Os Jogos de Johanna Mason

Capítulo 6 ― Segredos à superfície


ASSIM QUE EU ME TORNAR vitoriosa, acho que escolherei atuação como talento para apresentar às câmeras quando elas forem me visitar antes da Turnê da Vitória. Porque, modéstia à parte, eu sou muito boa nesse lance. As lágrimas saem silenciosas de mim com tanta naturalidade que estou quase começando a acreditar em minha própria mentira.

Pelos telões dispostos de modo equidistante durante o desfile, fico satisfeita ao notar que estou praticamente sendo ignorada pelas câmeras, mas quando elas focam-me, faço questão de deixar bem visível os olhos vermelhos e o queixo tremendo. As lágrimas traçam um caminho pelas bochechas, deixando um rastro escuro de maquiagem. Aposto que Tundra deve estar se contorcendo por eu ter estragado seu precioso trabalho. Entretanto eu não consigo chorar para sempre. Antes mesmo de chegarmos ao centro da Cidade Circular, as lágrimas já secaram.

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As carruagens posicionam-se em frente à mansão presidencial e o presidente Snow dá início ao curto discurso onde parabeniza os tributos da septuagésima primeira edição dos Jogos Vorazes. Quando olho discretamente para o lado e miro os olhos quase negros de Silas Underwood, pego-o desprevenido me encarando. Ele engole em seco uma vez e volta a atenção para o velho na varanda, ignorando-me completamente.

•••

Solto um longo suspiro assim que chegamos ao Centro de Treinamento.

― Você está bem? ― Silas pergunta depois que as portas se fecham, silenciando os gritos ensandecidos da Capital. Seu tom de voz é ameno, quase preocupado.

Encolho os ombros.

― Já tive dias melhores ― respondo e pulo da carruagem.

Ao tocar os pés no chão, sou envolvida pelos braços esguios e descarnados de Tundra. Estou a ponto de me livrar do abraço quando noto o olhar da carreirista do Distrito 2. Ah, é. Tenho que parecer frágil e desesperada. Engulo a repulsa que sinto por todas essas pessoas desprezíveis multicoloridas e retribuo o gesto, enterrando o rosto no pescoço tatuado da estilista. Até o seu cheiro me causa náuseas. Ah, se Tundra soubesse o quanto eu a odeio...

― Coitadinha. Coitadinha de você ― ela diz e dá dois tapinhas nas minhas costas.

Maxell nos guia até o elevador que nos levará ao nosso andar. Perco o fôlego assim que ele começa a subir. As paredes são de cristais e dá para ver tudo daqui. Confesso que a Capital tem uma beleza hipnotizante à noite, com tantas luzes pulsando e emanando vida. Chegamos ao sétimo andar rápido demais, colocando fim na diversão. Estou tentada a pedir para andarmos de novo nisso, mas concluo que seria muita infantilidade.

Assim como tudo na Capital, o andar do Distrito 7 é luxuoso, exuberante e da mais alta qualidade. Sinto-me momentaneamente deslocada entre esses objetos e móveis feitos sob medida para o ambiente. Aposto que apenas um vaso simples daqui deve aplacar a fome de uma família por meses lá em casa.

O acompanhante saltita pelos cômodos, apresentando nosso lar temporário. Não sei como, mas ele consegue a proeza de ser ainda mais irritante aqui do que no trem.

― O desfile foi incrível, vocês não acham? ― ele indaga em tom retórico, pois continua: ― Porque eu amei. Foi mil vezes melhor do que o ano anterior. As roupas estavam fabulosas! Principalmente do Distrito Um.

Franzo o cenho.

Os tributos do 1 ficaram pelados ― pó dourado cobrindo o garoto, representando o ouro, e pedrinhas brilhantes na garota, que deveriam ser diamantes falsos. Com exceção disso, desfilaram como vieram ao mundo.

― Eu achei bizarro ― comento secamente, achando estranho o senso de beleza deles e louca para tirar os enfeites estúpidos da cabeça.

Maxell para e gira nos calcanhares para me encarar. Ele me olha como se eu fosse a aberração daqui.

Bizarro? Não, não. Acho que você quis dizer magnífico.

Estou abrindo a boca para retrucar ― possivelmente com muitos xingamentos ― quando me lembro da presença de Silas ao meu lado. Talvez eu também consiga enganá-lo junto com os outros. Mesmo ele medindo uns trinta centímetros a mais e pesando quase o dobro, eu precisaria de apenas um segundo de hesitação para passar meu machado por sua garganta. Isso é, se eu tiver um machado na arena.

