Orleans

Capítulo 5 - Englishman in New York


Quatro da manhã. Adria falava pelos cotovelos enquanto atravessávamos as avenidas a caminho do aeroporto JFK. Mal conseguia olhar pela janela sem encostar a testa no vidro e bocejar, observando a chuva batendo nos carros pela madrugada.

Mal tive tempo de trocar aquele vestido úmido e manchado, cheirando a café e chocolate misturado com um pouco de perfume que ainda existia em mim e eu mal sabia se era meu, do carro ou do maldito Sr. Campbell. Só estava respirando enfiada dentro do sobretudo de zebra que Adria jurou mil vezes que combinava perfeitamente com a minha pele . Linda.

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Enquanto minha irmã divagava sobre reformas que eu deveria fazer no porão, formas de restaurar meu vestido e melhoras nas minhas habilidades como maquiadora; eu só conseguia pensar em quão improvável havia se tornado meu final de sexta-feira.

No meio daquela chuva digna de uma produção hollywoodiana sobre Nova Iorque, em uma noite de um dia qualquer, Katerina Dalton ficou na mais estranha situação desde seu aniversário de 27 anos com direito a um apartamento e um noivo embrulhado para presente.

Tive um arrepio ao me lembrar daquele momento, parada na chuva recebendo uma echarpe rosa ensopada das mãos de um Próspero que me salvou (pela terceira vez em seguida, um recorde!) de um acontecimento terrível ocasionado pelas minhas más decisões nesta vida.

Sim. Por mais que eu não queira assumir, aquele desastroso beijo do Sr. Campbell entraria facilmente para o hall de “maiores burrices terríveis já cometidas em minha existência”. Ou seja, não me perdoaria se tivesse realmente acontecido e devia minha pouca dignidade e bem estar ao meu insuportável herói: o Carma.

E graças ao destino cósmico — o ordinário que continuava demonstrando que minha vida era uma sucessão de erros infindáveis — minha noite até aquele momento dentro do táxi cheirando a patchoulli a caminho do JFK, tinha mais algumas surpresas.

Defina “situação estranha”. Agora pense duas vezes sobre sua definição e saiba que não chegou nem mesmo aos pés do momento que eu vivi.

A chuva torrencial ainda caía sobre Nova Iorque e parecia bem decidida em perdurar através da madrugada, sem um minuto de calmaria. Aquele friozinho bom entrando pela porta do porão da Sra. Fighbright, alguns respingos molhando o capacho da frente e Katerina Emily Dalton sentada em uma banqueta entre um ensopado Próspero e um emudecido Sr. Campbell. Não era de se admirar a ruga que a testa de Adria estava formando enquanto passava as xícaras de chá quente para todos (que por pouco não cabíamos dentro do meu humilde lar).

— Então... — Adria pigarreou. — Como foi o concerto?

— Ótimo — tratei de responder rápido enquanto aceitava uma caneca de ursinho, a única coisa sobrando para se servir um chá àquela hora da noite. Nunca esperei visitas, quanto menos numa situação assim.

— Sei. E o seu vestido...

— Foi um acidente. Grande parte por minha culpa, mas já me coloquei a disposição de Katerina para arrumar outro vestido conforme ela quiser. — Bruce recebeu apenas olhares e silêncio por alguns segundos antes de Adria realizar que o vestido que ela havia pessoalmente arrumado, estava parcialmente arruinado.

Consultei Próspero com o canto dos olhos, mas a única coisa que ele limitou-se a fazer foi girar a colher dentro de sua xícara de chá de ervas. Como eu queria que ele se afogasse dentro daquela xícara para notar a situação em que eu estava.

— O senhor tem consciência de que esse vestido é um Burberry original, que me custou um bom tempo em conseguir para a minha irmã? E que agora está manchado, maculado e ensopado por conta de um acidente?

Minha irmã. Importando-se com vestidos antes das pessoas desde sempre.

— Senhorita Dalton, — Bruce deixou sua xícara sobre uma das pilhas de livros e respirou profundamente — eu realmente sinto muito. Não será problema algum em conseguir um idêntico para Kate. Se ela quiser, claro.

Passaram a olhar para mim e não notei. Estava mais ocupada me revirando discretamente para as gotas de água pararem de fazer cócegas nas minhas costas quando escorriam dos meus cabelos murchos. Quando percebi o silêncio insistente, encontrei o olhar de Adria esperando a minha resposta.

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— Você vai aceitar esse vestido, Kate.

— Não, não é preciso. Foi só um acidente desastroso, aposto que vai ficar como novo quando sair da máquina de lavar e costurar essa manga. Eu duvido que vá precisar de um vestido “Blueberry” tão cedo.

— Máquina de lavar? — Adria desmaiaria de desgosto se pudesse, mas só suspirou e deu as costas, voltando para o fogão e a chaleira quente.

Voltamos ao estado de silêncio catatônico, que foi brevemente quebrado quando Bruce apanhou sua xícara para coloca-la na bancada. Ele ajeitou o casaco (que obviamente eu havia devolvido) e colocou as mãos nos bolsos, desenhando um sorriso sem graça, mas mesmo assim simpático antes de começar a se mover para perto da porta.

— Eu agradeço pelo chá e pela noite, Katerina. Já está ficando tarde e pelo visto a chuva não vai passar... Quer uma carona, D’Valois?

Foi nesse momento, enquanto Bruce Campbell estava de pé em frente à porta com suas mãos nos bolsos e seu sorriso no rosto que percebi o quanto havia um tom de imensa provocação naquela pergunta — não que eu não tivesse sentido a tensão entre aqueles dois antes, mas era mais do que uma amenidade — era uma clara guerra.

Que os espíritos dos bons escritores clássicos não permitissem que os dois saíssem em uma briga de UFC peso leve bem dentro do meu porão. Seria desastroso demais e eu tinha acabado de arrumar minha estante de livros.

Tenham respeito pelos livros alheios, por favor!

Próspero se ateve a beber mais um gole do chá. O que havia restado dele depois da chuva era um emaranhado de cabelos loiros amassados e um rastro de água que vinha desde a porta e culminava em uma poça logo embaixo de seus pés.

Fiquei imaginando o quanto aquele casaco sobre o terno devia pesar molhado daquela forma, mas meu pensamento se desfez quando ele abriu a boca.

— Estou esperando por Collins. Obrigado pelo convite.

Se havia uma coisa que minha mãe nos ensinou com sucesso — além de procurar maridos ricos quando tivéssemos oportunidade e de nos autocriticar ferozmente — era a ter educação com todos. Mesmo com pessoas notavelmente burras e babacas. Quando Bruce se aproximou da porta, me levantei e fui até ele para me despedir. Notem novamente: por educação.

— Obrigado pela noite, Katerina. Agradeça sua irmã pelo chá — claro que Bruce não seria louco de interromper os resmungos de Adria após aquele surto por conta do vestido.

— Vou agradecer. Obrigado pela companhia.

— Será que ainda nos vemos até o final do mês, para compensar por todo esse desastre de hoje? Um café, sem imprevistos — ele sorriu esperançoso. Juro que havia esperança naqueles olhinhos azuis cristalinos e sorridentes.

— Vou pensar, Bruce. De verdade.

— Tudo bem. Desculpe novamente, Kate. Boa noite — então ele beijou minha bochecha e deu aquele sorriso arrebatador de calcinhas desavisadas. Mas desta vez, resisti bravamente. Minhas calcinhas agradeceram.

Eu mereço um prêmio. E uma barra de chocolate com flocos de arroz.

