Os Filhos de Umbra

Capítulo Oito: 1988 – 2486 dias antes


Capítulo Oito: 1988 – 2486 dias antes

Que a força do medo que tenho

Não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo que acredito

Não me tape os ouvidos e a boca.

Oswaldo Montenegro

2 de fevereiro de 1988

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Há duas maneiras conhecidas de deixar de crescer: A morte e a Terra do Nunca. Cá entre nós, a morte é bem mais provável, mas não vamos deixar de desconsiderar a possibilidade. Mesmo assim, as mães são uma exceção. Não importa o quanto cresça, sua mãe irá sempre te enxergar como o bebê que mostraram pra ela na maternidade. Por isso, no momento em que a sua idade era jogada na cara da sua mãe, o resultado era como uma bomba de realidade.

E como é uma bomba de realidade?

Basicamente, a expressão de Cristina enquanto ela olhava Emily entrar na sala, onde ela começaria a estudar nesse ano, na escola estadual de Sococó da Ema. Não chegava a ser gigante, mas era suficiente. Dezoito salas, pátio, cantina, 3 bebedouros, 2 banheiros femininos e 2 masculinos, quadra, biblioteca, sala dos professores, diretoria, vice diretoria, palco, além de um mal cuidado jardim e um estacionamento para os professores. Algo mais ou menos básico, ainda mais quando era quase que a única escola da cidade.

A sala de Emily e de Henrique era pequena, 20 carteiras no máximo, janelas embaçadas, pintadas de marrom, o quadro de giz e a professora, uma asiática de cabelos pretos lisos e olhos pretos, com um vestido estampado e uma pérola na testa, além de pulseiras douradas que faziam barulho quando ela se mexia. Ahalya era o nome dela.

Cristina deu um longo abraço em Emily, e Matheus abraçou Henrique antes de deixa-lo entrar. Cristina parecia não querer largar a filha, que se soltou por conta própria. O cabelo dela, que já havia crescido, estava amarrado nas duas tranças laterais típicas dela. Usando a saia vermelha e a blusa branca do uniforme, Emily entrou e se sentou na primeira carteira.

Em um presságio, já sabia que ela iria pro fundão no dia seguinte, afinal, primeira carteira não combina com ela. Cutuquei Belle, Pablo e Mel, todos ali para acompanhar tia Cris, tia Gina e o seu Theus a deixarem os dois na escola, no primeiro dia de aula. Leo e Dete estavam ali também, só que deixei eles com Cris e Matheus. Enquanto eles se preocupavam em tirar fotos e se despedir, garantir que eles estavam com tudo necessário e ir para a reunião de pais, nós nos esgueiramos pelas pessoas até sair no pátio.

—O que vamos fazer? –perguntou Belle, mexendo as mãos.

—Explorar. Vamos estudar aqui ano que vem, temos que conhecer a escola. –falei. –Aposto que a sala dos professores está vazia agora.

Pablo sorriu. Em um minuto, estávamos na porta da sala que acreditávamos ser a dos professores, porta de madeira pintada de cinza, janelas grandes que ainda conseguiam abafar o lugar. Uma mulher com avental branco saiu de lá com uma jarra de água e outra de café, e enquanto ela as colocava num carrinho, entramos. Depois foi só nos escondermos debaixo da mesa até ela sair.

Quando ela saiu e a sala ficou vazia, percebemos que era tudo incrivelmente chato. Era a mesa, um bebedouro, banheiros, armários e um quadro cheio de informações e papéis. Teria sido muito útil saber ler naquela época, parecia informações importantes da escola e dos alunos. Os armários estavam trancados, e nenhum de nós ousou mexer nas bolsas. Saímos de lá.

—Aqui é muito chato. Nada de diferente. –Belle reclamou, chutando uma pedrinha que bateu nos saltos de uma mulher alta.

—Por isso se chama escola, querida. –ela respondeu. Tinha longos cabelos castanhos cacheados e bastante volumosos, presos num rabo de cavalo, uma blusa verde florida e uma calça jeans. Ela não usava muita maquiagem, mas tinha marcas de espinhas nas bochechas. –Vocês não estudam aqui.

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—Nossos amigos estudam. –Mel justificou, juntando as mãos nas costas, como uma boa moça.

Sério, nós estragávamos essa menina.

