O Peregrino

Capítulo XIII


O Peregrino

Capítulo XIII

Taki no Kuni (País da Cachoeira), dias atuais.

Em minha primeira noite na vila de Imagawa não fiz muitos progressos com as minhas investigações.

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Percorri as velhas casinhas de madeira sob um luar embaciado e com o sopro constante do vento trespassando meu manto e persistentemente afastando o capuz dos meus olhos.

Escalei uma ravina mais adiante com as solas dos meus pés envoltas em chakra e, uma vez lá em cima, mirei todo o terreno abaixo de mim.

Meu Sharingan memorizou rapidamente os traçados de cada estrada ou trilha sinuosa, pontilhada entre os outeiros; a linha irregular da copa das árvores e cada curva estreita do rio que corria logo adiante. Podia ouvir distantemente o murmúrio das águas ao seguirem o seu curso no leito cheio.

Ousei arriscar-me um pouco, calando o sussurro dos meus passos nas rochas enquanto percorria todo o perímetro da aldeia e mais além. Seria bom conhecer o território para o caso de qualquer eventualidade.

Senti o olhar vigilante da lua sobre a minha nuca todo o tempo e meu humor arisco não arrefeceu com o lento rastejar das horas à medida que a noite serena se tornava madrugada.

Em certo ponto, decidi me abrigar do vento impetuoso, sentando-me entre duas rochas. Encontrei meus pensamentos anormalmente calmos, a despeito das circunstâncias e para ser franco não sei quanto tempo exatamente desperdicei ali.

Olhei as estrelas e a fatia fina de lua enquanto eram teimosamente encobertas no céu nuvioso. A noite estava tão silenciosa que temi ser descoberto se realizasse o menor movimento, se ao menos inspirasse o ar depressa demais. Por isso meus gestos estavam contidos, carregados de uma desconfiança aguda e puramente instintiva.

Imagawa não me parecia agora nada mais do que um lapso no tempo, um pedaço de terra insignificante e esquecido até mesmo pelos deuses. Não me baseei apenas na ausência das novas tecnologias que surgiam nos quatro cantos do mundo ou no estilo de vida simplista e bucólico de seus habitantes, mas porque cada polegada daquele solo exalava persistentemente uma sensação de abandono, de desamparo.

E a questão que martelava dentro do meu cerne empedernido era por que Sakura aceitara essa missão. Mas é claro, cuidar de pessoas em um lugar tão encarecido de recursos, ainda que isso resultasse em se expor ao perigo era exatamente o que ela faria. Às vezes eu a condenava por essa sua faceta tão perigosamente compassiva que ela já mostrara mesmo ante a um inimigo.

E é claro que apenas uma pessoa tão completamente capaz de se doar ao próximo poderia ter me amado durante tanto tempo, mesmo quando tudo o que eu queria era me afastar dela e matar tudo o que ela sentia por mim. Eu fui o responsável por nos arrastar através desse ciclo doloroso.

Não era no mínimo irônico que depois de tantos anos tentando me resgatar agora estivéssemos em posições diferentes e reversas?

Com um suspiro que logo se tornou uma nuvem de vapor no ar enregelante da madrugada, eu me levantei do meu abrigo e tornei silenciosamente à velha residência de Yoshiaki. Deslizei a porta sem produzir qualquer ruído e retirei meu manto assim que atravessei o vestíbulo, abafando o som dos meus pés descalços no assoalho.

Uma vez de volta ao quarto de hóspedes, encolhi-me sob as cobertas e tive sonhos nebulosos, confusos. Mas ao fundo, no limiar da minha mente, eu suspeitava, pontilhados vermelho-carmesim fulguravam, desabrochando numa cadência fantasmagórica.

E de novo eu me encontrei em um campo tomado pelas flores dos mortos.

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— Oh, bom dia, Sasuke-san! — Naomi me saudou logo de manhã enquanto terminava de ajeitar a louça sobre a mesa para o desjejum. — Espero que tenha dormido bem. Nossas acomodações são modestas, mas bastante confortáveis.

— Eu dormi bem — respondi-a enquanto me assentava à mesa com certo desconcerto.

