Há momentos em nossa vida em que não fazemos a menor ideia do que sentimos. Aquele, sem dúvida, fora um desses momentos.

Na noite anterior, eu simplesmente não soube como raciocinar. Não devia ter feito o que fiz e os olhos furiosos, ressentidos e banhados de lágrimas de Anna me provaram isso. Não consegui dormir naquela noite e muito menos prestar atenção em qualquer coisa pelo resto do dia. Eu tinha de falar com ela e tentar, ao menos, explicar o pouco que entendia de meus sentimentos. Não conseguiria ficar bem sabendo que não teria suas conversas pelas manhãs ou, ao menos sua companhia, mesmo que silenciosa, que sempre preenchia meus piores momentos.

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Quando cheguei em seu quarto naquela noite e saltei por sua janela, exatamente como havia feito por tantos anos, e olhei em seus olhos, fui completamente despedaçado. Fora, talvez, uma das primeiras vezes que não consegui realmente interpretá-los, mas conseguia ver a tristeza neles de forma clara. Isso certamente não me ajudou. Eu precisava que ela me escutasse, precisava consertar aquilo e precisava desesperadamente de minha melhor amiga de volta. Eu já sabia que aquele último seria bem mais difícil, mas tinha que manter as esperanças. Não poderia e não iria perdê-la dessa forma.

Comecei a falar logo que pisei no chão, antes que ela me interrompesse.

— Anna, por favor, não me expulse daqui. Nós temos que conversar.

Seus olhos, que antes me fitavam, vacilaram para o chão e Anna deu um leve suspiro antes que me encarasse novamente e dissesse:

— Sim, temos.

Não me movi por alguns segundos. Ainda pensava no que dizer. Então, depois de um pequeno pigarro, comecei.

— Eu sei que você está com raiva de mim – falei, com cuidado –, e tem razão em estar.

— Não é apenas raiva, Peter. – Anna resmungou, olhando para suas mãos e, logo depois, diretamente para mim, aumentando aos poucos seu tom de voz – Sim, eu estou sentindo raiva, mas além disso, estou confusa, decepcionada e não faço ideia do que está acontecendo. – deu uma pequena pausa e acrescentou – Eu preciso que você me explique.

ー Eu não sei como te explicar. ー declarei, depois de pensar em uma explicação pela centésima vez e falhar novamente ー Mas eu posso te garantir que não é o que você pensa.

ー E o que, de acordo com você, eu penso, Peter? ー retrucou rapidamente

ー Que o que aconteceu ontem foi apenas um capricho ou que te trato como apenas mais uma, como você mesma disse ontem.

ー Bom, parece que você já disse tudo…

ー Mas acontece que não é isso. Eu não sei exatamente o que estou sentindo e não faço ideia de quando ou como começou ー comecei a cuspir as palavras sem parar ー, mas aconteceu e eu não consigo simplesmente desligar isso dentro de mim. Eu não devia tê-la beijado daquela forma, eu sei. Mas eu simplesmente não pude me segurar. E agora, não posso voltar no tempo e mudar o que aconteceu. ー acabei sendo mais sincero do que pensava que seria.

Anna permanecia na mesma posição e tinha um olhar confuso e penetrante direcionado a mim. Abriu a boca para falar algumas vezes até que finalmente perguntou:

ー Então você ainda não sabe o que sente por mim? ー Assenti com a cabeça ー E você ainda não consegue entender o quão egoísta isso o mostra? ー Não consegui entender o que uma coisa tinha a ver com a outra, então simplesmente franzi a testa e a olhei com um “o que?” estampado nos olhos até que ela continuou ー Você acabou de me dizer que não entende seus sentimentos, Peter. Isso pode significar absolutamente qualquer coisa. Você sacrificou a nossa amizade por um sentimento que, até onde sabemos, pode não significar nada! Isso é o que realmente me magoa. ー disse com um início de choro aparecendo em seus olhos e respirando, para, então, continuar ー Além de não ter se preocupado nem um pouco com o que eu sinto.

ー Eu me preocupo muito com o que sente. Talvez até mais do que deveria...

ー Não é o que parece.

ー Mas é a verdade. Por Deus, Anna, você é uma das pessoas mais importantes da minha vida desde que me lembro e sabe disso.

