, tanto que ela quase conseguiu estilhaçar as paredes sombrias. Se Ash estivesse prestando atenção, teria visto as pálpebras de sua irmã tremularem, prontas para se abrir. A exaustão, porém, levou a melhor novamente.

(...)

O sexto mês de seu coma chegou sem nenhuma mudança aparente, mas a cada embate Calista se sentia um pouco mais forte e a batalha contra a prisão sombria era mais fácil.

Havia, é claro, o medo, poderoso legado daqueles pesadelos horrendos, que lhe trazia incerteza e lhe minava a força de vontade. Quanto mais a névoa se dissipava, mais nítidas as imagens grotescas se tornavam, a ponto de se misturar com a realidade de suas lembranças e distorcê-las. Calista precisava fazer um esforço consciente para definir o que era ou não real, e se perguntava até que ponto poderia continuar fazendo aquilo.

Numa dessas ocasiões a morena sentiu alguém afastando algumas mechas de cabelo que haviam caído em seu rosto. Era uma mão delicada, feminina, e por alguns instantes a jovem pensou que fosse sua mãe.

— Eu sei pelo que você está passando. — A voz era familiar, embora não fosse a de Dehlia. — Não ceda ao medo. Não deixe que ele vença. Você não pode desistir e deixá-lo vencer, Calista.

Cynthia. É claro. O fato de a campeã ter ido vê-la mais uma vez mal a surpreendeu. De certa forma, Calista sabia desde o começo que ela o faria. Desejava aquilo, até. Foi a voz dela, aquela raiva latente em sua última frase, que a surpreendeu.

— Calista ... Eu nunca me desculpei, não é? Por aquela batalha. Eu realmente não tive a intenção de humilhá-la. — A campeã soltou uma risada baixa, breve e amarga. — Que diferença faz, huh? Não é isso que você diria? Intenções não mudam o que aconteceu, você tinha razão sobre isso e eu não quis admitir. Fiquei com medo e acabei estragando tudo.

Com medo?, a morena se perguntou, atônita. De que diabos ela está falando?

— Vou lhe contar a verdade: Steven já havia me falado sobre você. Ele queria que nos conhecêssemos, mas não teve a chance de nos apresentar quando você estava em Hoenn. — Cynthia mais uma vez deu uma risadinha, dessa vez mais bem humorada. — Caramba, se você tivesse a mínima ideia de como ele a descreveu!

Se pudesse Calista teria rido com a loira pois, conhecendo Steven, sabia exatamente como ele a havia descrito. Forçando um pouco a memória, a jovem lembrou-se de um dia que há muito esquecera, quando ela e Steven haviam combinado de se encontrar para explorar uma caverna.

Sei que cheguei mais cedo do que ele esperava, e Steven ainda não me viu. Isso é bom. Penso em surpreendê-lo, mas paro em seguida ao ouvi-lo falando ao celular. Pelo seu tom de voz, é alguém íntimo, um amigo. Ele desliga logo depois e, ao se voltar para guardar o aparelho na mochila, nossos olhos se encontram.

— Calista! — Ele sorri. — Você chegou cedo.

— Oi, Steven. Pois é, o concurso demorou menos do que o esperado.

— Vitória para você, suponho.

— Ah, sim, eu venci. Como sabe disso? Os resultados já foram divulgados para o público?

— Não. — Steven ri. — Eu simplesmente sei que nenhuma outra pessoa teria chance contra você.

— Ah, por favor. — Respondo, sentindo minhas bochechas esquentarem com seu elogio. — Você exagera. Acredita mais em mim do que eu mesma.

— Não se trata de acreditar. — Ele rebate, cheio de si. — Eu sei reconhecer um talento raro quando o vejo.

Sei que estou corada agora, mais vermelha do que um Groudon. Por um instante, sinto a vontade infantil de esconder meu rosto entre as mãos. Steven, porém, simplesmente acena na direção da entrada da caverna.

— Pronta? — Ele pergunta, me desafiando com o olhar. — Estive analisando as formações rochosas da entrada, e o lugar parece bem estável.

— Como aquele em que nos conhecemos?

— É claro. Todos sabem sobre os túneis subterrâneos naquele lugar. A culpa foi sua por não ter se informado primeiro.

— Certo, certo. — Eu rio. — Culpada. Pode amarrar isso?

Steven assente enquanto lhe estendo a ponta da corda que enrolei ao redor de minha cintura. É uma medida de segurança, mas nunca dominei a arte dos nós. Os meus sempre se desfazem nas horas mais impróprias. Steven, porém, termina o arranjo com um simples e experiente puxão. A outra ponta é colocada dentro de minha mochila, ao alcance da mão para caso de necessidade.