—Entendo. O que estão fazendo aqui? Cadê seus pais? –ela perguntou, se ajoelhando para ficar no nosso tamanho.

—Estamos com a tia e a vó da Mel. –Pablo apontou para Melissa, que usava uma blusa, shorts e o véu.

—Minha irmã vai estudar aqui. –ela justifica.

—Conheço vocês. –ela fala. –A família Barros Bastos. Meu nome é Alicia, a bibliotecária. Querem ficar comigo até a reunião acabar? Não posso largar vocês quatro por aí.

—Tá bom, tia. –Pablo aceitou.

—Não sou sua tia, garoto. –ela reclamou, e nos levou até uma portinha de madeira protegida por uma grade meio enferrujada. Ela abriu a grade, depois destrancou a porta, e a biblioteca da escola era constituída por cinco estantes de livros, dois armários, três mesas pra quatro pessoas, dois computadores e a mesa da bibliotecária. Alicia foi até um dos armários e tirou uma caixa de fichas, separadas por números.

Belle aproveitou e tirou um toca discos da caixa, com alguns discos. Ela soprou para tirar a poeira, e o colocou em cima de uma das mesas.

—Sua mãe não te ensinou que é feio pegar as coisas sem permissão? –Alicia perguntou, meio brava, com a sobrancelha arqueada.

—Ela morreu antes de ter a chance. –Belle respondeu, dando de ombros. Estranhei, mas não falei nada. Belle olhou para um dos discos e o colocou pra tocar.

—Desde quando sabe usar isso? –Pablo questionou.

—Eu ensinei. –Mel contou.

—E não ensinou a gente? –reclamei, indignado. Até uma música preencher o ambiente.

Com os pés enfiados na terra

E os braços abertos pro céu

Como árvore que sou

Sentada na areia é que eu gosto de ver

Esse céu, esse mar que faz parte de mim

O murmúrio da noite o silêncio do sim

Sim pai, aceito voltar pra casa... Terra sagrada dos meus ancestrais —Belle cantou, batendo as mãos na mesa no ritmo da música e com os olhos fechados. -Sim mãe, aceito cuidar da casa... Terra sagrada dos meus ancestrais.... Terra, Tupi-guarani...

Das veias da terra que vem nosso corpo

A terra que chama, que grita por nós

Filhos da terra

Voltar pra tribo

Vem sol, vem mar

Hei sol, hei mar

Vem amar

Terra

Tupi-guarani

—Que linda essa música! –exclamamos.

Ana Diniz. –Alicia comentou. –Conhece?

—Minha mãe cantava. –Belle fala, ainda se balançando no ritmo da música.

—Ela era indígena? –Alicia continua, colocando óculos.

—Tupi-guarani. –Belle responde, desligando o toca discos.

—Uma pena vocês não saberem ler. Tenho ótimos livros indígenas aqui. –ela lamenta. –Iria amar ler Iracema e O Guarani.

—Sobre o que eles falam? –perguntei.

—São romances de José de Alencar, um excelente autor brasileiro. Belle, querida, eles estão numa cesta perto do armário do seu lado. –ela indica, e Belle os pega, entregando os livros de capa mole. –Querem que eu leia pra vocês?

—Sim! –respondemos.

Alicia nos olhou com cara de dúvida.

—Eu vou tentar suavizar um pouco, pra que vocês entendam. E é só uma adaptação. –ela esclarece, e abre o primeiro capítulo.

Passamos até as 15:30 ali, enquanto Alicia nos contava um pouco da versão mais light das histórias.

(***)

—Então, voltamos pra pegar a Emily e o Rick depois, né? –Mel se certificou, pela milésima vez.

—Não, Mel, vamos larga-los na escola pra sempre. –Cris respondeu, irônica, mas Mel parou de andar de susto. –É brincadeira, criança.

—Não teve graça! –ela reclama.

—Se eu pudesse ver sua cara, teria. –ela retruca, ácida.

—Cristina! –tia Gina ralha com ela, que só se apressa, a saia azul turquesa esvoaçando no vento. –Ela só está irritada.

—O parquinho fica logo ali. –Belle apontou, enquanto tentava controlar os fios negros voando na cara. –Não podemos esperar ali até eles saírem?

