Pelo escuro

Precisamos conversar


Então ele não se lembrava! Como ele podia não se lembrar? Foi um momento tão mágico, ou pelo menos para mim foi. O jeito que nos beijamos na noite passada... Foi especial, surreal. De todas as bocas que eu já havia experimentado, aquela foi a que mais mexeu comigo. Porque não era só um beijo, era algo mais. Grande e importante demais para ser explicado; praticamente impossível de se tornar teoria. Apenas podia ser sentido.

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Entrei no quarto e tranquei a porta. Não aguentei chegar à cama. Desabei ali mesmo, encolhendo-me toda para chorar sem ser incomodada. Não conseguia entender. O que era essa dor latejando toda vez que meu coração batia? E porque eu não conseguia superar o fato dele não se lembrar do nosso beijo? Afinal, já passei por isso antes, sei como é.

Mas o problema é justamente ele não se lembrar. Se fosse algo tão importante a ele, ele teria se lembrado. Teria falado comigo sobre aquilo, mesmo que estivesse com o rosto todo vermelho e uma coceira incrível na nuca. Teria sorrido do seu jeito tímido e sem graça e eu teria rido e mentido que foi só um beijo de amigos.

Assustei com o barulho da porta sendo batida. Levantei-me rapidamente e em silêncio. Afastei da porta, como se temesse que as batidas fortes a quebrassem.

—Evangeline? Por favor, me diga o que aconteceu. — pediu Ethan, preocupado. Quase abri a porta e gritei em sua face. Mas eu me segurei. Mordi o lábio, tentando fazer as lágrimas pararem.

—Vai embora Ethan. — eu falei, tentando ser forte.

—Não. Primeiro me conte o que aconteceu.

—Não vou te contar nada, sinto muito se você está com amnésia. — as palavras saíram como palavrões da minha boca.

—Evangeline... —murmurou ele encostando a cabeça na porta. — eu não quero brigar com você.

Abri a boca para responder, mas faltavam as palavras. Eu realmente queria brigar com ele, com meu melhor amigo? Mas afinal, será que para mim ele era mesmo só um amigo? Eu não sabia a resposta de nenhuma dessas perguntas, então apenas murmurei alto o suficiente para ele ouvir.

—Apenas... Deixe-me em paz. Por enquanto. — pedi. Ele não falou mais nada, porém pude ver que a maçaneta, antes retorcida, agora tinha voltado ao normal. Caminhei até minha cama e me encolhi. Pela primeira vez em muitos anos eu queria que minha mãe estivesse aqui para me consolar.

***

Dois dias. Eu não tinha falado com Ethan por dois dias. Ele tentou no primeiro, mas por fim sabia que seria ignorado. Como estava doente, liguei para Jacob e pedi dois dias de folga. E ele me deu sem nem precisar de atestado. Porém ele só me deu dois e no terceiro eu teria o salário descontado, estando doente ou não. Então, o jeito era se arrumar para ir ao trabalho.

Ouvi batidas em minha porta. Nem mesmo com Kyra eu andava falando muito. Ela tentou arrancar-me a verdade, mas eu me recusei. Sei que compartilho tudo com Kyra, mas aquilo parecia errado. Algo tão intimo que me dava vergonha de compartilha-lo.

—Pode entrar. — gritei. Só depois me lembrei de que poderia ser Ethan então me virei rapidamente, encontrando a irmã dele a minha frente.

—Não é o Ethan. — ela sorriu. Então fechou a porta e se sentou na cama.

—Ah. Oi Kyra. Não estava esperando que fosse ele mesmo. — dei de ombros, tentando parecer indiferente.

—Ele até tentou né Eva? Mas você parece mais fechada que caixão de defunto radioativo. Não se abre nem comigo.

—Bom! Assim você não pega doença. — contra argumentei. Kyra sorriu ironicamente.

—Tudo bem Eva, eu tentei ser gentil. Mas se você não vai me contar do modo fácil, eu vou apelar.

—E o que pretende fazer? — perguntei até mesmo rindo um pouco. Kyra não machucava nem uma mosca.

—Bom você tem quinze minutos para chegar ao restaurante. Tecnicamente, se você fosse a pé, já teria que ter saído. Mas como eu vou te levar, então você pode enrolar mais dez. Porém, nós só vamos sair daqui quando você me contar o segredo. — arregalo os olhos.

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—Kyra... Não!

—Eva... Sim! — ela me imita. — poxa vida, estou preocupada com você sabia?

—E é assim que demonstra?

