Na terra da garoa

A viagem de ônibus da casa de praia até o SESC da avenida Duque de Caxias demorou menos do que devolver as chaves da casa. A corretora não ficou feliz em receber de volta as chaves sem falar com o tio Edu, mas a mensagem de vídeo mostrou-se mais do que útil neste sentido.

No ônibus não se falava de outra coisa se não do terrível e mal explicado fenômeno climático que tinha assolado o parque ecológico do Cocó. Era a notícia do momento e todo mundo parecia ter uma opinião formada sobre o caso. Oliver ia ao lado de Jade e na cadeira de trás vinham Isabel e Eric. Do outro lado do corredor Lucas e Nathália sentavam em bancos diferentes.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Oliver sentia que havia algo errado com Jade, mas a menina fazia pouco para dar-lhe pistas do que estava acontecendo. Todas as tentativas de conversa por parte do menino tinham terminado em monólogos chatos ou expressões monossilábicas como sim, não e talvez. Depois de tentar por alguns quilômetros Oliver deu de ombros. Era o famoso mistério das mulheres, pensou ele enquanto se concentrava em memorizar o mapa dos arredores do hotel Poliposition, em São Paulo.

Se Jade era uma inescrutável muralha de gelo, Isabel aproveitava a proximidade com Eric. Ouvia atenta as palavras do menino sobre a discussão da noite passada, embora nada daquilo a interessasse de verdade. Ela tinha sido educada daquela forma: para ser uma boa ouvinte para os problemas do seu esposo. Não que considerasse Eric assim. Aliás, nunca tinha pensado com seriedade na possibilidade de se casar. Mas gostava da proximidade com o menino. Ele era estranhamente respeitador, se comparado a todos os meninos que via em vídeos e filmes.

Lucas sentava no corredor e era constantemente alvo de olhares desejosos de homens e mulheres que entravam no ônibus. Mas o filho de Demeter parecia ignorar todos os olhares e piscadelas que recebia. Estava entretido, olhando o movimento do ônibus. Parecia que era uma das poucas vezes que ele andava naquele tipo de veículo. As vezes ele olhava para fora do ônibus e sua expressão dava a entender que embora seu corpo lindo estivesse ali, sua mente estava muito longe.

Desceram na avenida e andaram menos de um quarteirão até o prédio do SESC. Eric foi na frente como o perfeito mestre de cerimônias. Sem demora levou os colegas para o corredor das portas. Isabel estava em êxtase. Ela sentia a trama da magia naquele lugar. Muito organizada. Muito poderosa. Feita com muito carinho e cuidado. Era o primeiro templo dedicado a um deus maior que visitava.

Depois de uma rápida explicação sobre como os portas funcionavam os meninos atravessaram a porta aberta por Evandro Palanteu e num piscar de olhos estavam no SESC Pompéia Nobre, em São Paulo.

– Não acredito – regozijou Jade – eu já vi muita coisa nesse mundo de semideuses, mas isso aqui é fora do normal. Estamos mesmo em São Paulo?

Como se o universo tratasse de responder a pergunta o céu escureceu e uma garoa fina começou a cair. Das pessoas na rua brotaram sombrinhas e guarda-chuvas e a vida pareceu seguir.

– É, estamos mesmo na terra da garoa – disse Oliver abrindo a mochila e sacando um moletom com capuz e um boné. Colocou os dois e de repente parecia como qualquer outro moleque do subúrbio paulista. – Vejamos... a ordem do dia é chegar até o Hotel Poliposition. Podemos pegar o metrô na estação Barra Funda, fazemos a baldeação na Estação da Sé e de lá pegamos sentido Jabaquara na linha norte-sul. Descemos na estação Santa Cruz e seguimos até a rua 11 de julho onde fica o hotel.

– E desde quando você ficou especialista em andar em SP? – disse Eric com uma pontada de inveja do colega.

– Eu já morei aqui algumas vezes. O metrô é o melhor modo de se deslocar na cidade, embora ultimamente tenha ficado meio lotado. Aproveitamos os horários que não são de pico e nos deslocamos com velocidade. Mas por enquanto acho que posso levar vocês para um programa tipicamente paulistano: tomar café numa padaria. Tem uma bem ali. Vamos, é por minha conta.

