Os Lordes de Ferro

Capítulo 18 - O memso homem e o mesmo rio


Quando Caska ouviu do Rei a promessa de um banho não esperava nada daquele jeito. Era uma cascata natural de água morna que desaguava numa piscina de águas claras, cercada por uma mata ciliar fechada. Da estrada, uma centena de metros adiante, não dava para saber que ali existia um paraíso na terra daquele jeito. E lá estava ela, de roupas de baixo, se lavando em meio àquela enorme banheira natural de água mineral térmica. Dava até para esquecer um pouco os problemas.

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Muito mais à vontade do que Caska, Bekka esta completamente nua e nadava com desenvoltura de um lado ao outro da piscina natural. A presença do Rei parecia não a incomodar o Rei, por sua vez, desviava o olhar sempre que podia. Dos três ele foi o último a entrar na água. Demorou um bom tempo tirando suas roupas e equipamentos, depositando-as muito bem organizadas e dobradas sobre uma pedra lisa que lhe serviu de mesa. O Rei entrou na água vestindo uma espécie de cueca boxer que lhe descia até a linha dos joelhos. Era de linho e parecia ser bastante confortável. Mas não foi isso que chamou a atenção da jovem guerreira. O peito do Rei era recoberto por dezenas de cicatrizes. Golpes de espada, flechadas, cortes de outras armas, marcas de chicote, queimaduras. A sua pele tinha o famoso “bronzeado de escritório”, tão comum as pessoas que raramente deixam sua pele em contato com o sol.

— Algumas delas têm histórias impressionantes, sabia? – comentou Bekka, nadando sinuosamente ao lado da menina.

— Ah, o que? – perguntou Caska, envergonhada por ter sido pega olhando com tanto afinco para as cicatrizes no peito e nas costas do homem. Ela olhou para baixo, sentindo sua face ruborizar.

— Não se preocupe pequeninha. O Rei não se importa. Ele nunca se importou. Conheço algumas delas, porque em certa medida eu estava lá quando foram feitas. Esta vendo aquelas três marcas na omoplata esquerda? Três setas de besta, todas endereçadas a nossos homens na batalha da ponte do enforcado. Aqueles cortes perto das costelas? Uma carroça de guerra o atropelou no cerco da mansão dos querubins. – Descrevia Bekka tomando cuidado para não se deixar levar pelas lembranças. Era notório que a menina tinha muito respeito pelo Rei. Respeito e admiração.

Caska ficou perguntando se havia alguma coisa além do imenso respeito. Se os dois já haviam feito alguma coisa. Mas achou melhor guardar essa indagação para si mesma. Afinal de contas a vida particular daquele homem pouco lhe dizia respeito.

Depois de se acomodar na água o Rei nadou até as duas.

— Ah, eu tenho que marcar em trazer a rainha aqui. Ela vai adorar. – disse ele suspirando, nadando de costas.

— Tenho certeza que vossa majestade jamais teria tempo de vir aqui. – o tom da voz de Bekka foi um tanto irônico para os ouvidos de Caska. Se o Rei percebeu essa entonação ou se preferiu ignorar é uma coisa que não ficou claro. – Muitas decisões no castelo, decisões e coisas que apenas uma rainha de verdade pode fazer. Ela não tem tempo para essas frivolidades

— Verdade... – completou o Rei de forma franca e pensativa. – Mas se conseguimos vencer uma guerra pela independência... Acho que esta é uma batalha que vale à pena de se engajar.

— Senhor, posso lhe perguntar uma coisa? – falou Caska aproximando-se do Rei.

— Claro. Pergunte o que quiser.

— Ouvi dizer que o senhor é consorte da rainha. O que é um “consorte”? – perguntou a menina com os olhos brilhando de curiosidade legítima.

— “Consorte” é o termo que se usa para se referir à pessoa que é cônjuge do monarca de um determinado reino. – respondeu o Rei de forma didática.

— Mas o senhor é casado com a rainha? Por isso que lhe chamam de Rei, não é mesmo? – nesta hora o Rei engasgou com um pouco de água e perdeu o equilíbrio, afundando na água morna por uns dois segundos antes de se levantar cuspindo água pelo nariz.

— Meus parabéns Caska... Você acertou em cheio. Pegou o Rei desprevenindo. – a voz de Bekka agora era carregada com desdém e ironia em doses que não podiam ser camufladas. – Como o Rei não tem sangue nobre e nenhum reino de todo o mundo reconhece a rainha oficialmente, neste caso, consorte está mais para amante. É como se o nosso Rei fosse aqui fosse uma putinha de estimação de uma rainha que não é reconhecida. – Caska olhou para o Rei assustada, achando que ele ia reagir com uma resposta pronta, carregada de impropérios, ou mesmo com violência física. Mas nada disso aconteceu. A expressão do Rei serenou e ele relaxou na água.

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— A rainha Elaine é uma rainha para seu povo... Não importa o que os outros monarcas dizem. O que vale é o que ela tem em seu coração e a devoção de seu povo – o tom do Rei era tão calmo que Caska pensou que ele poderia estar sob o efeito de alguma droga. – Se eu sou um amante, um consorte ou uma “putinha” – disse enfatizando bem a última palavra – isso só diz respeito a mim e a minha senhora. Eu a amo e sou feliz com ela. Se só posso ter migalhas do seu amor eu sou feliz com isso.

- Gado demais! – reclamou Bekka enquanto se afastava. Entretanto ela sabia que a fala do Rei tinha batido tão forte quanto uma tapa de mão aberta no meio do rosto. A menina ainda pensou em dizer alguma coisa, mas a resposta do Rei tinha lhe trazido de volta á realidade. Ela baixou a cabeça e saiu da água, indo se secar perto do fogo que tinham acendido para assar alguns espetinhos de carne. Restando apenas Caska e o Rei na água a menina passou a se sentir incomodada. Afinal de contas foi o seu comentário que tinha incendiado a discussão entre os dois.