—Situações drásticas merecem medidas drásticas. Agora vai me contar ou não? — olhei para seus olhos castanhos e bondosos. Ela era bem birrenta quando queria. Como sair dali sem revelar nada? Kyra é muito teimosa, ela não vai ceder. Talvez se eu tentar...

Avancei sobre Kyra, prendendo suas pernas e logo em seguida seus braços. Ela ficou nervosa como sempre fazia e se debateu. Isso daria um jeito da chave cair e eu fugiria. Mas não foi exatamente isso que aconteceu. Kyra se debateu feio, mas pareceu entender minha estratégia e começou a usá-la contra mim. Segurou meus punhos e do nada ela já estava em cima de mim, os cabelos roçando meu rosto.

Eu também tinha essa agonia. E por mais que tentasse me libertar, Kyra parecia disposta a me ver ser torturada lentamente, enquanto eu não contasse.

—Fale. Agora! — ela ordenou. Parei de lutar. Era inútil. Então, deitei a cabeça no chão e deixei que minha boca liberasse a história que apertava meu coração.

Kyra saiu de cima de mim, quando percebeu que eu não interromperia a história e sairia correndo. Contei-lhe tudo, desde minha indecisão até agora. Ela pareceu impassível e quando terminei ela falou:

—Não é querendo defender meu irmão, pois eu sei de seu erro. Mas, você não deveria agir tão assim Eva. Afinal, você mesma passou por isso. — lembrou-me a morena. E era verdade. Minha primeira vez foi com um garoto ridículo qualquer em um banheiro masculino de uma festa de ano novo. Eu tinha bebido mais doses naquela noite do que em toda a minha vida e por isso nem vi quando me deitei com ele. No outro dia eu não me lembrava de nada.

Talvez Kyra tenha razão. Talvez essa bebida realmente o deixou com amnésia temporária. Talvez ele até tenha gostado do beijo...

—E o que acha que eu devo fazer? — perguntei, tentando não soar desesperada.

—Bem, acho que devia falar com ele. Ele ficou tão triste nesses dias Eva que achei que fosse morrer. Só sabia estudar e dar má resposta na gente. Ele gosta de você Eva. Talvez até mais do que você acredite. — depois desse discurso emocional eu até ganhei coragem. Beijei o rosto de minha amiga e corri para o andar de baixo, procurando-o. — ele já se foi. — Kyra respondeu minha pergunta oculta.

—Ah sim. E falando em ir...

—Eu sei! Seu atraso. Vamos lá.

***

Não queria ter tempo para falar com Ethan. Embora a ansiedade estivesse me consumindo, eu sabia que só o encontraria a noite, quando chegasse a casa. Kyra dirigiu como uma louca. Quase gritei quando ela passou na frente de um caminhão, ou quando ela quase atropelou um motoqueiro. Quando chegamos, eu apertava o banco com tanta força que meus dedos estavam brancos. Kyra apenas riu e me desejou um bom trabalho quando desci do carro.

Abri a porta dos fundos e fui até os armários, pegando minha roupa e vestindo rapidamente. Quando terminei, corri até a cozinha, e sorri para todos.

—Voltei gente. — eles sorriram.

— Olha quem está aqui. — comentou Ian, me dando um beijinho no rosto. Depois passou por mim em direção ao salão.

—E aí Eva. — o resto me cumprimentou mais ou menos assim. Nem Jacob nem Tobias estavam lá.

—Quais as novas? — perguntei

—JB finalmente se assumiu... — Ricardo começou a falar, mas foi interrompido pelo amigo.

—Eu não me assumi. Garoto mentiroso.

—Certo, ele ainda não se assumiu. Tobias virou o gerente dessa bagaça e todos estamos sofrendo muito desde então.

—Há há, muito engraçado Ricardo.— Tobias apareceu atrás de mim, com uma bandeja. Deixou-a em uma mesa perto de mim, passou a mão em minha cintura e beijou meu rosto assim como Ian havia feito. Depois me soltou e fui buscar alguma outra coisa no fundo. — ah, e senti sua falta Eva.

—Também Tobias. De todos aqui. — eles sorriram concordando.

—Que lindo esse momento maricas, mas é hora de trabalhar. — a voz de Jacob soou alta atrás de mim. Virei-me para meu chefe e passei os braços ao redor de seus ombros dando-lhe um beijo na bochecha. — não adianta adular, marica rainha! Vai trabalhar. — ele brincou rindo para mim. Eu o acompanhei.

—Está bem, né? — saí da sala para começar o trabalho.