Quando ouviu “tomar café numa padaria” Nathália pensou em se encostar-se a um balcão meio sujo e tomar um café com leite e pão com manteiga. Realmente ela não estava preparada para o que ia ver. O lugar era uma verdadeira butique de pães: tinha dezenas de variedades de pães e centenas diferentes de recheio: ela poderia vir todos os dias por dois anos sem repetir a montagem do café. Acompanhava o pacote uma mesa farta de frutas, ovos mexidos, travessas com bacon, pizzas, caldos, vários tipos de café e até mesmo itens típicos de outros lugares, como pão de queijo recheado com doce de leite e tapiocas feitas à moda da Bahia. Era um verdadeiro banquete. Isso sem falar do ambiente. Apesar de movimentado era limpo e brilhante, bem iluminado e recheado de pessoas apressadas.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

– Cara, eu poderia me acostumar com uma vida assim. – disse Eric enquanto lutava com um tradicional sanduíche de mortadela à moda paulista: um pão de sal recheado com dezenas de folhas mortadela defumada, levemente aquecidas com algum tipo de óleo fino. Cada mordida era uma explosão de sabor que chegava a pingar dos dedos até o prato do menino.

– Quanta comida. E tudo tão delicioso. Obrigada mestre Oliver! – disse Isabel deliciando-se com carolinas temperadas e um copo de achocolatado grosso como mel.

Todos pareciam apreciar a comida e o ambiente do lugar. Todos menos Lucas. Ele estava com a expressão pesada desde que tinham chegado à São Paulo. Era como se estivesse incomodado com tudo. Ao perceber o incômodo do amigo Jade o inquiriu:

– Alguma coisa errada Lucas?

– É esta cidade. Ela é tão cinza e concreta... tanto asfalto, tão poucas árvores, tão pouca vida... as pessoas são sisudas e apressadas. Enquanto comemos como reis, vi mendigos lá fora que parecem não ver uma refeição decente há dias. É tudo tão grande, movimentado, opressor. Minha cabeça está rodando e parece que vai estourar.

– É... São Paulo tem esse efeito em algumas pessoas... – comentou Oliver terminando a sua segunda fatia de pizza de calabresa. – especialmente quem vem do interior. Lucas, qual foi a maior cidade que você já viu na vida antes de pisar aqui?

– Fortaleza ou Brasília, eu acho. – disse o menino sem jeito, voltando sua atenção para a cumbuca de salada de frutas, granola e mel orgânico que aguardava sua indecisão de comer ou não.

– Você vai se acostumar. Se der tempo, levo você para recarregar as baterias no parque do Ibirapuera. É um dos maiores parques urbanos da América Latina. O pavilhão Manoel da Nóbrega é lindo.

– Obrigado – disse Lucas forçando um sorriso.

Após a lauda refeição os meninos caminharam em silêncio até a estação. Desceram as escadas da estação Barra Funda, em frente a Universidade Uninove e pegaram o trem sentido Sé. Oliver explicou que o metrô naquela parte da cidade se parecia mais com um trem de superfície. A viagem foi ritmada e sacolejante. Mas acima de tudo foi rápida. Desceram na Sé e pegaram sentido Jabaquara.

Enquanto esperavam o metrô Eric apontou para três meninos vestindo uniformes roxo, onde se lia “Campo Júpiter”. Ele mostrou para Nathália que fechou a cara imediatamente.

– Nem pense em chamar atenção, cabeça de penas – disse ela se colocando na frente de Eric. – São gringos. Semideuses da América do Norte. Acham que apenas os deuses romanos estão corretos ou coisa assim. Se nos verem vão querer nos atacar.

– Como assim? – perguntou Isabel.

– Semideuses da América do Norte são famosos pelas brigas entre suas facções. Um grupo pensa que apenas os deuses gregos são reais e outro pensa que apenas os deuses romanos são. Soube de batalhas mortais, verdadeiras carnificinas entre os grupos. Quanto mais mantivermos distância desses nossos “primos” melhor. – explicou Nathália, agradecendo aos deuses o fato dos três terem pegado a saída para a Praça da Sé – Não sei o que eles querem, mas sei que eu quero manter distância deles.

A viagem seguiu sem nenhum outro fato digno de nota quando eles desceram finalmente na estação do Shopping Santa Cruz. Depois tomaram o rumo da rua 11 de junho, procurando o tal hotel. Desceram toda extensão da rua até chegar a Avenida Rubem Berta e nada.

