Pequenos Contos

Memória (parte 4)


(Por Aurélio)

Uma das piores sensações do mundo é acordar e não saber quem você é, ou que você perdeu uma parte de sua vida, que passou um tempo e você não lembra de mais nada, e foi assim que acordei, sabendo quem eu era, mas que tinha passado dez anos que muitas coisas tinha acontecido e eu não lembrava. E aquela percepção de que não estão contando tudo era a pior.

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Saber da minha esposa foi doloroso, mas estranhamente era como se eu já tivesse vivido aquela dor e não doeu tanto ou fiquei tão agarrado a dor como se faz quando perde alguém, não sei se por saber que aconteceu tanto tempo ou por saber que os últimos dias dela não foram os mais fáceis tamanha a dor que sentia, Ema foi clara em seu relato.

Asim como foi estranho no princípio ver a minha filha já uma mulher, saber do noivado dela, estar naquela casa, eram coisas que em um primeiro momento eu estranhava, mas por poucos minutos, depois era como se fosse normal se já estivesse, e de fato estava, habituado àquela realidade, o que era um mistério e o que pouco falavam era da dona da casa, Julieta o nome dela, falar, ouvir, pensar naquele nome trazia um sentimento desconhecido.

— Papai, como o senhor está se sentindo?— Ema se aproxima de mim e senta ao meu lado no banco.

—Estou bem, minha cabeça nem doí mais. — olho aquela linda mulher em minha frente e sinto um prazer enorme de saber que a minha menina se transformou em algo mais belo do que era, por esse "pouco" convívio sei que é uma moça doce, preocupada, romântica e firme, sim era a minha pequena Ema. —Só a minha memória queria lembrar das coisas, das pessoas, sinto que tem algo importante que ninguém me diz.

—Penso que o senhor deveria descansar na cama, a viagem foi longa e amanhã, vamos cedo ao médico.— ela toca meu rosto.

—Ema, como a senhora Julieta entrou em nossas vidas?— vejo que ela parou com o carinho na minha face e arregalou um pouco os olhos, posso não lembrar de muita coisa, mas conheço aquela expressão, estava pensando sobre o que dizer.

—Bom, dona Julieta, ela trabalha com café — aceno com a cabeça, pois aquela informação eu já sei, ouvi a chamarem de Rainha do Café um título grande para uma pessoa tão pequena, com uma fisionomia ao mesmo tempo firme e suave, Ema continua com seu relato o tirando dos seus devaneios sobre a anfitriã.— Você a ajudou com o seu cavalo, com o gado dela, sem falar que os habitantes do Vale não se afeiçoaram com ela logo que chegou...

— Porque? Se todos pelo que lembro— acabamos sorrindo por esse comentário sem sentido para a atual situação do filho do Barão— São pessoas tão pacíficas.

— Sim, mas Xavier e o .....Xavier e outras pessoas armaram para que todos no Vale ficassem contra ela e seus negócios — ela pensa sobre o que dizer e isso o incomoda, Ema decide mudar o rumo daquela conversa.— E o senhor a ajudou.

—Porque sinto que escondem algo de mim.

—Porque o senhor não conversa mais com ela? Tem coisas que só ela pode dizer.

—Ema...

—Papai — ela levanta — Vou ver se o jantar está pronto. — e assim ela foge de mim, deixando as dúvidas pairar no ar.

(Por Julieta)

—Não sei Elisabeta.— falei nervosa.

—Você deve dizer a ele dona Julieta, vocês dois estão noivos.— ela senta no braço da poltrona onde estou sentada. Foi tão bom chegar e dar de cara com ela, após instalar Ema e Aurélio, Elisabeta como que sentindo a minha angústia me puxou para o escritório, contei para ela sobre o pedido de casamento, ao qual ela nem ficou surpresa, falei também sobre o acidente e aqui está ela tentando me convencer a falar sobre o nosso relacionamento para Aurélio.

