— MEU NÃO TÃO QUERIDO DIÁRIO —

1º de Outubro de 2013, 12:25 P.M.

Não posso acreditar no que está acontecendo. Na última vez em que a vida me deu um golpe – tirando de mim a pessoa que eu mais amava: meu pai –, precisei de vários meses para me recuperar, mas prometi que lidaria com todo e qualquer obstáculo que surgisse durante o processo. E no fim, consegui me recompor. Voltei à minha vida normal, reencontrei meus amigos, refiz meu caminho e alcancei limites onde meu braço não alcançava. Resumindo, alcancei a tão sonhada felicidade.

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Mas, de repente, tudo desmoronou, como se um vendaval repentino, desses que surgem do nada, tivesse varrido a minha vida; como se um surto de insanidade ou alguma espécie de transe hipnótico tivesse me invadido de fora e tomado as rédeas, o mundo inteiro anulado por uma lacuna de tempo fora do tempo, antes de tudo ruir e se desfazer em cinzas. A felicidade saiu sem se despedir, sem dizer a que horas voltaria.

Hoje acordei me sentindo muito mal. Estava com frio e a cabeça doía. Talvez pelo fato de não ter comido quase nada nos dias anteriores, ou quem sabe todo o estresse das semanas anteriores estivesse se manifestando naqueles sintomas. A sensação que tinha era de que, se eu levantasse, não conseguiria me manter em pé. Mas eu precisava tentar. Não podia me dar ao luxo de ficar deitado o dia todo. Então, afastei as cobertas e levantei devagarzinho, colocando as pernas para fora da cama. O quarto começou a girar no mesmo instante, e pus a mão sobre o estômago, sentindo uma náusea inevitável.

Sentia o estômago estranhamente oco, e refleti vagamente que precisava evitar uma desidratação. Fui à cozinha e bebi um pouco de água. Senti um espasmo assim que o liquido chegou ao estômago, e gemi de dor. Lembrei-me do frasco de aspirina que estava na gaveta do armário. Peguei dois comprimidos e os coloquei na boca, que por sinal estava mais seca do que a areia do deserto. Bebi o restinho de água que havia no copo, mas não foi o suficiente para me fazer engolir os comprimidos, e os senti dissolverem na língua. De repente, um forte espasmo comprimiu meu estômago, e senti que ia vomitar. Cambaleei até o banheiro, mas não deu tempo, e vomitei no chão, um liquido transparente com aspirina esfarelada.

O mau cheiro logo tomou conta do ar. Senti como se minhas forças tivessem se esvaído junto com o que havia no estômago. Me joguei de volta na cama, na tentativa de voltar a dormir para aliviar a dor e a tensão. Achei bom estar sozinho naquele momento. Àquela hora minha mãe já tinha ido para o trabalho. Pelo menos poderia gemer e resmungar à vontade.

Minha memória está enevoada, e não me lembro muito bem do que aconteceu em seguida. Acho que dormi a maior parte do dia. Em certo momento abri os olhos e vi... Não! Não pode ser! Impossível! Larissa estava lá... Era mesmo ela, de pé, ao lado da cama, a mão estendida na minha direção, como se quisesse me tocar. O susto foi tremendo, mas, ao vê-la, fiquei paralisado. Não consegui dizer uma palavra, nem para perguntar como ela tinha conseguido entrar no quarto, uma vez que deixei a porta trancada à chave. Só podia ser um sonho. Mas, sonho ou não, eu a via, a olhava de um jeito que nunca tinha olhado.

Estendi a mão, a fim de tocar o rosto dela, e foi aí que descobri que aquilo não passava de uma ilusão. A mão atravessou-a como se fosse um espirito, e uma enorme tristeza tomou conta de mim. Mas era uma tristeza sem sentido. Dois meses atrás, minha razão para sofrer como alguém que está condenado à morte se chamava Hannah Anderson. Mas isso mudou. Larissa vem tomando conta dos meus pensamentos, e eu não posso deixar de me perguntar se isso significa que estou me apaixonando pela garota que sempre desprezei, ou se isso é um castigo por todo mal que eu fiz a ela.

Me sinto esgotado. Não há nada que eu queira mais do que conversar com alguém, me abrir. Mas as duas únicas pessoas em que eu confio cegamente não estão ao meu alcance. E eu não tenho vontade de ligar para mais ninguém. Acho melhor ficar aqui no quarto, trancado, esperando a minha mãe chegar.

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Com certeza ela vai ter um surto. Assim que chegar, encontrará a casa suja, desarrumada, minhas roupas amontoadas no canto da parede e uma pilha de louça suja na pia da cozinha. Depois que o papai morreu, eu passei a ser o homem da casa. Uma das minhas funções é manter a casa em ordem enquanto Érica estiver fora. Mas se eu não tenho coragem nem para pôr um pé fora da cama, de onde vou tirar ânimo para fazer os afazeres domésticos?

2 de Outubro de 2013, 07:12 A.M.

Hoje, me sinto como um relógio mais lento, com a bateria perto do fim. Minha cabeça está confusa, não compreendo o sentido dos meus pensamentos.

A cada dia que passa, mais complicadas as coisas ficam. Ao contrário do que se passava nos últimos meses em que eu acordava frequentemente a pensar em Hannah e no que poderíamos ter sido juntos, nesta manhã não foi nela em que eu acordei a pensar. Nas poucas horas que dormi, tive um sonho, e esse sonho, no meu entender, é revelador. Sonhei que estava sentado à beira da praia, de mãos dadas com Larissa, a brisa fresca do oceano arrepiando nossos cabelos molhados, o pôr-do-sol iluminando o mar, refletindo num amarelo ofuscante.

Eu não quero me apaixonar! Não mesmo! Muito menos por Larissa. O destino não pode ser tão cruel a ponto de me fazer amar a pessoa que eu tanto fiz sofrer. Mas, por mais que eu tente pensar em outra coisa, não consigo. A imagem daquela garota não me sai da cabeça. Não consigo fazer nada sem ela na mente. A todo lugar que vou, penso nela. Para todo lugar que olho, eu a vejo. Os céus me lembram seus olhos; o sol, seus cabelos; a lua, sua pele... Isso está me deixando louco. Ou já estou e não sei.

Agora eu vejo como fui idiota. De alguma forma, ela conseguiu me conquistar. Conseguiu me deixar fraco, sem chão. Preciso de algo para me desarmar. E ela é esse algo.

O dia todo ecoa na minha cabeça sinfonias dramáticas. Ao deitar para dormir, o silêncio e a paz não vêm. O que a maioria das pessoas chama de descanso, para mim é um martírio. Eu não durmo. Simplesmente desmaio de exaustão depois de ouvir tantas vezes essas músicas infernais e contemplar aquele rosto sorridente estampado em minhas pálpebras.

De modo voluntário, eu que quis me arremessar a essa melancolia. Fui eu que procurei por toda essa dramaticidade. Talvez para aprender uma lição com a dor. Quero aprender do modo mais difícil que a vida cobra as atitudes mal elaboradas. Pratica-se o mal e o mal volta em potência quadrada. Agora, só me resta esperar que o tempo reverta essa situação.

A vida é um jogo de cartas marcadas.

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