—Belle, querida, eles só vão sair daqui uma hora e meia, mais ou menos. Às 17:00. Isso levaria muito tempo... –Tia Gina começa a justificar.

—Nós vamos esperar. –Cristina decide.

—Eu também prefiro esperar, dona Regina. –Seu Matheus fala. –Quero estar bem aqui quando der o horário.

—Tudo bem. Crianças, vocês podem ir pro parquinho. Mas cuidado pra não se sujarem. E cuidado, vamos atravessar a rua e aí vocês vão. –tia Gina fala, nos segurando na hora de atravessar a rua, e daí corremos para o parquinho.

O parquinho ficava no meio da praça principal, onde vimos as bailarinas anos atrás. Era cheio de areia, com um balanço, escorregador, gangorra e essas coisas. Tinha várias mesinhas e duas espécies de casinhas gigantes, uma dos meninos e outra das meninas. Era como um fort. E estava sempre lotada de crianças. Achei Diego, Eduardo, Natália, e várias outras crianças, como Aline, Andressa, Arabela, Miguel, Arthur, Laura, Larissa e Carlos.

Mel travou do nosso lado na hora, e Pablo seguiu seu exemplo. Nenhum dos dois curtia muito as crianças da cidade, especialmente Mel, que não era exatamente bem recebida.

—O que foi? –Belle perguntou.

—Não sei.. Se...-ela gaguejou.

—Ora, pare com isso. Quero ver algum deles mexer com você. –ela falou, as mãos na cintura.

—Pode relaxar, Mel. –tranquilizou Dete. –A gente tá aqui.

Aos poucos, nós chegamos no parquinho, e no meio de todo mundo, nem chamamos atenção.

—O que quer fazer primeiro? –Belle perguntou, segurando as mãos de Mel.

—Balanço. Me empurra? –ela perguntou, e as duas sumiram em direção ao balanço.

—Eu e a Dete vamos montar um castelo de areia. –Leo avisou, e sumiu com a menina.

—Dete, cuidado com a areia. Não esqueça que se entrar no seu nariz você pode ter um ataque. –Pablo avisou meio alto para ela ouvir.

—E nós? –perguntei.

—Pedro! –uma vozinha me chamou. Era Laura.

Laura era um ano mais nova, cabelos castanho escuro ondulados com olhos castanho mel, sardas na bochechas e branquinha que dói. Ela era bem fofa também.

—Querem fazer parte de uma investigação? –ela perguntou.

—Do que você está falando? –Pablo retrucou.

—Nós achamos que os meninos roubaram algumas bonecas. Mas não podemos entrar lá, é regra. -ela falou. –Poderia pegar para nós?

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—Claro. –respondi, dando de ombros. Era normal isso acontecer de vez em quando.

—Obrigada, Pedro. –ela agradeceu, sorrindo.

Eu e Pablo entramos na casinha que servia de fort. Era de madeira, com dois andares e minúscula, cabia no máximo quatro de cada vez.

—Diego. –chamei o garoto que usava um binóculo para observar as meninas. –Cadê as bonecas das meninas?

—Por que elas sempre pedem pra você pegar? –ele reclama, passando as bonecas.

—Porque eu sou legal. –sorri, enquanto ele me dava língua.

As crianças da cidade podiam ser legais, mas eram completamente desinteressantes. Era sempre uma picuinha ali, outra aqui, o que era muito chato. Laura esperava perto dali, e sorriu gentilmente pra mim ao pegar as bonecas de volta.

—Sabe, aqui seria muito mais legal se meninos e meninas brincassem juntos, como o Leo e a Dete. –Pablo apontou para os dois, num canto, construindo uma massa de areia que de jeito nenhum formaria um castelo.

—Eles sabem que precisa molhar um pouco? –perguntei, no que Pablo negou rindo. Mesmo assim, eles pareciam estar se divertindo.

Olhei Belle e Mel, no balanço, Mel sendo empurrada e rindo com isso. Olhei para Pablo, que também olhava a cena. Cutuquei ele e comecei a andar em direção a elas.

—Bu! –gritei, perto de Belle, que assustou.

—Pedro! –ela brigou, comigo rindo.

—Vai no outro. Eu te empurro. –sorri para ela, que duvidou num primeiro momento, aí foi devagar, sentou no balanço, e me deixou empurrá-la. Aos poucos, ela foi se animando, e vi que ela gostava de ir no alto, soltando altas gargalhadas.