— Desculpe... – disse a menina. – Eu não queria...

— Fique calma... Não é culpa sua – disse o Rei suspirando alto, como se soltasse um peso de seus ombros. – Bekka acha que está apaixonada por mim. Alguns meses atrás teve uma batalha pesadíssima e perdemos muitos companheiros. Acabamos nos embriagando em meio às comemorações e o luto e ficamos juntos. Foi um erro. Eu expliquei isso a ela, mas parece que ela não quer entender. Eu amo a rainha Elaine.

— Cara, se você ama mesmo a rainha não deveria ter ficado com a Bekka. O que ela fez não foi legal, mas foi sacanagem da sua parte. Aliás, não foi legal o que vocês dois fizeram: se ela sabia que você gostava da rainha foi sacanagem da parte dela também. – respondeu Caska, subitamente tomada por uma moral superior.

— Eu errei e convivo com o meu erro. – disse o Rei serenando a expressão novamente – acho que está na hora de sairmos. Até Bracken temos uma longa jornada. Será mais confortável por conta dos cavalos, mas não menos longa.

O Rei saiu da água e foi sentar-se perto de Bekka. Caska preferiu lavar um pouco mais os cabelos antes de sair da água.

— Oi... Desculpa... Eu não tinha direito de falar aquilo para você. – cumprimentou Bekka ao perceber a aproximação do Rei. – É que eu não acho justo que você fique se derramando de amores por aquela “mulher” que nunca vai dar todo o amor que você merece, tendo alguém como eu à sua disposição.

— Desculpas aceitas... – comentou o Rei. – Mas não existe nada de justo no mundo. Justiça é uma noção que apenas nós, seres humanos, criamos para dar algum sentido às nossas existências. Não existe justiça na chuva que cai, nem no lobo que devora a lebre. Nem justiça e nem sentido. Não escolhemos porquês ou por quem vamos nos apaixonar. São mistérios e ditames do coração. Se eu pudesse escolher, não sei se escolheria amar a rainha. – ele fez uma pausa longa, pensativa, para muito além do simples fôlego – Mas não posso escolher. Não sou livre para escolher quem eu amo, mas sou livre para decidir o que fazer com este amor. E decido manter-me fiel à minha rainha, tanto pela minha devoção como cavaleiro como pelo meu amor. Espero que entenda...

— Você não facilita! – disse a menina jogando um pedaço de osso de galinha no fogo da fogueira, como se fosse uma oferenda despretensiosa a um dos doze divinos. – Quando você banca o filósofo assim eu me derreto toda. Ai, ai... Mas eu sou capaz de esperar. Esse fogo da paixão não vai manter seu coração aquecido para sempre e quando você se cansar das migalhas da rainha vai perceber que eu vou esperar você, para lhe dar um verdadeiro banquete. Respeito seu amor, mas não pense que não vou lutar pelo meu.

O Rei sorriu novamente. Caska chegou logo em seguida, percebendo que o clima ruim entre os dois amigos havia desaparecido por hora. Isso a deixou aliviada e ao mesmo tempo desconcertada. Onde estavam as brigas homéricas, as discussões sem fim, o ressentimento? Logo agora que ela tinha preparado um monte de frases prontas sobre honestidade, amor, sinceridade e erros. “Esses adultos são estranhos mesmo”, pensou ela.

Por fim começaram a se vestir. Caska viu que as botas do Rei estavam longe dele. Então pensou em fazer um favor. Foi até as botas e as pegou com uma das mãos, sendo derrubada ao chão no mesmo instante. As botas não se moveram um milímetro.

— Mas que magia negra é essa? – disse a menina forçando as duas mãos para erguer as botas. Depois ela desistiu de levantar as duas e com muito custo conseguiu levantar uma delas, arrastando-se uns poucos passos antes de desabar de novo. – Que é isso aqui? As botas são feitas do martelo de Thor, é?

O Rei limitou-se a rir discretamente e catou cada uma das botas sem dificuldade, calçando-as em seguida. Caska foi até as outras vestes do Rei, como a sua capa negra e seu colete de couro com anéis de ferro costurados por cima. Teve dificuldade para levantar ambas do chão. O mesmo se deu com seus braceletes.

— Cara, tu é fã de Dragon Ball, é? Deve ter teu peso aqui em equipamento. É só para treinar? – perguntou a menina, incrédula.

— Não. É para proteção. Cada uma dessas peças foi feita levando em consideração a máxima proteção. Eu não posso arriscar receber outros golpes como esses que tenho as cicatrizes – respondeu o homem calçando as luvas. – Proteção e contenção.

— Deixa menina... Essa parte eu já desencanei de entender a muito tempo. Mas só imagina o que este pedaço de mau caminho é capaz de fazer sem essa armadura toda? - Bekka se viu cercada pelo olhar dos dois companheiros e tratou de retificar a sua fala – Imagina num combate gente, vamos lá... Dá uma folga. Já passei vergonha demais num dia só.

Todos riram. A viagem até Bracken se erguia diante deles. Mas uma coisa começou a martelar na cabeça de Caska. Ela podia entender muito bem a importância de uma boa proteção e como aquelas roupas dariam ao Rei uma vantagem a mais numa luta em que ele decidisse se livrar delas... Mas o que elas tinham de restrição? Por que um homem daqueles teria que restringir suas habilidades? No fim, Caska deu de ombros. Agora ela tinha mais problemas para resolver, como manter-se em cima de um cavalo enquanto ele trotava.

— Ei, esperem por mim! – gritou ela enquanto deixavam a cascata de água morna para trás.