***

O movimento estava fraco e dezenas de vezes eu fiquei apenas jogando conversa fora com Chris e Ian. Tobias às vezes trocava uma ideia conosco, mas logo nos mandava trabalhar e saía rindo. Eu estava parada em um canto qualquer observando o movimento, completamente sem trabalho. Tobias parou ao meu lado em silêncio.

—Então, gerente é? — comentei. Ele sorriu o suficiente para eu ver que estava envergonhado.

—Parece que você tinha razão no fim das contas. Eu realmente peguei a gerência.

—Era inevitável. Você dá tudo por esse lugar. — ele assentiu. Percebi que ele estava sorrindo mais, parecia mais leve. Então um sorriso involuntário apareceu em minha boca quando percebi porque ele estava assim. — Está apaixonado Tobias? — ele quase engasgou.

—Apaixonado? Não, por quê? Porque está me perguntando isso? — perguntou ele, claramente nervoso. Gargalhei divertindo-me.

—Você está apaixonado.

—Por que o espanto? Eu ainda sou humano. — ele virou o rosto para o lado, como se estivesse emburrado. Meu sorriso se expandiu, mostrando todos os dentes.

—É que você é tão sério, tão... Militar, que nem parece ter coração.

—Que linda senhora Eva! Só por isso vai pagar cinquenta flexões para mim. — ele brincou. Nós gargalhamos.

—Viu só? Você está brincando comigo. O que o amor não faz?

—Tá, eu estou apaixonado. Mas ainda é o começo entende? Não posso sair por aí fazendo declarações e tudo.

—E como ela é? — perguntei.

—Ah ela é incrível. Sério! Muito engraçada sabe? E inibida. Totalmente o contrário do que eu sou. Não combinamos em nada e chega a ser engraçado. O único problema é que ela é bonita.

—Achei que isso fosse solução.

—Não, ela é muito bonita. Ela é modelo sabe? Daí eu me sinto muito feio perto dela. Ah e também tem os homens por aí... O jeito que a olham me deixa com vontade de bater em todos. — ele fechou a mão em punho.

—Não fique assim ora. Você é lindo, tenho certeza que chega ao nível dela. Enquanto aos outros garotos, a não ser que eles a agarrem, apenas ignore. Não é bom estar com a mulher que todos desejam?

—É, até que é.

—Espera, ela é modelo? Então talvez eu a conheça. Qual é o nome dela? — Tobias não teve tempo de responder, pois a sineta do restaurante chamou nossa atenção. Ethan passou por ela, sorrindo. Atrás dele apareceu uma garota. Quando a porta se fechou, eles se deram as mãos e sentaram em uma mesa qualquer.

—Bem, parece que você tem trabalho. — Tobias falou. Empalideci.

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—Se não se importa — as palavras saiam com dificuldade da minha boca. — eu gostaria que você o atendesse.

—E por quê?

—Por nada, eu só... Não estou bem. — argumentei o que era parcialmente verdade. Se eu os atendesse, provavelmente colocaria fogo no cabelo da garota.

—Você quer ir para casa? Está pálida! — ele parecia preocupado. Sorri despreocupando-o.

—Eu estou bem. Apenas o atenda, por favor. — fui atender outras mesas enquanto observava Ethan conversando com Tobias. Ele fez o pedido e depois saiu com o garçom, conversou no canto olhando para mim e retornou a sua mesa. E, embora ele tenha olhado para mim a noite toda, eu nem sequer cheguei perto de sua mesa, quanto mais cruzei seu olhar.

Quando deram dez horas eles foram embora. Confesso que fiquei com uma dor enorme em meu coração. Achei que ele ficaria para falar comigo, se explicar, brigar até. Mas tudo que ele fez foi ir embora sem nem ao menos olhar para trás. Tobias e os outros me perguntaram se eu estava bem e, embora sentisse que fosse chorar a qualquer momento, apenas sorria e respondia que sim, sempre.

Por fim, o expediente acabou. Não foi duro trabalhar a noite toda porque me concentrei tanto em meu trabalho que nem vi o tempo passar. Quando acabou, Tobias se ofereceu para me levar em casa, já que Ethan nem sequer apareceu. Eu aceitei de bom grado.

—Tá tudo bem mesmo?

—Já falei que sim, ô do exército.

—Do exército? — ele riu.

—Claro. Esse corte e postura são típicos de militar. — ele abriu a porta para sairmos. Quando o fizemos, deparei-me com Ethan encostado na parede e cara de poucos amigos. Meu corpo gelou quando ele disse:

—Precisamos conversar.