—Mas há tantas outras coisas envolvidas, como eu ter expulsado ele e sua família de casa, a forma inflexível que conduzi tudo.

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—Naquela época mesmo ele já admirava a senhora —eu apenas concordo, mas não deixava ser mais fácil por isso, Elisabeta insiste— E apesar de tudo, ele se apaixonou mesmo assim, deu amor, fez a senhora se abrir para a vida.— toca em meus ombros, passando força.

—Agora é diferente ele não lembra de nada e tem mais — viro meu corpo para olhar para ela— Terei de revelar novamente meus segredos, mentiras e medos, tudo mais uma vez, e Elisabeta, não sei se consigo, se antes com um Aurélio apaixonado, como você diz, já foi difícil, imagina agora com um Aurélio desmemoriado, não sei como ele iria reagir, muito menos fazer bem a ele.

—A senhora consegue, o amor que ele tem pela senhora ainda está lá dentro, a senhora sabe, não sabe?— apenas consigo confirmar, lembro dele chamando por mim do mesmo jeitinho de antes.— E a senhora também o ama, dá para ver dona Julieta, e tem mais se antes ele a conquistou e foi capaz de derrubar a sua armadura, não será a vez da senhora fazer o mesmo?Ele já mostrou o caminho basta continuar e levá-lo junto — ela sai do escritório me deixando com os meus pensamentos.


(Por Aurélio)

O jantar foi servido logo, todos pareciam cansados, minha filha principalmente, pois logo após o jantar ela se despede do noivo que mora perto, um bom rapaz, dá para ver em seus olhos o amor por minha filha, Ema logo subiu para o quarto, um moço que simpatizei logo de cara chamado Darcy, hóspede de Julieta, saiu com sua noiva Elisabeta e irmã. Ficando só nós dois na sala, nos olhando, eu com as minhas indagações e ela com aquele ar de mistério, a roupa preta sinal de que é viúva, outro sinal é as duas alianças no dedo, a dela e a do esposo, indício de carinho e respeito pelo falecido, assim ele pensava.

— Você deveria descansar— ela fala com uma voz suave, o tirando das suas especulações internas.

—Estou sem sono— o olhar dela se prende em mim, já tinha observado isso durante o dia, se estávamos no mesmo lugar logo sentia o olhar dela sobre mim, ou será se era os meus que sempre buscavam os dela?—Vi que a senhora possui muitos livros.

— Sim, gostaria de ler um? — ele acena com cabeça— Vamos no escritório lá tem mais volumes, poderá escolher um para ler se assim desejar.— caminho logo atrás dela, percebe que conheço aquele caminho, e ao entrar no escritório era como encontrar um velho amigo, o ambiente para ser muito familiar, que vivi bons momentos, sem perceber piso na barra do vestido de Julieta fazendo ela parar e virar ao mesmo tempo que meu corpo vai de encontro ao dela, meus
braços envolvem o pequeno corpo, nossos rostos ficassem próximos, a respiração dela fica ofegante, vejo seus olhos irem dos meus olhos a minha boca, talvez por eu estar fazendo o mesmo percurso. Sinto um novo pressentimento de já ter vivido aquela cena, ela em meus braços, eu a olhando fundo, desejando aquela boca, por fim pouco a pouco a soltei dos meus braços.

— Desculpe a machuquei?— ainda estamos frente a frente.

—Não,você nunca me machucaria — diz quase em um sussurro, percebo um brilho a mais naquele olhar, uma imensa vontade de tocar em seu rosto, mas reprimo o meu movimento, baixo a minha mão e dou um passo atrás, com cuidado para não pisar em sua veste novamente, olho para a imensa estante de livros
buscando uma fuga.

— O senhor disse que sonhou comigo, como foi?


