Pobres almas desafortunadas

Arco 2 - Parte 12


— Tenha uma boa noite, senhor Daren. Você também, menino — disse o guarda, retirando o chumaço de algodão do ouvido. — Ora, veja! O tritão parou mesmo de cantar!

Eu andava um pouco duro quando alcançamos o final da ponte. Parecia que era eu quem experimentava o corpo humano pela primeira vez. Hugo olhou para trás e exibiu um sorriso.

— Eles nem suspeitaram. Fantástico!

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— Sim, é verdade. Tive medo de que nos descobrissem.

— Impossível. Seu plano é perfeito, Daren. Odeio admitir, mas é perfeito! Só não gostei muito desta voz que me deu. É tão infantil. Parece até que sou menina.

Puxei-o pelo ombro.

— Ai! Isso dói!

— Escute, seu tritãozinho arrogante — sibilei bem próximo a seu rosto. — Não me interessa o que você é de Ariel. Não permitirei que fale assim do garoto. Se você não ouviu nada do que eu disse lá dentro, vou refrescar sua memória. O Elliot está se arriscando por você. Está arriscando a própria vida. E você tentou afogá-lo alguns dias antes. Então, mantenha essa matraca fechada e não ouse desprezá-lo! Ou te transformo em um molusco e pisoteio você.

— Está bem! Está bem! — Hugo desvencilhou-se. — Não precisa ameaçar. Não vou mais falar mal do seu namorado.

— Ele não é meu... — Esfreguei o rosto. — Escute, não temos tempo para isso. Já passa da meia-noite, e Ariel está esperando. Precisamos deixar o castelo. Lembre-se: não fale com ninguém a menos que lhe dirijam expressamente a palavra.

— Está bem. Está bem. Eu já entendi...

— Vamos. Vou levá-lo até o portão dos jardins.

Ficamos em silêncio. Hugo examinava tudo a seu redor, fascinado pela decoração do castelo. Eu ainda cerrava os punhos. Estava quase arrependido daquele plano louco. Deveria ter optado por algo mais simples, como transformar Hugo em um peixe, ainda que contra a sua vontade, e jogá-lo no mar pelas janelas da torre. Isso me transformaria em um traidor, mas ao menos o garoto estaria seguro.

Droga! Eu estava mesmo preocupado com o Elliot! Aquele moleque sempre foi tão franzino, tolo e irritante, além de ficar me provocando com seus olhares indiscretos para a Erika! Eu deveria mesmo tê-lo transformado em uma esponja do mar! Mas transformara em um tritão... Um tritão prisioneiro que em breve entraria em um sono profundo... Um tritão que poderia morrer de verdade caso eu não executasse as etapas seguintes do plano com destreza.

E tudo isso a troco de quê? Manter minha reputação diante de um rei que sequer respeitava. Assegurar meu direito de estadia naquele castelo. Poder passar mais um ou dois meses ao lado de Erika antes de partir outra vez... Droga! Mas que droga! Ela me odiaria se descobrisse! Imagine sua preocupação ao se dar conta do sumiço do moleque! Eu já havia pensado em algumas mentiras para despistá-la, mas, se não salvasse Elliot, e ele não reaparecesse em uma semana, Erika começaria a desconfiar...

Droga! Droga! Como pude me permitir ser tão egoísta? Como pude envolver o garoto em meus planos? Como pude colocá-lo em perigo? Acho que, no final das contas, eu não havia mudado tanto assim. Ainda era o bruxo do mar egocêntrico e egoísta que usava os outros a seu bel prazer. Tudo pelo capricho de passar mais alguns meses ao lado de uma humana de quem teria de me despedir em breve. Tudo pelo desejo de impressionar um tritão que não me amava mais.

Fechei os olhos. Eu era um monstro.

— Vai demorar muito para chegarmos a esses tais jardins? — perguntou Hugo. — Quero chegar logo à praia...

— Silêncio!

Passamos por dois guardas a postos na entrada do pátio aberto. Cumprimentei-os e segui pelo corredor que nos levaria ao primeiro andar. Hugo estava impassível a meu lado.

— Daren?

— É “senhor Daren” para você. E fique quieto.

Finalmente chegamos aos jardins. Havia outros dois guardas diante do portão. Abri os lábios para pedir a permissão de saída, mas algo me deteve. Seus rostos eram familiares. Eram os jovens que bateram em Elliot naquela tarde.

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— Boa-noite.

— Boa-noite, senhor Daren — disse o garoto mais alto. Acho que o nome dele era Edward. — Boa-noite, Elliot — completou em tom de zombaria.

— Boa-noite! — respondeu o idiota do Hugo.

— Poderiam nos conceder permissão para sair do castelo?

— Sinto muito, senhor Daren. Mas isso não será possível.

O quê?

— Recebemos ordens para não deixarmos ninguém sair ou entrar esta noite.

— Ordens de quem?

— De nosso superior, é claro.

Não compreendi. Para começo de conversa, não deveriam ser eles os guardas a postos naquele portão. Alguma mudança acontecera nos últimos dias, e eu não estava ciente.