— Boa noite, D’Valois — Bruce acenou para Próspero e o aceno do Carma foi um emocionante erguer das sobrancelhas. As duas juntas.

Quando voltei a me sentar ao lado de Próspero e apanhar minha caneca de ursinho para um longo gole de chá em silêncio, senti que havia uma coisa me incomodando profundamente. Não era a proximidade do inglês arrogante nem o fato irrefutável de que Adria não sabia fazer chá. Parecia uma coisa entalada na garganta e que me fez levantar correndo e ir até a porta bem a tempo de ver Bruce abrindo o carro e usando seu casaco como um guarda chuva.

— Bruce!

Ele parou no mesmo momento, esmiuçando os olhos no meio da chuva para entender o quê eu queria com ele naquele momento.

— Sim? — dava pra notar como ele erguia a voz para ser ouvido além do barulho da água. Ainda tinha aquela pitadinha de esperança nos olhinhos dele.

— O sobrenome dele é Valois.

Meu. Deus. Eu disse mesmo aquilo?

— O quê? — Bruce contornou até a frente do carro, incrédulo.

— O sobrenome, Bruce. O correto é Valois, não D’Valois. Só pra constar. Erro de dicção.

A testa do Sr. Campbell estava tão franzida que qualquer um conseguiria ralar um queijo parmesão nela. Sua expressão beirava um vazio questionador e abobalhado, com certeza ele esperava que eu fosse correr para seus braços em um beijo digno de tevê, a chuva coroando o cenário todo com o Felizes para Sempre e uma música grudenta ao fundo. A mocinha arrependida por não ter dado o beijo no carro e que agora se derretia para seus charmes, independente das idiotices que ele fez em uma noite.

Desculpa, Bruce. Não desta vez.

— Boa noite, Bruce — sorri e fechei a porta para a chuva não lavar o porão todo de uma vez e mais aliviada, voltei a me sentar na minha banqueta.

Foi nesse momento que a coisa mais incrível de toda aquela sexta-feira tenebrosa aconteceu bem diante dos meus olhos. Tinha acabado de fazer um barulho estranho com a boca para tomar o último gole daquele chá esquisito que Adria havia feito e um ruído baixo, discreto, quase um murmúrio, surgiu bem ao meu lado.

No começo achei que era um tom de reclamação, um pigarro na garganta, uma discrição qualquer que os ingleses fazem quando terminam de tomar seu chá e são educados demais para dizer com todas as palavras de que aquilo parece um café passado dentro de uma meia calça — mesmo sabendo que Próspero seria bem capaz de dizer isso com todas as letras para qualquer um. Mas não era isso e quando ergui os olhos por trás da beirada da caneca de ursinho, encontrei o rosto do Carma revirado em uma expressão completamente desconhecida para mim.

Próspero estava sorrindo.

Não era qualquer sorriso, como o educado que tinha acabado de dar para Bruce ou aquele puxar de lábios que damos para um cliente na livraria, mesmo com todo o cansaço do mundo. O sorriso de Próspero era feito por um conjunto completo e absolutamente interessante de seus lábios, bochechas e olhos. Era impossível não olhar para ele, com as mãos quase cobrindo a pequena xícara de asa quebrada que Adria havia lhe dado e não deduzir que ele sorria, simplesmente pela forma que seus olhos sorriam por ele.

Primeiramente, ele olhava para a bancada da minha pequena cozinha, um ponto vago no espaço e lentamente, de esgueio, acabou encontrando com meu olhar. Aposto que estava parada na mesma posição desde que percebi o quê ele estava fazendo, pausada no tempo com medo de atrapalhar aquele acontecimento inédito.

— De fato, senhorita Dalton. Um erro de dicção — foi só o que ele acrescentou e o sorriso sumiu, tão rapidamente quanto havia surgido. Sorrisos eram uma anomalia grave para o Carma.

Tudo que consegui fazer então foi guardar um pequeno sorriso para mim mesma e esperar que ele me entregasse sua xícara para colocar na pia, assistindo então em silêncio Adria analisar meu vestido de perto com seus inúmeros resmungos e abreviações de palavrões em outras línguas.

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Fomos atrapalhadas por um trinado melódico de celular que Próspero atendeu com três palavras: “Sim”, “ Claro” e “Esperando”. E não demorou nada para algumas batidas na porta decretarem que a carona dele havia chegado.

Collins surgiu pela fresta da porta como um salva-vidas muito bem preparado, com um enorme guarda chuva preto com um lustroso cabo de madeira, capa de plástico e seus peculiares olhinhos empertigados por trás dos óculos. Gotinhas de chuva estavam paradas em sua barba rechonchuda e grisalha, perfeitamente aparada.

— Senhorita Dalton — cumprimentou.

— Pode me chamar de Kate — sorri, abrindo caminho para ele que gentilmente negou o convite para a minha humilde toca hobbit.

— Vim apanhar um provavelmente ensopado cavalheiro, se não for incômodo.

— Nenhum.

Não precisei anunciar nada, até porque nem mesmo dois metros separavam o Carma da porta de saída do porão da Sra. Fighbright. Ele se levantou, foi até Adria e agradeceu pelo chá (mesmo sendo horrível) e passou por mim com seu nariz empinado costumeiro, aceitando que Collins o ajudasse a tirar o casaco ensopado e vestir uma capa de plástico transparente sobre o terno igualmente molhado.

Eu sabia que ele com certeza sairia pela porta com um aceno de queixo e aquela forma irritante de dizer meu sobrenome depois do pronome de tratamento pomposo, e não achei correto que fosse assim. De uma forma estranha e inexplicável, o Carma fazia cada vez mais jus ao apelido que tinha e vivia voltando pelo meu caminho com sua arrogância insuportável, que me salvava de problemas.

— Boa noite, Senhorita Dalton — ele obviamente desfiou com seu sotaque distinto, prestes a dar as costas e entrar na proteção do guarda chuva que Collins segurava.

— Espere, Sr. Valois.

Minha noção do perigo se perdeu naquele segundo. Porque convenhamos, uma pessoa com as faculdades mentais em dia jamais teria segurado aquele homem pela manga do terno. Menos ainda se aproximado o suficiente para isso, já que o perfurante olhar do Britanicus Raptores era implacável.

Próspero recuou meio passo e olhou para a minha mão no seu braço, depois para meu rosto, em uma sequência muito rápida de seus olhos ferinos. Retirei a mão na mesma hora, como se ele pudesse me matar pela intromissão de seu espaço pessoal.

— Eu gostaria de agradecer pelo que fez por mim hoje.

— Não precisa agradecer por nada. As credenciais foram uma gentileza do meu irmão, senhorita Dalton.

— Não estou falando das credenciais. Estou falando do que fez lá fora na chuva, Sr. Valois. O senhor é de fato, um herói muito improvável. E isso é mesmo péssimo.

— Eu costumo ser péssimo. O importante é que sua echarpe está em melhor forma do que seu deplorável aspecto, senhorita Dalton.

Ele tinha que ser irritante. Sempre.

Claro que eu não estava falando da echarpe cor de rosa que estava pendurada no mancebo ao lado da porta, pingando água no piso; nem mesmo das credenciais para parabenizar Luke. Alguma coisa me dizia que Próspero tinha impedido aquele beijo não por um golpe de sorte, mas um motivo maior do que um pedaço de tecido que parecia chiclete de frutas e a notificação de um apelido que me cabia bem. Ele havia me salvo de Bruce Campbell, pelo menos por aquela noite e eu não sabia o porquê.

— Acho que estamos empatados nessa questão, Sr. Valois.