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Não conseguia pensar em nenhum momento desde que conheci Anna em que ela não fosse especial para mim. Acho que a partir do momento em que a conheci, se tornou alguém com um espaço único em meu coração. Fez-se um silêncio por um momento. Anna olhava para baixo e seus cabelos, que estavam soltos, lhe cobriam parte do rosto. Parecia refletir sobre algo, até que falou quase que num sussurro sem sair de sua posição.

ー Eu sei. ー soltou um pequeno sussurro ー Você também sempre foi importante para mim. ー Pensou por uns segundos antes de concluir ー É meu melhor amigo.

ー Por favor, me diga que vai tentar me perdoar. Não vou suportar a mim mesmo sabendo que me odeia.

ー Eu não te odeio, Peter. ー respondeu já olhando em meus olhos ー Acho que não conseguiria…

Seu rosto demonstrava sinceridade e já não parecia tão fechado como antes. Imediatamente, uma esperança surgiu dentro de mim.

ー Por favor, me perdoe. Eu te prometo que isso não vai...

Não fui capaz de terminar antes que ela me cortasse.

ー Peter, eu…ーfez uma pequena pausa olhando para seus dedos novamenteー Eu vou tentar. Mas sinceramente, não posso simplesmente apagar o que aconteceu da minha mente.

Seus movimentos demonstravam certa agonia e desconforto. Eu queria abraçá-la, dizer que tudo ia ficar bem e desejava imensamente que pudesse apagar a última noite de sua mente. Não, eu não poderia apagá-la da minha própria. Por mais que tenha sido uma atitude extremamente estúpida, jamais poderia esquecer daquele beijo. Foi rápido e estranho, mas foi naquele momento que percebi que havia esperado aquilo por muito tempo.

ー Preciso de um tempo. ー continuou ー Preciso absorver isso. Mas não posso continuar tendo raiva de você…

ー Certo. Te darei o tempo que precisar.

Continuamos em silêncio por alguns segundos. Anna meneava seus olhos, ainda confusos, entre mim e o chão.

ー Acho que é melhor eu ir. Alguém pode aparecer. ー ela apenas consentiu com a cabeça ー Bom… Boa noite.

Ainda sem jeito, me virei e caminhei até a janela. Ouvi um pequeno murmúrio que me soava como um “boa noite” e saltei sem mais cerimônias. Não olhei para trás depois disso. Sabia que Anna estaria naquela mesma posição de antes de minha saída e não queria deixá-la mais desconfortável do que já estava.

O caminho até meu quarto foi bastante silencioso. Tentei conter ao máximo meus pensamentos. Não queria raciocinar, pois sabia que nada seria como era antes. Eu não iria até o quarto de Anna na manhã seguinte e não receberia minha dose diária de risadas e entusiasmo. Ela não faria contato visual se me encontrasse pelo palácio. Não iríamos contar sobre nosso dia um ao outro no jardim ao pôr do sol. Não. Eu não devia pensar nisso. Além do mais, era o mínimo que eu merecia depois do que fiz.

Cheguei em meu quarto e me direcionei à minha cama sem olhar para os lados. Algo que eu deveria ter feito pois levei um susto ao ver Archie saindo de uma das poltronas e indo em minha direção..

ー Meu Deus, Archie. Aparentemente você entrar em meu quarto e me esperar se tornou um costume. O que faz aqui?

ー Precisamos conversar. ーDeclarou enquanto se aproximava saindo das sombras e sendo iluminado aos poucos pelos candelabros acesos.

ー Sei que você ficou longe por um tempo ーdisse em um tom zombeteiroー mas pode matar as saudades de seu irmão em um outro momento, não acha?

ー Peter, cale a boca! ーFalou em um tom não muito amistoso enquanto finalmente parou de andar a cerca de dois metros de mim. Eu estava prestes a lhe responder, mas antes que fosse capaz, ele continuou ーSei o que fez com ela.

Seu corpo estava rígido e seu maxilar apertado. Agora que estava mais perto pude, finalmente, observar a raiva estampada em seus olhos. Depois de alguns segundos sem compreender de que se tratava sua fala, finalmente entendi. Mas como ele ficara sabendo? Senti meu corpo enrijecer.

ー Do que pensa que está falando?

ー Sabe muito bem de que estou falando. O que diabos tinha na cabeça?