— Pronto. — Ele anuncia. — Está bem firme.

— Obrigada. Tem certeza de que teremos tempo?

— O suficiente. — Ele responde. — A propósito ... Esse foi seu último concurso por enquanto, não foi?

— Sim, foi. As finais são só daqui a um mês. Por que?

— Há uma pessoa que quero que conheça. — Ele diz por sobre o ombro, já penetrando nas sombras da entrada da caverna. — Uma amiga da região de Sinnoh.

— Ah ... — Estou surpresa demais para saber o que dizer enquanto o sigo. — E quem é ela?

— Não vou dizer. — Ouço a risada familiar de Steven das sombras um pouco adiante, se divertindo com minha curiosidade. Ele adora me provocar. — Mas pode acreditar, vocês duas tem muito em comum. Você vai adorá-la.

— Está bem, está bem. Quando vou conhecê-la?

— Daqui a duas semanas. Ela vai estar de passagem para um evento da Liga.

— Está bem, então. Mal posso esperar.

Mas, por uma série de razões, o encontro acabara nunca acontecendo, e até mesmo a memória daquele anúncio brincalhão havia caído no esquecimento.

— Lembra da sua primeira apresentação em Sinnoh? — A voz de Cynthia adquiriu um tom mais caloroso, quase de admiração, arrancando Calista de suas lembranças. — Você talvez não tenha notado, mas eu estava lá. Você foi ... Incrível! Admito, fiquei completamente fascinada. Eu simplesmente tinha que conhecer você. Foi por isso que fui encontrá-la na cidade de Eterna. Quanto a Snowpoint ... Acredite ou não, eu pretendia deixar o torneio antes das finais. Não queria enfrentar você. Ou melhor, eu queria, especialmente depois de vê-la batalhando, mas não antes de lhe contar toda a verdade.

Calista ouvia em completa incredulidade, acompanhando atentamente cada palavra da campeã. De certa forma, era exatamente o que sempre quisera ouvir. E outra parte de si ainda duvidava, questionava a veracidade de cada uma daquelas afirmações.

— A verdade, Calista ... É que eu sei que isso tudo é culpa minha. Eu sabia o que aconteceria, podia tê-la alertado quanto aos riscos. Ao invés disso permiti que se ferisse. — O tom da loira ficou amargo mais uma vez, de total raiva de si mesma. — Admita: você me salvou para ficarmos quites, não foi? Não queria dever nada a mim, depois de tudo o que aconteceu.

Aquelas palavras, a auto depreciação, a amargura ... Tudo fez sentido de repente, somando-se àquela estranha expressão de determinação vingativa nos olhos da loira quando ela penetrara na escuridão em busca de Darkrai, decidida a enfrentá-lo sozinha. Aquilo não havia sido seu orgulho como campeã, como Calista supusera na época. Fora raiva pura, uma vingança totalmente pessoal.

Loira estúpida! A irmã de Ash queria se levantar, agarrar aquela loira pelos ombros e sacudi-la. Devia ter me dito alguma coisa! Mas que droga! Você ainda não entendeu nada! As coisas só estão começando a mudar!

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O quarto ficou em silêncio. Os dedos de Cynthia brincavam no antebraço de Calista, a morena podia senti-los traçando desenhos erráticos em sua pele, e supôs que a campeã estivesse perdida em pensamentos, distraída demais para notar o que fazia. Um soluço baixo cortou o silêncio de repente, e Calista ficou surpresa ao constatar que a loira estava chorando.

— Nunca terminamos nossa batalha. — Ela declarou, se esforçando para manter o tom brincalhão, embora sua voz tremesse. — Mas eu claramente venci de novo. Vamos precisar de outra revanche.

Não. Calista queria dizer. Já chega de revanches. Chega dessa briga ridícula.

— Calista. — Cynthia disse enfim, depois de mais alguns minutos de silêncio. — Por favor. Acorde. Eu não quero ter que admitir que estava errada sobre você.

Algumas horas depois, Calista finalmente foi capaz de abrir os olhos. Era noite, e ela estava sozinha. A jovem encarou a semiescuridão do quarto desconhecido, seu corpo tremendo incontrolavelmente. E então um grito escapou de seus lábios. Um grito de puro pavor, arrancado da base da espinha, do mais profundo âmago de seu ser.

Os médicos vieram, houve uma grande confusão, mas nada conseguiu acalmar os tremores violentos que a acometiam. No final, tiveram de sedá-la. Isso a fez mergulhar em um torpor dominado por pesadelos, apenas para acordar algumas horas depois, trêmula de pavor.