— Talvez.

Ele aprumou o corpo e ajeitou a capa de chuva, indicando para Collins que estava pronto para sair. Assim que pisou no primeiro degrau que levava do porão até a rua, virou-se para mim mais uma vez.

— Boa noite, Megera.

— Boa noite, Próspero.

Trocamos um meneio quase vitoriano e com o fechar da porta estava praticamente terminada a minha noite de sexta. Ao menos até Adria anunciar que tinha de pegar um voo antes de amanhecer por conta da mensagem de um de seus consultores que estava enlouquecido em Milão com um desfile desorganizado. E Adria não perdoava desorganização.

E ali estávamos nós duas, escutando o motorista cantarolar uma canção antiga que tocava no rádio, com um ritmo que lembrava um reggae melódico.

“Im’ a alien. I’m a legal alien... I’m a Englishman in New York”.

— E podemos mandar esse vestido para uma lavanderia especializada em Manhattan, eles fazem um trabalho perfeito em tecidos exclusivos e um Burberry rosa como o seu... Kate? Você está me escutando?

Adria me chamou para a realidade com sua risada alta e descolei a testa da janela só para vê-la rir ainda mais da marca vermelha que tinha ficado no meu rosto.

— Onde você estava, princesa? Me deixou falando sozinha todo esse tempo? Eu, sua amada irmã, prestes a ir embora para a loucura do mundo exterior, para a selvageria da Europa!

Ainda bem que Adria não era dramática.

— Eu estava escutando, senhorita Oscar-de-melhor-atriz. Só estava pensando um pouco na vida.

— Nela toda? Foi um pensamento bem curto — Adria gargalhou e me abraçou pelos ombros de encontro como seus peitos siliconados. — Brincadeira, minha linda. Ainda pensativa com a sua noite ruim?

— Estava me culpando por ter sido uma completa imbecil e quase ter beijado o Sr. Campbell, Adria. Meu inimigo jurado! Eu nunca me perdoaria.

— Minha querida, um beijo é um erro pequenininho. Julieta também fez isso quando beijou seu inimigo Romeu, um membro da rivalidade de sua família.

— E ela morreu como resultado. Lindo exemplo, Adria.

— Tudo bem, foi um péssimo exemplo. Mas não aconteceu nada, Kate, você só se deixou levar por uma noite ruim, um homem bonito, uma noite de chuva. Toda mulher já fez uma burrice dessas uma vez na vida. Pelo menos ele não é seu ex e você não acabou na cama dele.

— Futuro-ex-noivo.

— Certo. De qualquer forma, se o Sr. Campbell tivesse arruinado o meu Burberry como ele fez com o seu, ele teria perdido as bolas na ponta do meu sapato antes de se atrever a querer me beijar. Você só estava carente. Ponto final. Precisa de amor.

— Me poupe, Adria. É pra isso que eu ganhei um gato de aniversário.

Gargalhamos juntas, mesmo que aquele assunto todo de carência afetiva fosse um tanto depressivo. Adria ainda tinha um modelo gostosão esperando por ela do outro lado do mar com aquela barriga cheia de gominhos frutos de suor em uma academia. Meu exercício preferido se resumia no esforço de carregar carrinhos de livros para o estoque da livraria e levar um saquinho de papel pardo com croissants para casa no final do expediente.

Patético.

Ainda estávamos rindo quando as placas passaram a anunciar a proximidade do aeroporto. Então ficamos em silêncio, abraçadas e curtindo aquele momento entre irmãs, o conforto e segurança de estarmos próximas, uma apoiando a outra. Adria podia ser uma perua louca e peituda na maioria das vezes, mandona e exagerada, mas era o mais próximo que eu tinha de família naquele momento.

O táxi parou diante das portas da plataforma 12 e precisamos pedir um carrinho maior para acomodar a mala gigantesca de Adria e suas sacolas cheias de compras e lembrancinhas de Nova Iorque para suas amigas modelos. E enquanto caminhávamos para os guichês das companhias aéreas, ficava imaginando se caberia ali dentro um obeso mórbido acompanhado de duas tortas cheesecake bem recheadas. Acho que ele se acomodaria bem dentro da mala e sobraria espaço para algumas rosquinhas.

Conversamos algumas bobagens até Adria encontrar o guichê da companhia que havia escolhido para o voo e ali nos separamos por alguns minutos.

Procurei um banco de espera e me acomodei ali logo que vi Adria começar a discutir com o atendente, falando alto e gesticulando, parecendo bem chateada. Eu não queria trabalhar ali naquele momento. Só eu sabia do quê Adria era capaz quando cometiam erros com ela.

Uma vez, na adolescência, Adria namorava um cara maravilhoso do colegial. Eles formavam aquele invejável casal perfeito, com a exceção de que Adria nunca teve coordenação para ser cheerleader e Keane — o senhor perfeição — não jogava futebol. Ele preferia ilustrar comerciais de pasta de dente e cuecas, para o delírio das púberes colegiais.

Todas as garotas queriam ser como Adria, centro das atenções daquele cara moreno, alto e sedutor, cheio de amor para dar. E certo dia, ela soube que ele estava mesmo cheio de amor e estava distribuindo por aí dentro do carro nas madrugadas, levando garotas para ver as estrelas no observatório antigo da cidade.

Me lembro de que a chateação de Adria foi tamanha, que Keane acordou no hospital uma madrugada com super cola no lugar do lubrificante que ele guardava com os preservativos no porta luvas. Não sei como fizeram pra desgrudar, mas deve ter doído.

A discussão de Adria com o homem no guichê levaria algum tempo e nada melhor para passar meu tempo do que desbravar as maravilhas tecnológicas que meu celular ofertava: um jogo de cartas.

Estava bem distraída quando alguém cutucou meu ombro.

— Se não é a ovelha negra da família!

Assustei, admito. Aquele tom de voz cantarolante não foi reconhecido imediatamente, porém bastou me virar no banco para aquela imagem de cabelos pink colorirem o ambiente.

Maxwell Fighbright me abraçou apertado, sentando logo ao meu lado e deixando seu perfume de baunilha tomar todo o espaço ao redor. Seu sorriso agradável estava acompanhado de uma postura mais discreta, resumida em jeans e uma camiseta branca de gola v. Mesmo assim sua personalidade saltava pelos poros tanto quanto seus cabelos arrepiados e coloridos.

— Não me diga que você está pensando em voltar para sua cidadezinha natal, madame Katerina? — ele inspecionou se eu não estava carregando nenhuma mala e pareceu gostar muito do sobretudo de zebra que Adria tinha me emprestado.

— Estou acompanhando minha irmã — apontei Adria no guichê com seus saltos 18 e aquele tubinho justo com estampa de leopardo. Formávamos um verdadeiro safari.

— Já gostei dela — Max riu e ajeitou meus cabelos para trás das orelhas. — E como está a adaptação? Já faz mais de meses que não nos falamos por telefone. Nova Iorque já é sua casa?

— Pagar o aluguel em dia significa falar menos com você, Max.

— Verdade. Mas eu sinto falta dos seus choramingos para ganhar um prazo nos pagamentos.

— Depois de um ano, acho que eu e Nova Iorque já passamos da fase de reconhecimento e estamos curtindo um começo de namoro sem compromisso. É bom sobreviver. E te pagar em dia.

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— A cidade te ama, lindinha. Caso contrário ela já teria te devorado ou você estaria pegando um avião com o rabinho entre as pernas, ganindo de volta para o colo da sua mãe malvada. Por falar nisso, como anda aquele problema antiquado de casamento? Alguém tentou te arrastar de volta para a época das mulheres sem direito de expressão?