ー Eu não sei! ー respondi rapidamente. Simplesmente não podia mais falar daquele assunto ーEla te contou?

ー Não importa quem me contou. Você só pode ter perdido a cabeça. Ela é sua melhor amiga! Sempre foi como uma irmã, e agora você a usa para satisfazer seus desejos como uma qualquer.

A raiva já se anunciava em meu tom de voz.

ー Eu jamais faria isso. Ela é…

ー Sua amiga! ーArchie me interrompeu, gesticulando violentamente enquanto falavaー Ela não é diversão, Peter. Não é uma dessas mulheres de caráter duvidoso que você arrasta para a cama todas as noites!

ー Você não faz ideia do que está falando. Eu jamais a trataria assim! Eu estou…

ー Não ouse fingir que está apaixonado por ela. Você não faz a menor ideia do que é isso. Não vou te deixar usá-la como uma prostituta ou magoá-la ainda mais do que já fez.

Meus punhos já se cerravam. Minha paciência para conversar sobre aquilo tinha definitivamente acabado. Eu sabia muito bem o que havia feito. Sabia que Anna estava magoada e que teria muito trabalho para que as coisas voltassem a ser o que eram, se fossem mesmo voltar algum dia. Não precisava de Archie jogando tudo na minha cara naquele momento.

Nós três crescemos juntos. Archie, Anna e eu sempre estivemos lá uns para os outros. Mesmo enquanto crescíamos, eu me ocupava cada vez mais com os assuntos do reino, Archie viajava e Anna trabalhava no Palácio, sempre encontrávamos tempo para nos vermos e nunca deixávamos de nos preocupar uns com os outros. Eu e Archie, principalmente, desenvolvemos um instinto de proteção com Anna. Sabíamos todas as regras que infringimos e tudo o que Anna sofreria caso alguém descobrisse sobre sua relação conosco.

Toda a situação era muito perigosa para ela. Nós tivemos que nos infiltrar em muitos ambientes e subornar muitos guardas para conseguir um espaço seguro no jardim e uma rota segura de uma das janelas de minha biblioteca particular até o quarto de Anna. Juntamente com nossa mãe, fizemos dela uma de suas empregadas pessoais, para que não fosse obrigada a ter contato com os outros nobres que, certamente, tentaríam lhe tirar vantagem. E, com o tempo, ela ganharia mais espaço e se tornaria uma dama de companhia. Sabíamos que era muito raro que uma plebéia qualquer conseguisse a honra de tal cargo, mas se tivéssemos muito cuidado faríamos acontecer de forma discreta.

E naquele momento, em meu quarto, eu compreendia o fato de Archie a estar protegendo. A única coisa que não entendia era a sua raiva ou o pensamento de que eu faria algum mal a Anna para satisfazer meus desejos.

ー Não estou a usando e muito menos tratando-a como uma prostituta. ー tentei falar o mais calmamente que conseguia ー E como eu já disse, você não faz a menor ideia do que está falando.

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ー Explique-me então, Peter. Explique-me porque você a beijou sem que ela permitisse.ー ele chegava mais perto e apontava seu dedo para mim. Seu punho estava cerrado e seus olhos ferozes me encaravam. ー Explique-me porque eu tive que assisti-la chorar por causa do que você fez. Explique-me como exatamente, você não a usou. Porque, você sabia muito bem. Sabia que ela não sentia nada por você. Sabia que ela não estava esperando por aquilo. E você aproveitou sim a oportunidade para fazer o que queria. Para satisfazer seja lá qual foi o sentimento que você acha que sente. ー Archie fez uma pausa olhando diretamente para mim. Seu rosto impassível e duro. ー Não vou deixar que a machuque novamente. E não acredito que você tenha feito ela se sentir assim.

Ele dava meia volta e se direcionava para a porta. Passos decididos e firmes. Eu ainda repassava o diálogo em minha mente, percebendo que não havia resposta para o que ele acabara de dizer. Nunca me achei um mestre na oratória, mas na maioria das vezes, conseguia formular uma frase inteligente para finalizar uma discussão. Aparentemente essa situação havia me arrancado as palavras. Ou o simples fato de estar errado havia me arrancado os argumentos.

Antes passar pela porta Archie me direcionou um último olhar e as últimas palavras.

ー Você se tornará o rei, Peter. Já passou da hora de começar a pensar antes de agir.