Cada músculo de seu corpo doía e seus pensamentos estavam emaranhados como um novelo de lã pego por um Persian. Ela virou a cabeça devagar na direção de uma pequena luz. Vinha da janela. Estava quase amanhecendo, e a luz do sol começava a se filtrar pelas cortinas. Calista se concentrou nisso, tentando controlar sua respiração acelerada, perigosamente perto de começar a hiper ventilar. Os tremores recomeçaram segundos depois, tão violentos que mais pareciam convulsões.

— Calma. — Uma voz baixa soou à sua direita. — Está tudo bem. Acabou. Você está segura agora.

Uma mão pousou em seu braço. Por mais estranho que fosse, aquele toque ajudou a acalmar o pior dos tremores, que aos poucos foram diminuindo de intensidade até tornarem-se apenas leves arrepios. Finalmente Calista conseguiu virar o rosto para procurar a dona daquela mão.

Olhos azuis a encararam de volta, num tom impossivelmente claro, o mais próximo do prateado que jamais vira em qualquer outra pessoa. Calista podia jurar que o azul-acinzentado daquelas íris rutilava e se movia como nuvens de tempestade em um céu nublado.

— Cynth ... — Sua voz saiu rouca, falhando e arranhando ao passar pela garganta. Falar doía muito, mas mesmo assim a jovem insistiu. — Cynthia? O que ... ?

— Não tente falar. — A campeã ordenou, seu tom gentil apesar de tudo. — Não sei o que você viu, mas eu sei sobre os pesadelos ... E sobre a névoa negra.

Isso fez Calista ficar totalmente alerta por alguns segundos, apesar do sedativo. Cynthia pôde notar isso, ela viu o modo como aqueles olhos verdes brilharam ao se fixar em seu rosto, quase como se um relâmpago os atravessasse.

— Como ... ?

— Agora não. Quando você se recuperar, explicarei tudo. É uma promessa. Por enquanto ... Isso deve ajudar. — Cynthia virou-lhe a mão esquerda com a palma para cima, lhe entregando algo e gentilmente fechando seus dedos ao redor do objeto. — Se os pesadelos piorarem, ou qualquer outra coisa acontecer, quero que me diga. Vou deixar meu número com você.

A morena assentiu, fraca e cansada demais para protestar. Sua mão livre se estendeu para o pequeno criado-mudo ao lado da cama, onde repousava um copo de água cercado por vários comprimidos. Cynthia, porém, segurou seu pulso antes que a jovem pudesse pegá-los.

— Calmantes não são uma boa ideia, por mais leves que sejam. — Ela advertiu. — Tentadores, é claro. Mas lembre-se de que a partir de agora será durante seu sono que a influência restante de Darkrai poderá se manifestar.

— Como?

— Pesadelos, principalmente. — Foi a resposta. — Não sei muito, mas sei que ele vai tentar usar isso para enlouquecer você. Talvez até obrigá-la a fazer coisas enquanto dorme.

— Isso é possível? — Calista inquiriu, sua voz tremendo de pavor ante aquela possibilidade.

— Por algum tempo, será. — A campeã afirmou — Mas não se preocupe com isso por enquanto. Tente descansar. Ele não vai feri-la, você tem minha palavra.

— Cynthia ... — Calista lutava para manter seus olhos abertos, para fazer com que sua força de vontade não vacilasse. Ainda precisava de uma última resposta. —Por que você está me ajudando?

— Porque é a coisa certa. — Foi a resposta. — Mesmo que ainda tenhamos algumas diferenças a acertar.

As duas ficaram em silêncio, mas Calista não conseguiu fechar os olhos. Os pesadelos ainda a aterrorizavam demais. Ela não queria enfrentá-los de novo tão cedo.

— E se ... — Ela sussurrou, hesitante. — E se ele me forçar a fazer algo de que eu vá me arrepender? Alguma coisa ... Horrível?

— Ele não vai. — Cynthia assegurou. — Você já o venceu uma vez, pode fazer de novo.

— Fique. — A morena pediu, estendendo uma das mãos. Seus dedos desajeitados envolveram o pulso da campeã num aperto sem força. — Eu não posso passar por isso sozinha.

Devagar, Cynthia girou a mão de modo que seus dedos se entrelaçassem aos de Calista, surpresa por a morena não demonstrar nenhuma contrariedade com seu gesto. Aqueles olhos verdes simplesmente a encararam com ainda mais intensidade, brilhando na luz fraca, implorando em silêncio.

— Você não está sozinha. — A loira declarou gentilmente. — Agora durma.

A irmã de Ash obedeceu depois de mais alguns segundos de hesitação, deixando sua cabeça pender sobre os travesseiros e fechando os olhos. A campeã se permitiu um pequeno sorriso de alívio. Calista ficaria bem, com certeza. Tinha que ficar.