— Eles não seriam malucos. Meu pai liga ocasionalmente e minha mãe dá sinal de vida com algum SMS mal educado. E o quê o senhor está fazendo aqui? Aliciando novas almas para cobrar o aluguel?

— Algumas — Maxwell gargalhou. — Estou chegando de uma viagem chatíssima para um encontro anual da família e fui incumbido de localizar o paradeiro de minha ilustre avó. Por acaso, a adorável senhora Dolores Fighbright tem dado as caras por lá e infernizado sua vida?

Puxei da memória qualquer lampejo da visão da Sra. Fighbright e tudo de que me lembrei foram raríssimas vezes em que a vi pelo vão das cortinas na janela da frente.

— Tenho medo de que a sua avó esteja morta naquela casa, Max. Não escuto nenhum ruído já faz algum tempo.

— Que os bons deuses te ouçam! Se Dolores for desta para melhor, o mundo agradecerá em aleluias.

— Que horror... Por falar em horrores, Max, o aluguel do mês que vem...

— Relaxa. Você sabe que é minha inquilina favorita.

— Sou sua única inquilina, Max.

— Exatamente por isso. E olha só, sua irmã fashionista vem vindo.

Adria se aproximava dos bancos de espera como o verdadeiro furacão Dalton, agitando os braços e resmungando, puxando aquele carrinho com a mala imensa. Parou bem na nossa frente e soltou os ombros.

— Acredita que eles erraram meus dados de reserva? Ao invés de pegar o voo daqui uma hora, fui transferida para o voo que sai em vinte minutos. E vou ter que ir de primeira classe!

— Que sacrifício nobre, Adria — ah, a ironia.

— Um abuso. Eles não sabem lidar com Adria Melissa Dalton.

Não me contive e ri muito, limpando algumas lágrimas antes de apresentar Maxwell Fighbright para minha irmã. Claro que ele elogiou suas roupas e ela amou o tom de rosa dos cabelos dele. Pronto. Eram amigos para sempre unidos pela moda.

— Vou me despedir agora, princesa. Quero aproveitar para descansar um pouco depois de toda a agitação da sua noite e pegar uns quitutes nas lojinhas da área de embarque.

Adria me abraçou apertado, encheu de recomendações que incluíam comer bem, sair mais, arrumar mais amigos e transar ocasionalmente. Preferia manter meu café mocha com muffins, a companhia de Samantha, Lex e Tabby e ocasionais livros novos com amores platônicos por personagens fictícios. Muito mais saudável.

Ela ainda trocou telefones e cartões com Max antes de sair e beijos na bochecha como mandava o figurino. Então nos entreolhamos e ela deu as costas para não chorar.

Fiquei observando Adria acenar e arrastar sua mala pelo corredor e me senti bem mais solitária do que o normal, mas aliviada de que ela estava bem e feliz. Eu também me considerava muito bem e feliz. Em termos.

— Quer carona pra casa, ovelhinha? Eu quero ver se Dolores passou pelo túnel de luz para o Além.

— Claro. Minha agenda do final de semana não inclui uma caminhada até o porão da sua avó.

— Ótimo! — Max passou o braço pelos meus ombros enquanto caminhávamos para fora. — Então rachamos o táxi.

— Táxi? Você me ofereceu carona.

— Ninguém disse que o carro era meu.

******

A chuva deu um pouco de paz na chegada diante do porão da Sra. Fighbright. As luzes da manhã cinzenta já deixavam a rua com tons pálidos na pintura das casas em tons pastéis. Os marshmellows da rua pareciam tristonhos naquele começo de sábado.

O porão estava escuro e isso acentuou um pouco a sensação de solidão. Precisava de um café bem quente, um bolinho com queijo e uma longa ligação para contar sobre minhas desventuras para Sam, apenas para ganhar alguns puxões de orelha e um afago no ego.

Max abriu a porta do táxi e terminou não permitindo que eu pagasse metade da corrida. Estava alegre e cantarolava ansioso as novidades do homem com quem estava se encontrando nas últimas semanas, um figurão inteligente e gentil que claramente tinha conseguido fazer Maxwell se apaixonar. Parei na frente do portão e me peguei minhas chaves dentro do sobretudo zebrado.

— Obrigada pela carona, Max.

— De nada, lindinha. Quer entrar e provar um café da minha amarga avó?

Meus olhos foram atraídos para as janelas longas da casa da Sra. Fighbright, onde algumas vezes tive a impressão de vê-la espiando com seus robes felpudos e toalha nos cabelos. Mas tudo estava tão quieto que parecia abandonado.

— Obrigada, Max. Eu não quero atrapalhar.

— Não atrapalha em nada, Kate. Vem conhecer a velha megera.

A palavra me deu um estranho frio na barriga. Havia duas borboletas ali e elas bateram dentro do meu estômago com a “megera”.

Maxwell e seus cabelos cor de rosa não me deram tempo de recusar mais uma vez. Pegou a minha e logo abriu o portão que rangia alto, acompanhado pela sua conhecia afirmação de “Falta óleo”. Só parou de me levar quando precisou pegar as chaves da casa nos bolsos do jeans.

O ar de dentro da casa da Sra. Fighbright nos acertou com cheiro de querosene, fumo de cachimbo e bolo de limão. Exatamente como a casa de uma avó deveria ser (com exceção da minha, que visitamos apenas uma vez no ano e a casa é tão esterilizada que não apresenta aroma nenhum).

Os móveis antigos da casa Fighbright estavam cobertos com panos brancos, lençóis presos com fita adesiva cuidadosamente. Os quadros das paredes, cada objeto de decoração, tudo envolto com papel e adesivo. A casa da Sra. Fighbright parecia prestes a ser carregada por um caminhão de mudanças ou para receber uma reforma intensa, talvez um pintor desmazelado. Ou quem sabe ela tivesse mesmo morrido e algum parente caridoso empacotou tudo na espera da leitura do testamento?

Max jogou as chaves sobre um móvel que provavelmente era um piano e caminhou até as janelas, abrindo as cortinas de cada lado da sala. A luz do início da manhã deu um pouco de cor para as paredes cobertas de papel de parede azul claro estampado e iluminou um porta retrato sobre uma mesinha de centro redonda, a única foto que não estava enrolada com papel.

A imagem desbotada pelo tempo, mostrava duas mulheres abraçadas, rindo em trajes de banho que não deixavam dúvidas das décadas que haviam passado depois daquele momento. Um homem se colocava entre elas com um bigode lustroso e um chapéu de palha redondo, abraçando as duas carinhosamente, rindo com elas.

— Maxwell William Fighbright, feche imediatamente essa malditas cortinas!

Bastou o grito vir além da sala para o retrato quase escapulir das minhas mãos e ir ao chão com minha desenvoltura invejável de reflexos motores. Minha sorte foi a proximidade de Max e sua rapidez em salvar a foto antes que parasse no chão.

— Bom dia amada, idolatrada, querida, maravilhosa, imortal avozinha! — era uma saudação longa e cantarolada, enquanto Max fazia um malabarismo para recolocar o porta retratos no lugar.

Tudo que se podia ver de Dolores Fighbritgh era uma figura magricela coberta por um robe azul turquesa que combinava perfeitamente com a toalha em sua cabeça. Empunhava ameaçadoramente uma bengala e acertou o varão das cortinas com ela, fechando tudo para escurecer o ambiente outra vez.

