Calú estava acordado há algumas horas. Despertara junto com o sol naquela manhã. Seus pensamentos vagavam entre seus três amigos que se aventuravam naquele exato momento. Também teve bons pensamentos sobre Nicolas. Ele se provava cada vez mais um aliado. Observou o perfil de Peggy na semiescuridão daquela manhã nublada. A colcha cobria o corpo da amada até a cintura. Observou os seios de sua amada subirem e descerem acompanhando o ritmo da respiração. Peggy tinha o dom de fazer Calú a desejar mais e mais. Ele sorriu, pensando que felizmente, possuía o mesmo dom para com aquela a seu lado.

Quatro anos, pensou. Fazia quatro anos que ele e peggy mantinham relações. Ele esperava que eles ainda fizessem amor pelos próximos quatro, oito, dezesseis, trinta e dois… sessenta e quatro anos. Naquele momento, percebeu que não fumava há dias… Não sentiu falta nem naquele momento. Calú aparentemente havia vencido um de seus demônios pessoais.

Levantou-se por fim. Iria fazer uma sessão de fotos para uma revista. Havia passado a noite no quarto de Peggy, suas roupas não estavam lá. Seguiu aquela não convencional rotina de pessoas famosas com um olhar introspectivo e enigmático. Como se julgasse o que estivesse fazendo. Enquanto os amigos arriscam a vida, ele a vive como um rei.

Calú era um crítico de si mesmo ardiloso. Um rei que não arrisca sua vida pelo que acredita, merece quais tipos de servos?

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Crânio e o bandido esperaram o semáforo ficar verde e cruzaram a rua em uma faixa de pedestre quase apagada pelo tempo. O bandido se apresentava agora um tanto mais cauteloso. Crânio refletiu sobre o bandido. Ele havia assaltado a mulher sem nenhum tipo de remorso. O esperado de um dos capangas do Q.I. Crânio não sabia ao certo o que iria sentir se o bandido roubar alguém em sua presença. Teria que silenciar o seu afiado senso de justiça.

Um assalto possui diversos fatores a ser considerados. Primeiro é preciso programá-lo, e depois é preciso se mexer depressa para impedir os vazamentos. “Depressa” quer dizer dois ou três dias, desde que se tem a primeira informação até que se encontre um esconderijo em algum lugar ou em outro país, dependendo da gravidade do crime. Sempre se tem de pagar, gastar grana, mas também corre o risco de que um informante venda a dica para outro grupo.

Iam para um esconderijo os dois “capangas”. Um péssimo lugar, em um lugar perigoso, na viela que dava para uma mecânica clandestina. Ele se escondera lá para ninguém jamais descobrir.

“É um quarto/banheiro deplorável num bairro perigoso, só um refúgio para armar os planos e esperar” pensou Crânio… Digo Fêmur.

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Miguel retornou e observou a Chumbinho conversando com Nicolas. Aproximou-se ainda pensativo.

Nada… —Disse Chumbinho decepcionado- A praça estava tranquila.

—Também não encontrei o cara…

—Vamos dar uma pausa e continuamos depois. Só vamos esperar o retorno do Crânio. Aliás, ele está demorando muito…

Miguel arqueou as sobrancelhas.

—Droga! Crânio o encontrou.

—Por que “droga”?

—Ele vai tentar conseguir alguma coisa… Ele não vai apenas segui-lo e descobrir onde ele mora…

—Miguel, já é a segunda ou terceira vez que você subestima o Crânio. -Chumbinho disse fazendo os dois adultos olharem para aquele adolescente brilhante- Não estamos falando de qualquer pessoa…

Miguel refletiu, suspirou e apoiou a mão no ombro do jovem irmão de consideração.

—Tem razão, vamos precisar procurar pelo cara… A chance dele sair de dentro de casa, agora que o Crânio vai estar com ele será muito menor...

Precisaremos encontrar o cara e descobrir onde está o laudo...

—Eu penso diferente. -Disse Chumbinho- Na pior das hipóteses, vamos ter que resgatar o Crânio, porém, não me assustaria se ele conseguisse sair de lá com o laudo.

Acredita mesmo nisso?

—Te digo uma coisa, Nicolas, meu amigo -Chumbinho sorriu para o policial- você nunca esteve metido em algo tão “científico” como está, está tudo sob controle.

Nicolas o observou um tanto desconfiado e tomou um gole de sua garrafa d’água. Miguel observou Chumbinho. O jovem queria acreditar naquilo que dizia.

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Estava nervoso. Um pouco de medo, mas, Fêmur era um Kara. O gordo sentou-se em uma cadeira de praia coberta por uma colcha suja e o Kara se sentou em um sofá cheio de buracos.

Suspirou… E começou.

—Dr. Q.I não está nas melhores condições. Muita gente o quer morto na penitenciária…

O bandido o olhou.

Eu quero é saber do pagamento. - Disse o bandido sem pensar duas vezes -

—Pagamento?

—O chefe me prometeu um adiantamento por guardar essa parada pra ele. Eu nem entendi nada, mas quando eu tive que tirar do meu próprio bolso para passar a informação…

—Como você passou?

O bandido o observou.

Como assim “como eu passei”? Tem gente trabalhando pro Dr. Q.I na polícia também.

Crânio não demonstrou, mas sentiu uma gigantesca pressão sob seus ombros.

—Se não fosse por aqueles caras o chefe já teria virado presunto. Não… Recursos são caros, eu to por dentro disso. Um livro que dão pra ele é só um disfarce.