— Mas o Elliot precisa retornar à sua casa. Está exausto depois de um longo dia de trabalho.

— Sinto muito, senhor Daren. Ordens são ordens.

— Se desobedecermos, seremos punidos — explicou o outro garoto.

Suspirei.

— Bem, vejo que não há jeito. Obrigado, de qualquer forma. Tenham uma boa noite.

— O senhor também, senhor Daren.

Eu me virei para ir embora. Havia dado três passos quando ouvi os risos.

— Ei, Elliot — chamou Edward. — O que é isso no seu peito? Um colar de concha?

— É! — Hugo sorriu estupidamente. — Você gostou?

— Mas é claro! — Edward riu. — É muito bonito. E até combina com a concha do senhor Daren. Virou o irmãozinho dele agora?

— Irmãozinho! — O outro guarda também riu. — Parece mesmo! Um irmãozinho chorão e babão que o senhor Daren precisa ficar arrastando por aí.

— Eu não sou chorão! — protestou Hugo.

— Com o “babão” você concorda? — rebateu Edward.

Os dois desataram a rir. Hugo cerrou os punhos e fez menção de golpeá-los. Segurei seu pulso.

— Não seja imprudente, moleque. Venha. Vamos embora daqui.

Puxei-o para longe do portão. Hugo deixou-se conduzir a contragosto.

— Até logo, Elliot! Não se esqueça de trocar as fraldas!

Hugo espumava quando adentramos o salão do castelo. Eu também estava com raiva. Droga! Tudo que ofendesse o moleque estava me deixando com raiva! Mas não tínhamos tempo para ladainhas. Precisávamos arranjar outra saída com urgência.

— Por aqui. O portão principal deve estar fechado também. Vamos tentar a cozinha. E trate de esconder essa concha sob a roupa. Melhor evitarmos chamar a atenção para ela.

— Você não manda em mim — retrucou o mimado.

Havia uma área de serviço nos fundos do castelo. Eu conhecia os cozinheiros. Poderia inventar uma história sobre como “Elliot” estava doente e precisava retornar logo a seu lar. Atravessávamos um saguão pouco iluminado quando a ouvi. Erika estava parada a poucos metros de distância, Max encolhido atrás dela.

— Você não tem esse direito, Grimsby! — gritou a princesa com a voz esganiçada. — Não pode fazer isso com ele!

— Não me venha com esses argumentos, Vossa Alteza! Sabe muito bem o que esse cachorro tem feito nas últimas duas semanas. Correndo por aí, quase derrubando as criadas, quase me derrubando um monte de vezes e roendo meus sapatos! Esse cachorro é uma peste e merece ficar trancado por tudo o que fez.

— Ele não é uma peste! Max é só um cachorro. Precisa ter paciência com ele!

Max latiu em concordância.

— É um cachorro muito mal adestrado, Princesa Erika. Impressiona-me que o Rei James ainda aceite mantê-lo aqui. Deveríamos seguir o conselho do Capitão Henrique e transformá-lo em sabão.

— O Henrique é um idiota!

— Não ouse falar assim dele. Vossa Alteza o respeite!

— O que está acontecendo? — cochichou Hugo em meu ouvido.

— Uma discussão.

— Devemos ir embora?

Eu o ignorei.

— Ele não merece meu respeito — respondeu Erika com ojeriza.

— Agora já chega! Está muito tarde, e a princesa deveria estar dormindo. Farei vista grossa por ter tentado me enganar e não revelarei essa pequena travessura a seu pai. Francamente, princesa... Esperar eu dormir na biblioteca para ir atrás do cachorro... Parece um plano infantil. Não é nada digno de sua pessoa...

— Não me fale em dignidade, Grimsby. Todos vocês me tratam feito criança. Estou farta disso!

— Tratam-te como criança, pois te comportas como uma criança. Se continuar assim, não será metade do que a Rainha Helena é.

— Eu não nasci para ser minha mãe, Grimsby!

Max latiu mais alto.

— Agora já chega! Chega! Quem está farto disso sou eu. É hora de a senhorita ir para a cama. Isso é uma ordem, princesa.

— Eu não vou! Você quer prender o Max de novo! Ou você o deixa ir comigo, ou ficarei bem aqui.

— Ora, haja paciência! — Grimsby avançou em um rompante e puxou Erika pelo pulso. Max começou a rosnar. — Obedeça-me agora!

— Solte-me, Grimsby! — ela bradou. — Eu ordeno que me solte!

— Não. — Ele tentou arrastá-la. — Seus pais te deixaram sob meus cuidados, então a senhorita deve me obedecer. E mande esse cachorro embora.

— Não! — Ela tentou arranhar a mão de Grimsby. Max voltou a latir.

— Cale a boca, cachorro! Venha, princesa.

Grimsby arrastou-a pelo saguão, enquanto Erika lutava e jogava o corpo para trás. Eu não tive tempo de me mexer. Max avançou e mordeu o braço do conselheiro real. Um lamento estridente preencheu o cômodo.