— O quê você quer aqui, Maxwell? — ela chiou rispidamente, como se mal notasse qualquer outra presença que não fosse do neto e eu fosse apenas um mosquito perdido no cômodo cheio de fantasmas imóveis.

— Uma visita, avozinha. Não sentiu saudades de mim?

— Não seja presunçoso, Maxwell. De quanto você precisa desta vez? Cem? Mil? Dois mil? Dê logo seu preço.

Max arrebitou o nariz com repúdio, aquilo era uma ofensa. Depois riu baixinho e tirou um papel do bolso de trás das calças, esticando para Dolores apanhar.

Ela bufou e puxou o papel com uma violência e força que não condiziam com seu tamanho e esmiuçou seus olhos cinzentos por trás das lentes de meia lua de seus óculos. Neste instante, ela me notou.

— O quê ela faz aqui? — inquisicionou.

— É minha amiga, Kate...

— Katerina Dalton, eu sei bem. Você, — ela apontou a bengala para o meu peito — é a infeliz que mora no meu porão. Eu escutei seus gritos na noite passada. Você e aquele homem.

A tentativa de Max em segurar o riso foi um fiasco. Dava pra imaginar o quê ele pensou? Eu mesma teria pensado em qualquer opção maliciosa com uma afirmação daquelas.

— Não é nada disso eu você pensou — corrigi Max. — Eu não quis atrapalhar a senhora. A chuva estava...

— Pouco me importa — ela me impediu de explicar. — Vou pegar o quê vieram buscar e quero os dois fora daqui. E não toquem em mais nada.

Dolores apertou os olhos e caminhou até o porta retratos. Com uma gentileza que em nada lembrava a violência do gesto anterior, posicionou a foto exatamente onde a marca de poeira indicava que estava antes. Seu desgosto era palpável.

Saiu da sala com um bater proposital da bengala a cada passo e logo que sumiu pela porta, Max riu baixinho cochichando na minha orelha.

— Noite agitada, Kate?

— Deixe de ser sacana. Não foi nada disso que você arquitetou na sua cabeça maliciosa, Max.

— Longe de mim te culpar por curtir a noite, lindinha. Mas a velha presa pelo silêncio e bons costumes, lembra? É só se lembrar de baixar o tom da próxima vez.

Suspirei sozinha enquanto Max continuava a observar os pertences da avó sem dar ouvidos para o aviso da Sra. Fighbright. Será que ele acreditaria se eu contasse tudo desde o início? Sobre conhecer Bruce, o Carma, Shakespeare, galochas amarelas e a noite do concerto... Provavelmente não.

Passei alguns minutos observando alguns troféus empapelados dentro de uma estante de vidro, até que o “toc-toc” da bengala avisou do retorno de Dolores.

Havia uma caixa com ela, algo modesto e de madeira vermelha, com um F feito em marchetaria na tampa. Trazia também um envelope entre os dedos, gordo e um pouco aberto, o suficiente para ver uma boa quantia de dinheiro lá dentro.

— Aqui está — ela bateu tudo sobre uma mesa que devia pertencer à sala de jantar. — Agora vão embora.

A aproximação de Max pareceu surtir um efeito de repulsa imenso na Sra. Fighbright, algo que a afastou o suficiente para que nada a tocasse e que permitisse que escutássemos seus dentes rangendo. Ela parecia nervosa enquanto o neto observava a caixa e contava as notas do envelope.

— Pelo amor de Deus, vá embora! — Dolores bateu a bengala no assoalho e algumas coisas tilintaram dentro de seus papéis e adesivos.

— Obrigado, vovó — Maxwell ainda sorriu e apoiou a mão no meu ombro para sairmos da casa. Só me despedi num muxoxo que aposto que mal foi ouvido.

Foi só pisarmos no capacho da porta para a Sra. Fighbright bater a porta e fechar todas as trancas. Contei cinco delas.

— Não é só você que tem problemas de família, Kate — Max suspirou, tentando suavizar o encontro tenebroso com a avó. — Quer ir tomar um café? As boas maneiras da minha avó deixam a desejar.

— Eu prefiro ir dormir um pouco, Max. Vai ficar chateado comigo?

— Jamais, lindinha. Descanse da sua noite de agito.

Decididamente era melhor deixar Max pensando que minha vida era uma agitada aventura. O quê não estava muito longe das minhas últimas semanas.

Quando entrei no meu porão naquele começo de sábado, Tabby veio me receber com algumas esfregadelas e miados. O cansaço pareceu me acertar em cheio depois do encontro com a Sra. Fighbright e fui me arrastando até a cama. Só tive forças para jogar o vestido manchado pelo caminho e me aninhar nas almofadas, escutando Tabby ronronando por perto.

E pouco depois escutei algo mais. Um clarinete, tocando uma canção triste que logo se calou, ou se perdeu quando meu sono finalmente veio.

******

— Ele fez o quê?

Samantha estava inconformada e algumas migalhas do seu pretzel de açúcar e canela caíram por todo lado sobre a mesa do Starbucks anexado à livraria. Era apenas meio dia da segunda-feira, mas Sam parecia estressada por uma semana toda, culpa do turno dobrado na lanchonete da família no fim de semana. E agora ela se divertia em desforrar sua fúria em um Bruce Campbell imaginário enquanto batia a mão sobre os guardanapos perigosamente perto de seu copo de chá gelado.

— Espera, Branquela. Deixa eu ver se entendi direito — ela pausava pra livrar os dedos dos grãos do doce e ajeitar os seios dentro da blusa justa. — Esse Zé Mané te levou no teatro, acabou com a sua roupa, deu atenção pra uma bruaca, contou uma desculpinha qualquer e você quase beijou ele?

— Pois é.

— Vou te perguntar do jeito educado... VOCÊ ENLOUQUECEU?

Claro que a cafeteria toda escutou a pergunta que Samantha tão gentilmente fez e alguns segundos de toda a atenção ficou sobre nós. E tudo que pude fazer foi fechar os olhos, respirar fundo e mentalizar que era exatamente isso que eu sabia que Sam faria.

— Eu não sei o que me deu.

— Pois eu sei. Titica de pombo na cabeça, isso sim. Mesmo que ele fosse o príncipe encantado, sarado e de cuequinha boxer... Kate, esse seu ex-noivo-futuro-noivo, pisou feio na bola com você. Devia ter aceitado a carona do garoto hiperativo e do nariz empinado e ido para casa.

— Não achei certo envolver ninguém, Sam. O Carma e o Luke foram muito legais para mim com os ingressos, o acesso aos bastidores. Era um problema meu e eu tinha de resolver.

— Ok. Mas no meu planeta ninguém beija um cara que ferrou com a noite. Você devia ter me ligado. O tal Sr. Campbell ia aprender uma coisa ou duas em como lidar com uma garota.

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Samantha me fazia rir e quase engasguei com a casca crocante da minha fatia de torta de maçã. E tortas de maçãs me lembravam irremediavelmente da primeira noite em que conheci Bruce, no café 24 horas do Hallow’s Barn com a atendente caindo de amores por seu sorriso maravilhoso. Agora eu me arrependia muito em ter atendido aquele telefone na noite do meu aniversário.

No meu sábado tudo que consegui fazer foi remoer as escolhas ruins da sexta-feira e algumas coisas boas, que mesmo balanceando a situação, conseguiam me deixar ainda mais angustiada com tudo que havia acontecido. Passei grande parte do dia cinzento desejando que Adria não tivesse ido para Milão e estivesse ali para fazer trancinhas no meu cabelo e escutar minhas lamúrias.