(Por Julieta)

Tão próximos, a ponto de quase dividirmos o mesmo ar, mas tão distantes, como há meses atrás nesse mesmo escritório em seus braços, olhando aqueles olhos, aquela boca, sabendo que um beijo iria vir, o desejando, mas dessa vez foi diferente, cautelosamente ele me solta, com pesar não sinto mais seus braços em volta de mim, após o pedido de desculpas vejo a mão dele subir de leve, parece que vai tocar meu rosto e como anseio com isso, com aquele toque, agora eu sei como foi aquele dia na hospedaria em que fui procurá-lo e minha mão ficou a centímetros do rosto dele e não o toquei, como era ruim estar do outro lado desejar ser tocada e se frustrar pelo carinho não vir, Aurélio busca refúgio nos livros, e eu busco força nas palavras de Elisabeta.

— O senhor disse que sonhou comigo, como foi?— ele solta o livro, eu sento na cadeira.

— Eu não lembro bem— se vira para mim e apoia as costas na estante— Nós nos conhecemos há muito tempo?— percebo que ele não quer relatar o sonho para mim e muda o assunto.

—Quase um ano — sou evasiva em minha resposta.— Porque o senhor não me conta do seu sonho— eu tinha saber que sonho era aquele que teve.

— Porque o interesse? É só um sonho.— fala com indiferença, não com aquele petulância tão dele.

—Pode ser uma lembrança.— eu insisto.

— Creio que não.—tem um sorriso mascarado no rosto, se eu não o conhecesse achava que tinha em minha frente uma criança que fazia birra— Digo que não seja uma lembrança pois a senhora chorava em meus braços. — de súbito levantei, era uma lembrança, da noite em que contei sobre o meu passado, eu chorei em seus braços, não uma mas duas vezes, na segunda adormeci no colo dele.— Vou descansar, o senhor deveria fazer o mesmo.

—Perdeu o interesse no sonho?

—Acho melhor descansarmos amanhã….— passo por ele que segura meu pulso, fazendo-o nossos corpos se aproximarem, era tentador o ter tão perto assim.

— Agora diga senhora era uma lembrança? — eu não consigo responder, não sei onde foi parar minha voz, pois me perco naquele olhar e no cheiro que ele tem, Aurélio continua com a face cada vez mais perto — Devo tomar seu silêncio como um sim— ele afirma, não pergunta, permito que meus olhos se fechem e apenas contemplo aquela proximidade, mas então ele retoma a palavra.— Porque chorava em meus braços, o que a fez sair dessa aura que tem em volta de si? E porque eu conseguia sentir a sua dor como se fosse minha?

— Aurélio — um sussurro tão baixo, mas que ele conseguiria ouvir — O que mais você lembra?

— Que eu gosto de a ter tão perto —uma pausa e uma respiração profunda, sua mão sai de meu pulso e segura meus dedos— Gosto de ter você assim — ao falar isso ele me trás mais para perto de si e não suporto mais e entrego-me ao desejo e o puxo e o beijo, e ao sentir os lábios dele junto aos meus era como voltar para casa, era como encontrar um pouco de paz, e dar sossego ao meu coração que clamava por aquilo, a boca dele espontaneamente abre para receber a minha, como se nada tivesse acontecido as mãos dele se encaixam no lugar de sempre, em minha cintura e pescoço, assim como as minhas que vão para sua nuca e rosto, o encaixe de sempre, perfeito, o gosto dele ainda era o mesmo, os toques eram os mesmos, nada mudou, eu podia ficar ali a noite todo, bebendo dele, mas inesperadamente Aurélio parou o beijo, fica parado posso ver a surpresa, confusão em seus olhos.

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— Desculpe eu não devia, foi impróprio — e como uma ladra eu fujo do escritório.

(Por Aurélio)

Ela sai correndo do escritório, depois de uns segundos entorpecido, vou atrás, mas só consigo vislumbrar o vestido preto escada acima, sei que ela vai se refugiar em seu quarto, e não ousei invadir tamanha privacidade, passo meus dedos sobre os lábios, ainda sinto o gosto dela, um sorriso bobo se formou em meu rosto, repito o nome dela meu coração bate mais forte ao chegar à conclusão de que temos uma história, e está perdida em algum ponto da sua cabeça.