― É. Acho que sim ― digo com um sorriso fraco que não chega aos olhos.

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Entro no meu quarto e tateio o topo da cabeça a esmo até encontrar as presilhas e grampos que prendem meu cabelo. Jogo-as no chão e luto para me ver livre do macacão. Vou ao banheiro e consigo programar o chuveiro para uma ducha aromática. Querendo me ver livre de qualquer coisa da Capital em contato com meu corpo, arranho o rosto e minhas pálpebras até sentir a pele arder na tentativa de tirar a maquiagem e raspo uma unha na outra para aniquilar qualquer vestígio do esmalte marrom. Pouco a pouco volto a ser eu mesma ― uma lenhadora razoavelmente insatisfeita com a vida no Distrito 7.

Pergunto-me como minha família deve estar lidando com todas as lágrimas do desfile. A verdade é que nem sei se estou fazendo a coisa certa. Fazer-me de fraca pode ser totalmente irrelevante para as decisões dos demais tributos. Há muitos pontos fracos nesse plano.

Digo a mim mesma que passarei por essa com vida e saio do banheiro. Nem me preocupo em secar-me. Já que serei jogada em uma arena com outras vinte e três crianças, não vejo motivos para me importar com algo tão supérfluo como usar toalha de banho. Pingando, visto as primeiras roupas que encontro nas gavetas e jogo-me na cama.

Odeio as pessoas daqui ― Tundra, a equipe de preparação e até mesmo os rostos coloridos que passaram os olhos por mim durante a cerimônia de hoje. Principalmente Maxell. Todos são superficiais demais, frívolos demais. Na realidade, acho que são apenas vasos vazios, desprovidos de qualquer sentimento verdadeiramente humano. De que outra maneira posso explicar o fato deles entrarem em ebulição de tanta euforia quando o gongo soa? Eles celebram a morte de inocentes com festas e risos. É doentio. Seria mil vezes mais fácil matar as pessoas daqui do que as que me esperarão na arena. Sorrio ao pensar em um Maxell Seekirk desesperado e implorando por misericórdia, à mercê de minha raiva. Acho que, se a oportunidade viesse, eu o faria sem complicações. É muito fácil esquecer que essas criaturinhas também são humanas.

Ouço batidas na porta. É Maxell me chamando para cear. Penso que talvez agora seja o momento perfeito para treinar meus dotes com lâminas. Torço o cabelo, deixando o excesso de água pingar no chão, e vou para a sala de jantar.

Todos se encontram em seus lugares. Escolho uma cadeira entre Phox e, infelizmente, Tundra. O jantar começa a ser servido e minha boca saliva quando meus olhos acompanham o trajeto que o pedaço de porco faz até meu prato. Enquanto mastigo, ouço comentários secos sobre o desfile e congratulações dirigidas a Silas. Ninguém fala o que achou do meu comportamento, possivelmente com medo de que eu rompa em lágrimas efusivas ― o que chega a ser uma boa ideia.

O jantar acaba e vamos para a sala, onde assistimos a reprise. Assim como eu imaginava, fui inteiramente ignorada pelas câmeras. Elas me focam apenas para o tempo mínimo que cada tributo deve aparecer. Claro que ninguém se interessa por uma garota tão patética que nem consegue segurar as lágrimas durante a cerimônia. Melhor que isso só se o comentarista dissesse algo do tipo “Olhem para essa menininha do Sete. Com certeza vai ser a primeira a morrer”.

Tundra e o estilista de Silas se despedem após o final do programa, deixando-nos a sós.

― Bom, temos muita coisa para fazer. Então vamos ao trabalho ― Phox fala ao abaixar a xícara de chá. Ele tem a aparência reconfortante que um avô deveria ter. Gordo. Cabelo branco. Rugas. É difícil de acreditar que uma versão mais jovem dele ganhou os Jogos Vorazes. ― Vocês serão treinados separadamente. Um mentor para cada, Blye ou eu. Escolham.

Silas e eu trocamos olhares. O garoto dá de ombros e eu imito o gesto.

― Certo. Então eu escolho de quem quero ser mentor. ― Phox lança um sorrisinho apático para Blye, que arqueia uma sobrancelha. ― A garota é sua, Venenosa.