Na falta dela, comprei um pote jumbo de sorvete e passei o fim da tarde e da noite fazendo uma maratona intensiva de seriados do Netflix. Quando dei por mim já era a manhã de domingo e tudo que ganhei foi uma estranha ressaca moral, provavelmente alguns quilos a mais e um longo conhecimento sobre crimes hediondos e doenças raras, misturado a detalhes sórdidos de química e rituais de licantropia.

Encorajador.

Apanhei o celular dezenas de vezes para pedir socorro para Sam, mas desistia toda a vez que imaginava o quanto ela ficaria desapontada pela minha falta de coragem nas horas fatídicas da minha saída de sexta e gritaria no telefone e acabaria na porta do meu porão com um balde de yakissoba e um filme de ação qualquer. Até liguei para Adria, mas a mensagem da caixa postal dela dizia claramente que estava ocupada demais para atender. E isso significava que era melhor deixar passar uma semana antes de tentar novamente.

Minha opção quase remota, algo que dificilmente eu faria dada as circunstâncias, seria ligar para meu pai. E foi exatamente o que eu fiz, mesmo sendo uma imensa falta de juízo.

O Sr. Dalton atendeu logo na segunda chamada, um pouco afoito e preocupado com o motivo que teria me feito ligar para ele em um domingo, sendo que mal nos falávamos desde que consegui o emprego na Barnes & Noble, não era nenhuma ocasião especial e ele não sabia de nenhuma morte na família. Com a minha independência, o Sr. Kennedy não precisava mais enviar qualquer auxílio para a pobre filha perdida na cidade grande e isso foi nos distanciando, algo agravado pelas palavras do Sr. Campbell sobre as conversas entre eles comigo como assunto principal.

Claro que eu ainda me sentia culpada por ser provavelmente o motivo de toda a minha linhagem familiar ficar pobre, mas ainda não via uma outra opção para resolver o problema. Talvez se eu mudasse de sexo as tradições familiares mudassem?

Melhor deixar essa ideia pra lá.

Começamos conversando um pouco sobre bobagens, sobre o clima e como o frio parecia mais ameno naquele ano, em como estavam minhas roupas de inverno e o nome do meu gato. Meu pai tentou conversar um pouco que fosse sobre minha mãe, mas o assunto foi logo terminado. Não estava ligando para ter uma discussão sobre o matrimônio dos meus pais, muito obrigada. Nem queria saber se as coisas estavam bem entre eles e o Sr. Kennedy Dalton era o palhaço do ano mais uma vez.

Pelo menos eu sabia de quem eu havia herdado a carga genética de “feita de idiota em relacionamentos”.

— Tem certeza de quê você está bem, Ratinha?

— Me sentindo um pouco sozinha, prestes a cantar All by myself e encenar uma cena do Diário de Bridget Jones, mas nada importante. Adria foi embora ontem, estou com saudades dela gralhando por todos os lados da casa. E olhe que minha casa é bem pequena.

— Ainda morando no porão, Kate? Nós já conversamos, se você quiser o apartamento...

— Por favor, pai. Agora não. Eu liguei para conversar, não pra entrar em uma discussão sobre tradições familiares absurdas outra vez. Será que podemos falar de outra coisa, como livros ou filmes que o senhor tem visto? Ou se está fazendo exercícios e cuidando da alimentação e coisas assim?

Meu pai fez um silêncio na linha. Por um segundo escutei sua respiração pesada e um suspiro distante, quase dolorido. Ele me conhecia o suficiente para saber que não estava bem.

— Kate, podemos nos encontrar para jantar amanhã. O que você acha? Nós dois, um restaurante qualquer em Nova Iorque, horas de conversa tranquila sobre você e o que quiser.

— Da última vez que o senhor me chamou pra jantar havia um casamento no cardápio, pai.

A lembrança fez Kennedy rir e sempre amei a risada dele, como era despreocupada, sonhadora como seus olhos. Adorava isso no meu pai. Em um momento era o homem bem sucedido e no outro o pai babão que amava as filhas mais do quê tudo no mundo.

— Sem casamentos. Eu pego um voo amanhã cedo, você marca o local e estarei lá te esperando. Sem invasão nenhuma, Ratinha. Sem casamentos.

— Promete que não vai trazer Aida com você? Não quero conversar com ela. O senhor sabe que estamos de relações cortadas desde que saí de casa. E prometa que não vai querer conhecer a minha casa.

— Prometo, Kate. Eu e você.

— Podemos comer espaguete ao sugo? Tem um restaurante bom perto do Central Park, acho que o senhor vai gostar.

— A escolha é sua, Ratinha. Sempre sua.

— Não será difícil de encontrar. É um café colorido chamado Babillon Garden & Caffe, tem uma fachada bem visível e servem alguns pratos legais. A macarronada é ótima e eles têm peixe com batatas. Eu sei que o senhor adora.

Ele ruminou do outro lado da linha como se pudesse ver o prato repleto de fritas e peixe frito bem diante de seus olhos. Era bom ter uma conversa boba para variar.

— Estamos combinados. Vou liberar a segunda-feira para a minha Kate.

— Obrigada, pai.

— Vai ficar bem até amanhã?

— Eu supero.

Dormi tranquila depois de escutar a voz do meu pai por aqueles curtos minutos. Talvez estivesse com saudades de casa e de toda aquela turbulência barulhenta que sempre cercou os Dalton.

Mas naquele momento, estava escutando Samantha Russell praguejar contra Bruce Campbell pela décima vez em quinze minutos corridos de almoço. E particularmente, era muito bom ver alguém mais revoltada com meu futuro-ex-noivo além de Adria.

Os pretzel acabaram, minha torta sobrou no prato e saímos caminhando pelo quarteirão da livraria para passar o tempo restante de folga. Continuei contando todo o restante da noite, o detalhe do que o Carma havia feito para devolver minha echarpe e como tive um lapso de coragem em defendê-lo contra Bruce. Não era um salvamento heroico usando a capa dura de um livro de Shakespeare, mas devia servir de alguma coisa.

— Estamos falando do mesmo nariz empinado que te levou pra tomar chá?

— Foi o irmão dele que convidou, Sam. O ruivinho hiperativo, lembra?

— Irmão do mesmo Carma que foi um completo babaca dentro da delegacia?

— Você fez uma pergunta desnecessária para ele, convenhamos.

— Aquele cara dos livros de Shakespeare? O altão sério? O seu cliente Carma das quartas?

— Sim, Sam. Exatamente esse cara.

Pronto. Samantha estava às gargalhadas em plena calçada da quinta avenida, entre milhares de turistas da cidade, quase perdendo o ar e se segurando em mim para continuar rindo e rindo enquanto andava.

Estava prevendo o que viria em seguida. Sam ia dizer uma bobagem na contagem regressiva de 3, 2, 1...

— Você está caidinha pelo seu Carma!

Lá estava.

— Não não não não não não não... Por São Edgar Allan Poe, não pense nisso. Não profira essas palavras de novo, Sam. Isso pode amaldiçoar a minha vida mais do que ela já é amaldiçoada.

— Tudo bem, tudo bem. Finja que eu não disse nada, Branquela. Mas o nariz empinado ganhou alguns pontinhos com você. Claro que isso não livra o nariz dele de levar um soco meu qualquer dia desses.

Uma parte de mim adoraria ver Samantha Russel com seus peitos volumosos e seu sotaque de mafiosa italiana acertando o Carma direto no nariz. Mas uma parte (bem pequena, quase minúscula), gostaria que o nariz dele ficasse exatamente onde estava por uma questão de agradecimento.

Só por isso. Ponto.