– Tem certeza de que estamos na rua certa? – perguntou Jade.

– Sim, 11 de junho. – disse Oliver um tanto confuso – a internet aqui tá muito ruim. Não consigo conectar com nenhum servidor. Se não eu descobria onde fica mesmo esse hotel.

– Peraí que tem outro jeito- disse Eric. Ele foi até um ponto de taxi, bateu dois minutos de conversa com um motorista gorducho num taxi amarelo e depois voltou. – passamos pelo hotel já. Mudou o nome de Poliposition para Parks.

– Ah, então é isso. Vamos então. – declarou Lucas, desejoso de sair daquela rua movimentada... Mesmo a esterilidade de um quarto de hotel traria o silencio que ele passou a apreciar com tanto gosto desde que chegara a São Paulo.

Enquanto voltavam algo martelava na cabeça de Oliver. Sabia que o tio era um sujeito meio estranho e até mesmo avoado, mas nunca o viu trocar nomes de hotéis dessa forma. Ele parecia pressentir que alguma coisa estava errada. Ou quem sabe fosse só a sua imaginação.

Pouco mais de dez minutos depois da indicação do taxista os meninos chegaram ao Hotel Parks. Era um hotelzinho pequeno, sem luxo, como se uma casa tradicional da década de 50 tivesse sido convertida em hotel. Como dava wi-fi grátis, Oliver conseguiu conectar e leu as indicações do Hotel. Tinha 2,1 estrelas e 25 comentários no google, quase todos falando do péssimo atendimento e das instalações ruins.

– Senhor Oliver Albuquerque? Deixa eu ver... sim, temos uma reserva em seu nome. Dois quartos. Um no subsolo e outro no primeiro andar. – o recepcionista era magro, alto e com o cabelo um pouco longo demais para o gosto de Oliver. – Quem vai ficar onde?

Dividiram-se em dois grupos de três, com Oliver, Lucas e Eric indo para o subsolo e Jade, Isabel e Nathália indo para o quarto do primeiro andar. As indicações da internet estavam certas. O hotel era muito ruim mesmo. A internet wi-fi não pegava nos quartos, apenas na recepção, como logo contatou Oliver. Aliás, nenhum sinal pegava no quarto do subsolo. As camas pareciam ter mais de uma década de idade. Travesseiros duros e com cheiro de mofo completavam o quadro de roupas de cama puídas. O banheiro era outro horror: pia torneiras de plástico manchadas, extremamente apertado e com um cheiro de podre permanente. O quarto das meninas não era melhor: o ventilador de teto funcionava apenas no máximo e quando ele estava ligado as luzes do quarto piscavam em intervalos irregulares. Mal haviam se instalado, Oliver ouviu batidas à porta. Era uma das camareiras.

– O café da manhã está servido senhor. Você e seus amigos não nossos convidados.

– Obrigado moça, mas já tomamos café. – disse o menino.

– Mas o nosso café é tão especial... – tentou mais uma a camareira, que vestia um avental branco por cima de um uniforme azul bem escuro.

– Outro dia. Obrigado – disse o menino. – Agora, se me dá licença, tenho coisas a arrumar.

A camareira fez uma careta e depois disse com uma voz grossa:

– Eu tentei ser gentil seu merdinha, mas agora vai ser por mal. – dizendo isso ela jogou o que parecia ser uma granada de gás dentro quarto, fechando a porta em seguida. O gás tinha um cheiro de clorofórmio muito forte e Oliver não teve tempo sequer de alertar os outros. Em questão de segundos estava largado no chão, como uma marionete solta de suas cordas. Nem ele, e nenhum de seus amigos resistiram aos efeitos do gás.

A camareira ainda deu cinco minutos para o gás dispersar antes de abrir a porta. Logo que entrou foi recolhendo os corpos desacordados, algemando-os com grossas correntes de ferro. Em seguida outra veio para ajudar no trabalho.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

– Como foi lá em cima, irmã? – perguntou a camareira granadeira.

– Foi mais fácil. Eu coloquei sonífero no suco de maracujá que ofereci para elas.

– Pois vamos embora, me ajude com esse pedaço de mal caminho aqui – disse a granadeira, referindo-se a Lucas – tem muito o que fazer antes de anoitecer.