Venenosa, a palavra ecoa em minha mente. Pergunto-me se o apelido tem a ver com a edição em que ela foi vitoriosa. Blye Lockheart venceu quando envenenou a única fonte de água potável da arena ― um enorme lago que cortava o campo de trigo onde os tributos foram jogados naquele ano ―, antes tirando uma grande reserva para si mesma. Depois que os carreiristas e os demais tributos morreram envenenados, sobrou apenas um adversário para Blye matar. Em um tempo recorde, vinte e três competidores caíram em menos de dois dias e ela então foi coroada. Fácil assim.

Blye levanta-se do sofá.

― Johanna, você poderia me acompanhar até o quarto?

― Claro ― digo e a sigo.

Quando entramos em meu quarto, ela tranca a porta. A vitoriosa tenta agir de maneira despreocupada, mas noto a indecisão em seu olhar. Ignorando a cama molhada, senta-se e dá dois tapinhas ao seu lado, convidando-me. Não me oponho.

Ela suspira e solta um sorrisinho acolhedor.

― Eu sei que está sendo difícil para você e só quero dizer que é normal ter medo. Claro que tudo o que você está passando é assustador, eu já estive em seu lugar e compreendo isso muito bem, mas precisamos nos concentrar para...

― Eu não estou com medo ― corto sua frase. Se Blye será minha mentora, acho que devo dizer a verdade. Não conseguirei ganhar a coroa agindo sozinha. ― E, sinceramente, não está sendo difícil, já que as coisas são bem simples. A única coisa assustadora aqui são esses monstrinhos inquietos que querem me ver morta ― digo e aponto para a porta.

Os olhos da vitoriosa estreitam-se, me lembrando um gato desconfiado.

― É difícil de acreditar que você não esteja com medo ― constata com ar taciturno.

― Então acho que fiz um ótimo trabalho.

Decido contar tudo para Blye ― as coisas que passaram por minha cabeça quando ouvi meu nome na colheita, as decisões que tomei em poucos segundos, o papel que desempenhei. Também explico os motivos de ter atuado de tal maneira. Falo sobre Saffra Baxwoll, a garota morta na última edição por se destacar demais. A mentora acena com a cabeça uma vez ou outra, quieta, mostrando estar acompanhando meus pensamentos.

― É um plano arriscado ― Blye assinala quando fico em silêncio. ― E também muito engenhoso. Mas você sabe que mais cedo ou mais tarde alguém te caçará na arena. Isso é, se por acaso algum carreirista não tropeçar em você antes disso.

― É aí que entra o plano ofensivo ― digo com confiança.

― Que seria... ― ela me incentiva.

― Matá-los antes que me matem. Talvez eles não partam para cima de mim logo de cara. Talvez hesitem. E se hesitarem... ― Com uma pitada ácida de humor, traço uma linha imaginária de fora a fora com o indicador pela minha garganta.

― Então você pretende chorar até entrar na arena e, quando o gongo soar, sair matando? ― Blye soa quase divertida com a pergunta.

― Na verdade esse é um ótimo resumo. Acha que pode funcionar?

― Não sei. Eu nunca vi uma tática assim antes. Mas as chances são até que boas se fizermos algumas mudanças e ignorarmos as falhas.

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― Falhas?

― Sim. Se você quer convencer os tributos e mentores de que é fraca, também terá que convencer os Idealizadores dos Jogos e, por tabela, os patrocinadores. Você estará sozinha na arena. Sem aliados ou ajuda exterior. Mas imagino que já tenha pensado nisso.

― Sim, eu já sei disso tudo. Mas é um risco que vale à pena correr ― falo, mesmo não estando tão certa disso. Blye está certa. Não poderei contar com ajuda externa quando estiver dentro da arena. Afinal, nenhum endinheirado da Capital bancará um fósforo sequer para a garotinha que frágil e assustada. Provavelmente estarei fazendo a maior burrada na história dos Jogos Vorazes.

Blye pisca para mim, as engrenagens de sua mente maquinando e ponderando minhas palavras.

― Ah, e uma última pergunta.

Arqueio uma sobrancelha como resposta.

― Você é boa com machados?

Não evito o sorriso que franze meus lábios.

― Sou. Eu trabalhava no Setor 8, cortando eucaliptos.

Inesperadamente, Blye também sorri.

― É. Eu imaginei que sim, por causa de seus ombros. Fortes como os de um lenhador.