Voltamos para a livraria depois de mais algumas gargalhadas de Sam e muitos trovões anunciando mais chuva e recebi algumas notificações no celular que me roubaram a atenção entre guardar os títulos novos nas prateleiras e tirar o pó do meu setor.

Meu pai estava em Nova Iorque e já tinha mandado três mensagens e duas fotos tortas para mostrar que estava passeando pela cidade e que me esperaria após o trabalho no Babillon Garden & Caffe. Ele até mesmo já tinha encontrado o lugar e sua última foto mostrava uma parte de sua cabeça grisalha desfocada e a fachada colorida do restaurante que misturava verde e roxo perfeitamente. Tinha de me lembrar de ensinar meu pai a tirar selfies.

Lex pagou o primeiro almoço para nós no Babillon logo no meu quarto mês de trabalho na Barnes & Noble. Costumávamos sair aos finais de semana para conversar e bancar os turistas pela cidade, mas então a irmã mais nova de Sam, Jenny, foi atropelada em um acidente de moto bem na frente da lanchonete da família. Aquilo afastou Samantha por quase um mês.

Conheci a família dos Russell nessa época. Samantha era a segunda filha e ajudava os pais com a lanchonete desde os doze anos, mas a partir daquele acidente, a família toda se movimentou para ajudar com os gastos das cirurgias da pequena Jenny e da compra de uma cadeira de rodas, já que não podiam arcar com uma prótese.

Jenny perdeu a perna direita.

Chegamos a arrecadar alguma quantia com o pessoal da livraria, mas os gastos com a garotinha eram altos. Pelo menos Lex conseguiu uma cadeira de rodas personalizada por um colega que trabalhava com grafites na cidade e isso ajudou muito.

Depois daquilo, nunca mais nos reunimos no Babillon, mas as lembranças eram ótimas e a comida caprichada fazia parte da memória do lugar.

Um chuvisqueiro leve começou a cair lá fora quase no final da tarde, empurrando o cheiro das ruas e um vento frio para dentro da livraria. Era um aroma perfeito pra se misturar com o perfume dos livros. Existe algo que cheire melhor do quê livros e chuva?

Estava tranquila. Tinha acabado de atender uma senhora que ganhou dois cartões vale-compras como presente de aniversário e fez questão de gastar um deles comprando um presente para agradecer o neto por ter se lembrado dela. As segundas nunca foram muito movimentadas.

Contava os minutos para meu horário terminar e poder me ajeitar para algumas boas horas com o Sr. Dalton em um dos meus restaurantes prediletos quando um par de mãos cobriu meus olhos.

— Ok, Samantha, não tem graça.

Escutei uma risadinha nas minhas costas. Definitivamente não era Sam. Até porquê Samantha usava tanto álcool em gel para tirar o pó de livros das mãos, que nunca teria mãos que cheiravam à caramelo.

— Nunca vou adivinhar. Ganho uma dica?

— Hm... Uma só.

Pronto. Eu nem precisava mais da dica. A voz perto do meu ouvido já denunciava aquele turbilhão de cabelos enferrujados logo atrás de mim. Só Luke conseguia ter um tom que parecia estar sempre sorrindo.

Mas espera aí. O quê diabos Lucas Valois D’Orleans estava fazendo mais uma vez na livraria? Meu estômago completou um looping só de pensar.

— A dica é: o cara mais talentoso de toda Nova Iorque.

— De toda Nova Iorque? A dica deveria ser o garoto mais convencido de toda Nova Iorque, senhor Lucas.

Comecei a rir e me virei para o espevitado ruivinho e seu sorriso largo. Ele logo apoiou as mãos na cintura, tentando parecer chateado.

— Foi muito fácil, Kate. Eu não deveria te dar dicas.

— Quem sabe em uma próxima vez, Luke. E tente não comer doces antes de colocar as mãos no rosto de alguém.

— Eram marshmellows. Não deu pra resistir.

Ele logo se pendurou na estante central onde eu estava colocando os livros novos e ficou quieto de repente, me assistindo trabalhar. De alguma forma esquisita aqueles olhos dele me incomodavam exatamente como o demônio que ele chamava de irmão, quando resolveu ficar me observando ao invés de dizer qualquer coisa.

Ah, a agonia!

— Eu posso te ajudar, Luke? Você está procurando por algum livro novo?

— Oh, não. Eu vim me despedir de você.

— Se despedir? — ficava triste ou feliz com a notícia? — Está indo embora de Nova Iorque?

Ele assentiu, fazendo um biquinho sentimental e piorando infinitos níveis em sua expressão de cachorrinho abandonado. Céus, ele sabia como amolecer um coração.

— E você volta para cá em breve? Pelo menos pra me visitar?

— Não sei ainda, Kate. Mas podemos nos falar pelo celular, não é? Ou pela internet. Carta. Telegrama. O que você quiser, porém...

— O quê?

Katerina, quando você vai aprender a não dar corda para as frases não finalizadas das outras pessoas?

— Você está me devendo um jantar, Kate!

Aquele momento de flashback atingiu a minha cabeça como um dardo. Não conseguia me lembrar de qual momento a promessa de um jantar com Lucas havia sido feita. O maior problema é que minha memória costuma ser boa e obviamente fui traída por ela, me lembrando do convite que Luke fez nos bastidores do teatro após sua apresentação.

Porque eu nunca aprendo a manter minha boca fechada?

— Bem, nós podemos marcar, Luke. Quando você vai embora da cidade?

— Amanhã.

— Amanhã?

— É. O voo sai depois do almoço. Então você tem que aceitar o jantar hoje, Kate. Prometo que não deixo Leo te importunar demais.

Oh, minha nossa. Leo... Próspero... Estava incluído no pacote do jantar?

— Caramba, Luke, eu não posso aceitar.

— Não pode? Por quê?

Porque o destino era um tremendo safado que vivia jogando dados comigo e ganhando todas as rodadas e curtindo rir da vida às minhas custas? Era muito complexo para explicar isso tudo em frases simples.

— Eu tenho um jantar marcado hoje, Luke. Meu pai vem me ver e vamos passar algum tempo juntos depois de um bom tempo que não o vejo.

— Oh... — ele pareceu desapontado. Não havia notado que Lucas estava arrumado para uma ocasião, com uma camisa lilás por baixo de um casaco cinza muito elegante. Sua juba vermelha até estava um pouco domada, mesmo com a chuvinha lá fora. — Vocês vão jantar onde?

— No Babillon, perto do Central Park. Você conhece?

— Não. Eles servem bolo?

— Acho que sim. Eles têm alguns sanduiches muito bons. Você iria gostar do lugar, combina bem com você com todas as cores e a decoração alegre.

Luke mordeu os lábios e mexeu com alguns livros. Parecia frustrado, mesmo dando um sorrisinho vez ou outra. Estava começando a me sentir seriamente culpada por não ter ligado para Samantha no dia anterior ao invés de fazer um interurbano para o Sr. Dalton.

— Luke, eu adoraria mesmo poder aceitar.

— Tudo bem, Kate. Eu volto pra cobrar o jantar — ele piscou, um pouco mais animado e atravessou o corredor pra me abraçar de supetão.

Enquanto Lucas me dava aquele abraço apertado de despedida, tive tempo de formular uma questão que não pareceu muito relevante, mas que quase saiu pela minha boca sem querer: Próspero iria embora com ele?

Por sorte consegui me segurar.

— Foi muito bom te conhecer, Luke. Todo sucesso do mundo para você com seu violino e volte para Nova Iorque para fazer uma apresentação solo! Quero um convite na primeira fila, viu?