—Entendi…

—É por isso que os caras o querem morto. Q.I tava tendo uma vida de rei até o dia que tentaram envenenar ele. Foi nesse dia que eu fui convocado. Depois de três anos sendo fiel e ele me descartando pro banco de reservas… Ele me chamou. O estranho é que ele nunca falou de você… Nem os outros policiais me falaram sobre ele...

Crânio começou a ligar os pontos… Os funcionários que fizeram a autópsia de Andrade… Desaparecidos…

—Sobre o laudo... Os médicos eles…

—Cara… -ele disse- tu ta me irritando. Você fala muito igual o chefe. Que foi? Ta me tirando de burro?

Crânio o encarou e suspirou fundo, se sentando com mais folga no sofá sujo.

—Foi mal… Eu to é estressado, tá muito cedo pra trabalhar… eu queria uma cerveja -encenou Crânio –

O bandido o encarou e riu.

—Haha. Verdade, carinha. Eu também tomaria uma cerveja agora. Você é dos meus –

Crânio sorriu. Em pensamento agradeceu Calú ter lhe ensinado um dia a atuar.

—Então, sobre o laudo do And… Do detetive. Como pegou?

—Cara, foi tenso. Eu e mais quatro outros capangas fomos disfarçados de agentes da vigilância sanitária. Quando encontramos os caras que estavam fazendo a tal parada do gordão nós os sequestramos e os caras sumiram com os médicos.

—E onde estão os outros caras?

—”Pô” tu tá por fora hein, ladrão? Dois deles morreram.

—Morreram? Como?

Ah, sei lá, ladrão. -ele disse coçando o papo gordo- Os caras não se seguram na curva sinuosa. Vê um corre ali e cá pra tentar tirar um verde. Vida louca, vida curta, vida cabulosa.

Ele riu como se a morte de aliados fosse uma piada.

—Então, só sobreviveu você e mais um.

—Pode crer que sim, tô firmão. Mas o outro tá melhor do que eu. Ele continua no anonimato. Ele é o bom ladrão. Tá até me vigiando pra não fazer m*rda.

—Te vigiando?

É pô! Ele está por aí. Só de gaiato na movimentação.

Naquele momento, Crânio se preocupou e muito. Não era só um dos capangas do Dr. Q.I que estava vivo… Droga! Era uma armadilha.

Q.I sabia que eles iriam tentar ir atrás do bandido que roubara o laudo? Droga… naquela situação poderia ser qualquer um. Qualquer um mesmo…

Crânio agora demonstrava, mesmo que pouco, um nervosismo incomum até então.

—E ai, carinha? Tu vai querer mais o que? Tu ta com meu dinheiro?

Crânio voltou ao mundo real.

—Não... Não tenho o dinheiro, eu só preciso ver o laudo.

—Só que tu não vai sair daqui com ele, tá me entendendo?

Ok.

—Tá, um minuto.

Crânio precisava distraí lo. Era coisa de meio segundo para ele desaparecer. Era preciso só de algum evento… Alguma coisa para fazê-lo ter vantagem…

Os pensamentos de Crânio se embaralham e tentavam criar opções de respostas em meio aquela difícil questão. Era como Chumbinho havia dito, era científico. Entretanto era uma tarefa difícil e precisava ser encarada como tal. Crânio pensou por um breve momento nos amigos. Em Magri, em Maria… Porque seus pensamentos voltaram para ela?

Crânio voltou sua atenção para o bandido. Ele moverá uma das telhas e retirou de dentro de uma mochila o laudo, em uma pasta de cor verde pastel, estava a resposta de algo que lhe tirava o sono a quase um mês…

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Magri estacionou o carro em frente a antiga casa de Andrade. Ela sorriu um pouco nostálgica. Estivera lá apenas uma vez. Lembrava-se de ter uma ou outra foto de quando era mais jovem, mais ou menos, nos anos dos eventos de pântano de sangue.

Um dos guardas aproximou-se de Magri. Ele veio com um sorriso.

—A proprietária da casa do bom Andrade é nossa campeã do vôlei… - O idoso a saudou com votos de alegria - Fique a vontade, e se precisar de qualquer coisa, fale comigo…

Magri o cumprimentou com um sorriso e seguiu para dentro da casa.

O clima era ameno. Tinha o cheiro do velho detetive e segundo pai de Magri. Ela pensava no que faria com a casa… Não achava certo demoli lá, mas ao mesmo tempo… Precisava tirar logo os pertences de Andrade de lá.

Magri encontrou um álbum de fotos. Um Andrade de cabelos vivos e jovem se exibia em uma foto antiga em algum festival. Magri sorriu, nunca havia visto Andrade novo antes. Ele fora bonito, talvez pudesse rivalizar com Calú. Porém, a idade havia chegado. Andrade engordou alguns quilos. O cabelo cairá… Mas, acontece com todos um dia ou outro.

Porém, uma foto fora do álbum chamou a atenção de Magri. Uma mulher de cabelos negros e pele bronzeada. Destroçada e suja pelo tempo e cheia de marcas a foto não mostrava muito bem como era essa mulher.

Magri virou a foto e viu os escritos apagados pelo tempo.

“U•a •e•••ia de ••a et•r•• •••da”

Magri não conseguia ler. Olhou ao redor e procurou por mais algumas outras coisas. Haviam caixas e escritos com o nome de cada um dos Karas com os respectivos presentes de cada um. A caixa de Miguel era pequena. Tinha uma coleção de cartões postais. Magri parou no corredor e observou o quarto onde Andrade descansou a vida toda. Uma foto tirada semanas depois da primeira aventura dos Karas no zoológico ao lado de um candelabro vazio.

Magri suspirou, ainda que feliz. Mesmo quando ela ignorava as ligações de Andrade… Ele ainda rezava por ela.