Depois de um tempo, ela mesmo parou o balanço e desceu.

—Sua vez. –ela diz, saindo. Me sentei, enquanto Belle me empurrava e Mel trocava com Pablo.

E ficamos nós quatro, no balanço, escorregador e gangorra até tia Gina nos chamar, quando deu o horário de buscar Emily e Henrique.

Os dois nos esperavam na sala de aula, já que a aula no primeiro dia acabava pouco antes que o normal, sentados, esperando os pais. Quando nos viram, se levantaram normalmente e andaram calmos até nós, e passado a porta, pularam cada um em seu parente.

—Até, professora. –despediu Emily.

—Até, professora. –repetiu Henrique.

Seguramos todos pela mão e saímos andando. Vi Alicia na porta da biblioteca, e ela me deu uma piscadela, que correspondi.

Ainda tinha muita coisa pra entender ali.

(***)

Chegamos na casa de Belle exaustos. Maria arrumava a mesa pro café, num vestido estampado florido bem colorido, saltos amarelos e cachinhos loiros soltos. Ela abriu um sorriso maravilhoso na hora que nos viu.

—Como foi na escola? –ela perguntou. –Eu fiz café, leite quente, bolo de fubá, torradas e geleia.

—Não gostei. –reclamou Henrique, se sentando na mesa. –É chato.

—Ei achei legal. A professora é um pouco brava, só isso. –comenta Emily, olhando desejosa o bolo.

—Podem comer a vontade. –Maria fala.

—Cadê papai e Lerina? –Belle pergunta.

—Belle, o que aconteceu? Está toda suja de areia. –Maria estranha, se ajoelhando e vendo os joelhos sujos, os sapatos manchados e o vestido sujo.

—Eu os levei pro parquinho, Maria. Espero que não se importe. –tia Gina justifica.

—Oh, claro que não. –ela fala, mas dá o olhar que eu conhecia bem, para Belle. O olhar que minha mãe dava às vezes, e significava “Não importa, assim que eles forem embora se prepare para um longo castigo por sujar sua roupa!”. –Seu pai está no quarto. Lerina está se alongando lá no quintal, devia ver, ela parece uma bailarina.

Os olhinhos de Belle brilharam, e ela saiu pro quintal. Eu, Mel e Pablo nos sentamos na mesinha, enquanto Maria arrumava pratos com bolo e leite com café para nós.

—Sua mãe passa aqui daqui a pouco para te pegar, Pedro. Ela vai levar você, o Leo, o Pablo e a Dete. –Maria fala. –Comam direito. Eu vou com a Cris, a Regina e o Seu Matheus lá pro quintal.

Ela se retirou, enquanto nós comíamos. Eu terminei meu prato em silencia e quando ia pra o quintal um corpo se colocou na minha frente.

—Pedro! Vamos! –minha mãe chamou.

Como ela tinha em entrado? Não fazia a mínima ideia.

—Vamos, crianças. Mel, Emily e Rick, podem ir pro quintal. Nós temos que ir. Está tarde. –mamãe chamou, nos despedimos de todos ali, e apesar de eu ainda querer me despedir de Belle, tive que ir de acordo com a vontade de minha mãe.

No caminho, enquanto eu batia nas pedrinhas e curtia o restinho do sol que tínhamos. O caminho para minha casa era sempre tão calmo. Na escadinha da casa de Pablo, fizemos um soquinho de despedida.

—Te vejo amanhã. –ele falou, com plena certeza.

E era verdade. Faça chuva, faça sol, faça neve, granizo ou furacão, eu sempre o veria amanhã.

—Até mais. Tchau, Dete! –falei pra garotinha de cabelinhos castanho claro, que me mandou um sorriso. Eram raros os momentos em que Dete podia sair assim, especialmente por causa da asma.

Enquanto ia embora, observei Pablo esperar sentado e acenando, me fazendo retribuir. Era meu melhor amigo desde, tipo, sempre. E por um minuto, eu pensei em como seria chato sem ele. E em um momento, se eu e ele não conseguíssemos a passagem pra Terra do Nunca, nós dois teríamos que ir pra escola.

Já imaginou a gente numa sala de aula?