— Pode deixar, Kate. Eu realmente gostei muito de te conhecer também.

O ruivinho me abraçou de novo e rimos juntos antes dele correr para procurar Samantha entre as prateleiras e se despedir dela e depois de Lex no meio dos caixas. Parecia bem mais satisfeito quando terminaram todas suas despedidas e passou por mim com aquele jeito engraçado, caminhando para as portas.

Só então notei que o Carma estava ali esperando por ele.

Usava um casaco de tweed diferente naquele fim de tarde, em um tom de azul que deixava seus olhos visíveis mesmo com a distância. A chuva tinha molhado seus sapatos e a barra de suas calças impecáveis, mas ele não parecia chateado com aquilo. Trocou apenas algumas palavras com Luke e olhou na minha direção brevemente, fazendo um gesto com o queixo que se aproximava vagamente de um cumprimento. Retribuí.

— Não vai se despedir do seu Carma, Branquela? — Sam surgiu do meu lado rindo, abraçando meu ombro e sobressaltando meu coração. — Pode ser sua última chance.

— Ele vai arranjar outra atendente para azucrinar lá na Europa. E azar o dela.

Mostrei a língua para Sam e rimos juntas. Mas ela sabia que eu não pensava aquilo e eu sabia que ela estava certa. Droga.

Samantha caminhou comigo até a calçada como fazíamos todos os dias no fim do expediente, um pouco mais silenciosas do que de costume e compartilhando o espaço embaixo do meu guarda chuva transparente. A chuvinha pelo jeito duraria a noite toda, o que era melhor do que aquela tempestade torrencial do início do fim de semana. Sam parecia cansada.

Nos despedimos rapidamente, ela reclamando de dor nos pés e muita fome (capaz de comer três hambúrgueres gigantescos sozinha) e eu ansiosa pelo meu jantar. Claro que Sam me desejou boa sorte com meu pai e deu alguns conselhos para não o deixar voltar ao assunto do casamento em nenhum momento. Ela não deixaria a ocasião passar.

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Ajeitei minha bolsa de lado e apertei o passo para fazer aquela caminhada até o Babillon. Mandei uma mensagem para meu pai no caminho e recebi uma fileira de emoticons como resposta animada pela minha quase chegada.

“Já reservei nossa mesa. É bem ao lado da porta e na janela. Você vai gostar”, ele respondeu em seguida. Foi minha vez de mandar emoticons sorridentes.

Estava me aproximando do lugar quando senti uma pontada na espinha. Parecia um pressentimento, uma coisa ruim que subia pela coluna e descia até meu dedinho. Não tinha uma descrição melhor para aquele nó na garganta esquisito. Devia ser toda a ansiedade.

O Babillon Garden & Caffe era muito fácil de encontrar naquele quarteirão pequeno. Um predinho de três andares apertado entre outros prédios, mas decorado com janelas roxas e portas verdes. Em cada canto vasos cheios de temperos e flores, cadeiras do lado de fora cobertas por grandes guarda sóis. Um recanto longe do mundo caótico da cidade.

Me apertei entre o montante de pessoas que estavam se preparando para atravessar a rua que levava até lá e já me erguia na ponta dos pés para tentar enxergar meu pai pelas grandes vitrines do restaurante.

Não sei se foi uma boa escolha. Talvez eu preferisse não ter visto aquilo.

Kennedy Dalton estava sentado na primeira mesinha verde dentro do Babillon terminando de digitar alguma coisa em seu celular. As mesas estavam cheias, pessoas no horário de saída, famintas e sorridentes ao seu redor. De repente ele pareceu localizar alguém dentro do recinto e ficou em pé, deixando o celular sobre a mesa para cumprimentar quem conhecia.

Meu pai estava apertando a mão de um homem que qualquer um reconheceria à distância: Bruce Campbell.

Fiquei estática do outro lado da calçada, entre o vai e vem dos carros e o Babillon Garden & Caffe com suas cores vibrantes e luzinhas sobre as mesas da calçada. Meus olhos estavam embaçados com a vontade de chorar. Não era tristeza, era raiva.

O senhor Kennedy James Dalton estava me subestimando mais uma vez, me fazendo de “ratinha” no jogo sujo entre gatos. A presença de Bruce no restaurante, a forma com que se cumprimentaram entusiasticamente e sorriam um para o outro com grande intimidade, apenas arrepiava mais a minha nuca como uma eletricidade. Era um claro aviso de “Katerina, você é uma tremenda idiota e não pode confiar nem mesmo no seu pai. Parabéns”.

Para ajudar um pouco mais, gotas pesadas voltavam a cair do céu. Aquele clima estava tão deprimente quanto a minha própria situação. Uma combinação perfeita.

Apertei a alça de couro da minha bolsa com força e inspirei todo o ar frio daquele começo de noite antes de alguém esbarrar no meu ombro entre os tantos pedestres que passavam como se eu fosse invisível. Eu me sentia assim. Uma reles peça num jogo de adultos endinheirados.

— “Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são”, não concorda? — citou o homem parado ao meu lado quando o sinal de pedestres tornou a fechar.

— Shakespeare.

Ergui os olhos e funguei para manter meu choro dentro do corpo, observando que o Carma estava há dois passos de mim, as mãos metidas dentro dos bolsos de seu casaco de tweed azul, os olhos apertados assistindo a mesma cena que eu via dentro do restaurante. Olhei rapidamente ao redor e na rua paralela um carro estava parado com os faróis acessos, com Collins ao volante aguardando enquanto Luke sorria da janela, debruçado como um cãozinho tomando vento.

— Próspero...

— Lucas acreditou que você gostaria de mais companhia em seu jantar, senhorita Dalton. Mesmo que eu seja visivelmente contra a intromissão ridícula em sua programação familiar.

O herói improvável ataca novamente. Pela quarta vez.

— Me responde uma questão, Sr. Valois?

— Se não for uma pergunta redundante, estúpida e completamente desnecessária, vá em frente, senhorita Dalton.

— Sir Shakespeare tem alguma palavra sobre desapontamentos?

— Milhares. Tragédias eram seu forte, senhorita Dalton.

— Alguma que caberia na minha situação?

Encontramos nossos olhares e por um momento, o Carma pareceu revirar os arquivos engavetados dentro de sua mente em busca de uma fala que casasse perfeitamente com a minha vida azarada e destino cruel. Sua sobrancelha se arqueou como costume e culminou em um profundo respirar. Eu podia imaginar perfeitamente seus dedos tamborilando dentro dos bolsos do casaco.

— “Ainda não é o pior, enquanto pudermos dizer “Isto é o pior”.

— Não é muito animador, não acha?

— A senhorita não pediu algo animador. Pediu algo trágico. Sobre desapontamentos.

Foi minha vez de suspirar e olhamos juntos para o restaurante onde meu pai e Bruce olhavam o cardápio e vez ou outra consultavam seus relógios possivelmente pensando onde eu teria me metido.

— O convite para o jantar ainda está valendo?

— Creio que inevitavelmente sim.

— E foi por isso que o senhor veio até aqui sozinho?

— Também creio que sim. Além de uma dose extra de aborrecimentos que Lucas fez questão de causar desde que saímos da livraria e tivemos de procurar o restaurante onde a senhorita havia marcado seu jantar. E devo dizer que a culpa desse infortúnio é toda sua, senhorita Dalton.

A resposta de Próspero me fez sorrir, mesmo que algumas lágrimas teimassem em escorrer nas minhas bochechas.

— Eu aceito essa culpa de bom grado, Sr. Valois. De muito bom grado.