Aconteceu numa tarde de cinco de março, no quarto do hospital Saint Ageli. Garfield ainda estava no trabalho, como sempre, por isso dirigiu até lá assim que fora informado do ocorrido. O velho Steve estava mais branco e pálido do que da última vez.

Gar segurava o volante frouxamente, enquanto manobrava o carro com as luzes apagadas. O céu sobre o porto tinha a cor de uma televisão sintonizada fora do ar. Umas últimas pedrinhas de cascalho se desprenderam dos pneus e então o silêncio o envolveu soturnamente, como a noite que caía aos poucos sobre o azul imenso do mar.

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Levou um instante para perceber o ruído externo dos carros que passavam velozmente na avenida costeira. O interior do veículo era desbotado, porém limpo.

[...]

"Foi bem rápido, acho que ele não sofreu muito", dissera a enfermeira, uma mulata magra com o rosto indiferente das pessoas que vivem do sofrimento dos outros. Ela estava aplicando o medicamento, quando percebeu que o rosto do paciente começava a ficar tranquilo, mas isso não contou ao Garfield.

"Ele teve uma boa vida", limitou-se a responder. Na última vez que havia visitado o velho Steve, não esquecera da cena: ele, com os olhos alertas, olhava a claridade que vinha da janela. Queria dormir, mas supunha que se ficasse acordado a morte não o surpreenderia. Às vezes não bastava ficar de olho aberto para se manter vivo.

Quando a enfermeira saiu, Gar segurou na mão do velho, e torceu a boca em desgosto, como fazia quando alguma coisa o desagradava. Os braços do moribundo estavam roxos das porcarias que as enfermeiras tentavam enfiar-lhe no corpo e que escapavam das veias como as águas saem dos esgotos nas enxurradas. Virou as palmas das mãos descoradas, e ali estavam os calos amarelos, duros, como escamas de peixe. Descanse em paz, Steve. Deus o tenha.

Na saída, avisou Rita do enterro ─ o velho gostava muito dela. Não conseguiu avisar o irmão desta, não sabia onde ele estava.

[...]

Havia um par de palmeiras verdes em miniatura pendurado no espelho retrovisor. Garfield mirou seu reflexo: o rosto impassível, os olhos inexpressivos mostravam uma tímida olheira cansada abaixo da pálpebra inferior. Trabalho. Precisava cortar o cabelo, anotou mentalmente. Aparar um pouco. Em seguida, deixou a bolsa de tecido no assento do carona e se mexeu lentamente.

[...]

A ajudante Tassi serviu o prato ainda no balcão de granito. Bananas assadas com canela e calda açucarada de manga e coco ralado. O cheiro era delicioso ─ um aroma doce que lembravam muitas coisas boas. Pegou o prato e tomou lugar à só numa mesa vaga de tampo amadeirada, ao pé da janela. Comer e contemplar o mar: duas das três coisas que mais gostava de fazer. Houve um tempo em que se interessou muito por surfar.

Levou uma garfada generosa à boca. O sabor da banana se imiscuía à manga caramelizada, levemente realçada pelo farelo crocante do coco queimado. Lá fora, burguesinhas praticavam cooper na calçada quadriculada, enquanto a cor azul do mar adquiria uma tonalidade escura, à medida que anoitecia. Garfield lembrou-se nostálgico do tempo em que Steve jogava tênis, dirigia velozmente seu automóvel e as mulheres faziam charme para ver se ele as comia. Mas isso fazia um bom par de anos, e a lembrança não causou nenhuma sombra de mudança em seu rosto impassível.

[...]

Tassi havia ficado levemente corada quando seus olhares se cruzaram. Esperta, fingiu estar fazendo qualquer coisa para ele não achar que ela o observava-o. Era difícil saber a idade dela, provavelmente uma menina ainda. Ele a chamou novamente. Pediu uma água porque "suco numa doceria dava mais sede". Ela riu, e Gar notou que seu sorriso produzia duas covinhas em seu rosto.

"Só um minutinho", disse Tassi, atravessando o balcão na direção da geladeira vitrine. Um corpo bonito andando de um jeito gracioso.

[...]

Eram por volta das dezoito horas. Da doceria, Garfield fora para a casa de Tara. Ela estava cozinhando um macarrão. E teve de incrementar acompanhamentos devido à visita inesperada.

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"Você tem pintado alguma coisa?", ele perguntou.

"Você sabe que a arte acabou."

Um ruflar de asas bate na janela em vôo rasante e escapa noite adentro. Não dá tempo de saber se é um pássaro ou um morcego.

"Em todo o Louvre, só escapa a Vênus de Milo. O resto é lixo", brincou ele, e soltou um riso debochado, mostrando até os caninos de sua arcada inferior. Depois voltou a ficar impassível, quieto como um cachorro velho, olhando-a cozinhar o macarrão. Aromas de queijo e molho de carne se desprendiam no ambiente.

"Estou sentindo muita fome. A morte de Steve me deu muita fome." E também me fez descobrir duas coisas: que eu estou vivo e que isso não vai durar pra sempre, pensou, porém resolveu não parecer desagradável.

"Você está com fome?", perguntou Tara.

"E com tesão também", falou. Neste momento, ele estava pensando em Tassi. Sonhos de indecência.

Tara virou-se e ficou olhando-o engraçada. Sonhos de aventura.

"Atenção para o macarrão", Garfield disse.

Comeram. Ele tirou a camisa e ela grudou em seu corpo. Ficaram algum tempo se beijando.

"Você ficou pensando em mim esse tempo todo?", Tara perguntou.

"Fiquei", respondeu beijando a orelha da garota.

Garfield tirou a blusa dela com urgência. "Vamos para o quarto", disse ela. Beijaram-se mais, pernas entrelaçadas. Ele sentia a umidade.

"Vem, vem", pediu Tara. Ele não reagiu.

"O que foi?"

[...]

Na primeira oportunidade, Gar vestiu sua roupa. Tara colocou um roupão, embaraçada.

"Que coisa...", falou desanimado.

"Pelo menos espero que o jantar tenha sido do seu agrado."

O macarrão estava uma delícia. O vinho que Tara serviu também estava muito bom. Gar acendeu um cigarro, e ambos ficaram calados algum tempo.

"O que você está pensando? Duvido que diga".

"Em nada. Acho que sou o único sujeito do mundo capaz de ficar absolutamente sem pensar. A cabeça vazia. Como se estivesse morto."

Gar pensava em Tassiana. Pensava em Steve e sentia vontade de chorar.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.