— ARRRE! CACHORRO ESTÚPIDO!

Ele deu um chute no rosto de Max. O pobrezinho recuou imediatamente, balançou a cabeça e tentou se aproximar outra vez. Grimsby desferiu outro chute.

— Não! Max! Seu monstro!

Max ganiu alto e correu em nossa direção. Pensei que viria até mim, mas ele foi amparado por Hugo, que o observava com fascínio e ternura. Tomou o focinho ferido em suas mãos e abriu um sorriso gentil.

— Tudo bem. Tudo bem, pobrezinho — murmurou, afagando suas orelhas.

Eu não esperava tanta gentileza daquele tritão. Max piscou para ele e começou a cheirá-lo. Balançou a cabeça, confuso.

— Max! — chamou Erika, mas Grimsby ainda segurava seu braço. — Por que você fez isso? Por que você odeia ele?

— Acho que a pergunta deveria ser por que Vossa Alteza me odeia. — Grimsby afastou-a com um safanão. — Durante anos eu cuidei de você. Aguentei todas as suas travessuras. Ouvi todas as suas lamúrias. Por que é tão ingrata? Quer que seus pais me vejam com maus olhos? Quer que eles me vejam como um incompetente?

Ela meneou a cabeça.

— O senhor é cruel.

— Eu? Cruel? Nos últimos anos, a senhorita só me causou angústia, e eu sou cruel? Francamente! O rei e a rainha deveriam enviá-la logo a uma academia que corrija seus desvios de comportamento.

— Agora já chega! — bradei, assustando os dois. — Essa discussão foi longe demais, Grimsby. Como ousa falar assim com a princesa?

— Mas foi ela que... — balbuciou Grimsby. — Eu não tive... Perdão, senhor Daren.

— Acho bom pedir desculpas mesmo. O que a Rainha Helena pensaria se soubesse que estava machucando a Erika? — rosnei, interpondo-me entre eles. A concha em meu peito brilhou de leve. — Se tiver reclamações, dirija-as ao rei. Por hoje, a princesa deve descansar. E o cachorro vai com ela.

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— Perfeitamente — murmurou Grimsby, esfregando os dedos.

Fitei-o de soslaio. Atrás de mim, Max cheirava as roupas de Hugo.

— Erika.

— Daren.

Falamos ao mesmo tempo. Ela abaixou o rosto.

— Desculpe, eu não...

— Vá para o seu quarto, Erika.

— O quê? — Ela piscou sem entender.

— Eu disse para ir para o seu quarto. — Virei-me para encará-la. — Odeio admitir, mas Grimsby tem razão. Não deveria ficar pregando essas travessuras nele. Você já tem 23 anos. Deveria se comportar como uma princesa.

A cor sumiu de seu rosto.

— O quê?!

— Erika, eu não estou com tempo para discutir isso agora, está bem? Vamos. — Segurei-a pelo pulso. — Está muito tarde. Você deve ir dormir.

— Não, Daren. Me solta!

— Não. — Puxei-a para perto de mim. — Você não pode fazer tudo o que quiser, Erika. Ouça-me ao menos uma vez. Vá para o seu quarto.

Eu precisava tirá-la dali. Queria que estivesse dormindo sã e salva quando libertasse Hugo. Queria afastá-la de Grimsby. Tomei o caminho que nos levaria aos aposentos reais e senti uma resistência. Olhei para trás. Erika tentava fincar os pés no chão.

— Me solta!

— O que está fazendo?

— Me solta! Está machucando!

Soltei-a. Erika afastou-se de mim, esfregando o pulso. Lançou-me um olhar traído.

— Erika — tentei argumentar. — Você precisa me obedecer. Você precisa...

— Você é igual a todos os outros! — ela bradou.

Fez-se silêncio no cômodo. Até Max estava quieto.

— Você é igual a eles! Sempre me dando ordens! — gritou Erika, afastando-se ainda mais.

— Erika... Erika, por favor, escute. É para o seu bem.

— Para o meu bem? — Ela lançou seus olhos sobre mim. Os olhos que queimavam. E lágrimas desciam deles. — Para o meu bem? O seu discurso é o mesmo de todo mundo, Daren. Você também me trata feito criança! Você fala exatamente como o Henrique.

— Não me compare ao Henrique — retruquei, enfurecido.

— Eu não vejo diferença entre os dois! — ela exclamou, e suas palavras cortaram o ar. — Não há diferença entre você e o Henrique... — Ela meneou a cabeça, chorando. — Vocês são iguais.

Eu senti meu coração se contorcer dentro do peito. Aquelas palavras doíam de uma forma que eu só sentira na morte de minha mãe. Erika estava parada a poucos metros de distância, mas era uma distância que nos tornava intocáveis. E os olhos... Os olhos dela brilhavam com o fulgor do fogo.

Mas eu não tive o direito de me indignar. Não tive o direito de resposta. Porque, naquele instante, Max abocanhou a concha roxa, e arrebentou o colar do pescoço de Hugo.