Da cabeça aos pés

Cada coisinha que eu faço

Nossa, eu estou me sentindo tão legal

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Nossa, estou me sentindo tão legal!

COOL, Jonas Brothers.

Pietr ajeitou o jaleco com toda calma e cinismo que emanava de sua alma. A pouca compaixão dos Benoit ficou toda com Louna, sua irmã gêmea. Para ele, só sobrou uma pilha de cabelos ruivos e hiperatividade que ele dava graças a Deus poder extravasar na faculdade.

Apesar de não encontrar dificuldades em enfrentar um grande público – certo, eram apenas 50 calouros, mas ainda assim –, Pietr tinha uma dificuldade absurda em manter-se sério. Contrariamente, toda a seriedade dos Benoit ficou com Louna, ao passo que os poucos sorrisos sinceros que a família ofertava vieram de bandeja para o irmão.

Portanto, ao ajeitar o jaleco e virar-se para o público que o olhava impressionado, Pietr não pode segurar o sorriso de escárnio que lançou para o voluntário que o aguardava.

Certo, voluntário que foi coagido a fazer parte da demonstração. Adrien, seu melhor amigo, lhe devia uma. Não que Pietr fosse do tipo de amigo que cobra favores, no entanto era um caso de extrema urgência. A universidade organizou um seminário de química forense, e era para Pietr ser apenas um aluno aprendendo mais sobre tudo que havia de bom no mundo dos mortos. Porém, um dos palestrantes havia desmarcado de última hora.

Nessas horas Pietr quase se arrependia de empenhar-se tanto nas matérias a ponto de ser considerado um dos melhores na classe. E nessas horas, também, Pietr não se arrependia nem um pouco de ter dito a Adrien que ser o cadáver de demonstração seria “muito legal, você vai ver”.

Talvez Pietr tivesse o comprado com os pontos extras na matéria que Adrien estava com menos vantagem.

Talvez tivesse abusado da lealdade ferrenha de Adrien.

Mas ao ver seu sorriso e o olhar de completa expectativa dos calouros...

Pietr só sabia sorrir.

— Sejam muito bem-vindos, alunos do primeiro ano — pronunciou Pietr em seu melhor tom de Alvo Dumbledore que lhe veio à mente. Ou teria sido a Minerva a dizer a frase icônica? Ah, deixe quieto. — Imagino que já tenham lido o cronograma, porém o sr. Hargrove não pode comparecer.

Um muxoxo contagiou a “plateia”, o que fez com que Pietr abanasse uma mão gentilmente diante de si.

— Apesar disso, sou um de seus alunos e farei meu melhor para imitá-lo. Perdoem-me por não ter deixado um bigode crescer, mas é que bigodes ruivos...

Ele deixou a frase no ar, quebrando o gelo entre seus interlocutores. Adrien sorriu. Os estudantes riram.

Tudo estava perfeito, até o momento.

— Para nossa demonstração, eu gostaria de chamar para o palco meu assistente, que felizmente está vivo — em seguida, Pietr fez um gesto teatral para o “assistente”. Adrien arriscou-se a sorrir, apesar da piada com seu estado de vida aparentemente inconveniente. — Obrigado. Se desejarem fazer perguntas, levantem a mão. Assim que possível, irei chamá-los. Lembrem-se de que todos estão aqui para aprender: eu e vocês.

Adrien pareceu comovido com a fala do amigo. Ou isso ou a maca deveria estar um gelo e ele estava sendo educado o suficiente para disfarçar a cara de desgosto. Desta vez, foi um absurdo de difícil manter-se sério.

Apesar de saber que a demonstração prática ficaria mais para o final. Pietr esqueceu-se disso por completo em meio ao nervosismo da tarefa.

Sua palestra decorreu-se com sucesso relativo com o auxílio de seus rascunhos: partiu dos casos de Mary Blandy e Gustave Fougnies, passou para a essência do ramo – científica e humanística trabalhando em conjunto – e para a importância da análise de substâncias e materiais até que se chegassem às provas conclusivas tanto para o bem quanto para o mal. Quando enfim recordou-se de Adrien, em seu resumo de tanatologia e asfixiologia, já tinha respondido as questões de toxicologia.

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Ao chegar próximo a Adrien, teve de afastar o microfone em tempo recorde, porquanto que Adrien – deitado imóvel na maca havia... Quanto tempo? Uma hora? Mais? – murmurou num tom de voz perigosamente calma:

— Seu cretino. Eu vou matá­-lo.

— Ótimo. Daí terá um cadáver literal para os legistas analisarem no outro setor — Pietr sorriu como a criatura atentada que era. — Me perdoe... Eu me esqueci de você...

— Ah, eu vou me esquecer de que você existe depois que recobrar a coluna que já foi para o saco, Pietr Benoit.

Pietr gargalhou com maldade, retomando o microfone com toda graça e carisma que lhe foram incumbidos por força maiores. Daí, ele sorriu para a plateia que o aguardava retomar seu monólogo interativo.

— Pois bem. Vamos começar com a Oração ao Cadáver Desconhecido. Alguém gostaria de recitá-la para nós?

Adrien espiou de rabo de olho enquanto algumas mãos entusiasmadas erguiam-se para contribuir com a morbidez toda. No entanto, a curiosidade de Adrien foi desperta quando uma voz firme entoou o que parecia ser um poema. Tratava-se de um agradecimento e um pedido de licença ao corpo que já tinha abrigado uma vida.

Pietr aguardou até que o calouro terminasse. Então, com uma reverência profunda, ergueu seu bisturi imaginário.

— Muito bem. Vamos começar.

Mais tarde, enquanto os dois almoçavam no dormitório que compartilhavam, Adrien abordou-o com surpresa:

— Nunca pensei que a anatomia poderia ser poética daquele jeito...

— O que, pensou que os poetas já tinham gastado toda sua saliva com as estrelas, senhor Thomas?

Adrien gargalhou, o que não era típico do amigo. Pietr parabenizou-se mentalmente pelo feito histórico. Ele e Louna combinariam se fossem apresentados... Quer dizer, não que ele bancasse o casamenteiro. O relacionamento com Marla tinha terminado por culpa dele. Não tinha muito que opinar. Apesar de o pensamento ter voado longe, ele continuou a prestar atenção ao que Adrien dizia.

— Não é isso. É só que... Ah, há poesia em tudo. Carl Sagan disse que somos feitos de...

— Poeira de estrelas, sim — Pietr sorriu nostálgico. Aquela era sua citação favorita desde seus quinze anos de idade. — Química, anatomia, astronomia e poesia têm seus pontos em comum, viu só?

— É... Excepcional... Foi excepcional.

Quem ouvisse Adrien balbuciando as palavras poderia julgar que ele estava sendo sarcástico. No entanto, Pietr absorveu o elogio “como uma supernova”, como diria Adrien. Sorrindo, Pietr mirou o varal de fotos penduradas na parede adjacente com um sorriso sonhador.

— Se tivesse dito “fantástico”, eu começaria a chamá-lo de Doutor.

Adrien grunhiu mal-humorado, de brincadeira.

— Ah, saia daqui com suas referências à cultura pop, Benoit. Já lhe disse que isso é coisa do Caleb, não minha.

— Sei bem qual é sua coisa, Adrien Thomas.

Mais uma vez, Pietr parabenizou-se por constranger o amigo com apenas uma breve menção de sua irmã. Fosse qual fosse o problema, Adrien certamente era o mais dado a romances.

Está certo. Talvez Pietr começasse a bancar o casamenteiro daqui para frente.