Não me parecia certo ainda abusar da hospitalidade de Yoshiaki e sua família, por mais conveniente que me fosse. Eu pretendia abordar o assunto justamente agora, durante o café da manhã.

Yoshiaki se sentou à mesa conosco um tempo depois, tendo chegado na companhia de sua neta que me olhou de uma forma sugestiva — a qual preferi fingir desconhecer. Comi em silêncio, vez por outra respondendo as perguntas de Yoshiaki, mas apenas porque estas me pareceram suficientemente inocentes. Perguntas como há quanto tempo eu estivera viajando, se tinha residência fixa, ou se era uma folha dançando ao vento.

— Gosto de viajar — respondi-o com naturalidade, porque descobri essa predileção só recentemente.

Minha jornada havia me levado aos quatro cantos do mundo conhecido e desconhecido, a recantos e lugarejos que jamais sonhei que existiriam. Eu descobri o mundo ao passo que descobri a mim mesmo.

— E estou na estrada há alguns anos — acrescentei com um tom categórico, deixando-o entender que não revelaria mais do que isso.

— Quanto tempo exatamente pretende ficar em Imagawa, Sasuke?

Descansei minha tigela vazia sobre a mesa, uma vez tendo terminado, e senti o olhar expectante de Ajisai sobre o meu rosto. Era desconcertante. De todo modo mantive o meu foco em Yoshiaki para respondê-lo o mais naturalmente possível.

— O tempo que for necessário para que eu possa cuidar de alguns assuntos, mas não mais do que algumas semanas, eu espero.

— Oh, compreendo — ele aquiesceu. — É bem-vindo para ficar na minha casa, você sabe.

— Eu não poderia — disse-lhe com cortesia e a frustração de Ajisai era nítida no seu suspiro incontido. — Aliás, se pudesse me informar sobre alguém que possa me alugar um quarto...

— A velha Shizuka, dos Murakami, tem um quarto vago que ela aluga para viajantes — informou-me Naomi prestativamente e eu assenti, pedindo-lhe informações a respeito da localização de sua casa.

Como último gesto de cortesia, curvei-me para o ancião Yoshiaki, dizendo-me estar grato por sua hospitalidade e gentileza. Parti em posse dos meus poucos pertences na direção de uma velha mansão localizada no centro da aldeia.

A despeito de ser cedo o bastante para que metade de seus habitantes ainda se encontrasse presos na típica condição momentânea de estupor e letargia, o sol já brilhava por trás da curvatura das montanhas, através das estalactites de gelo entre as rochas que fulguravam como joias.

Bati à porta tão logo alcancei a residência que haviam me indicado e fui recebido por uma velha senhora de olhos encovados e cujos fios grisalhos já haviam tomado toda a sua cabeça. Ela me avaliou criticamente de cima a baixo, mas não abriu mais do que uma fresta da porta de sua residência.

— Posso ajudá-lo?

— Disseram-me que você aluga quartos para viajantes.

Mais uma vez, senti seus pequenos olhos pretos sobre o meu rosto e corpo, determinando-me como um possível hóspede ou não. Acredito que uma vez que se convenceu que eu não era um baderneiro ou um falastrão, considerou a hipótese, alargando a pequena fresta de sua porta.

— Não estou acostumada a abrir minha casa para rapazes como você, mas contanto que não seja um bagunceiro, acho que podemos encontrar um consenso.

Os próximos trinta minutos se trataram apenas de nossas negociações e o informe das regras que haviam para os seus hóspedes. Eu estava de acordo com cada uma delas, de modo que não tivemos quaisquer discrepâncias quanto a isso.

Enquanto eu a seguia por um extenso e estreito corredor, contíguo a um cômodo espaçoso encerrado por shōjis que julguei se tratar da sala de jantar, tentei obter informações a respeito da estadia de Sakura.

— Há outros hóspedes agora? — indaguei plácido e Shizuka meneou a cabeça.

— Não. Como deve ter percebido, Imagawa não é um lugar muito conhecido, felizmente. Meus hóspedes são, em geral, apenas comerciantes de passagem pela aldeia, em direção às cidades maiores. Minha última hóspede foi uma garota da Folha, tão jovem quanto você.

Mantive-me impassível ante à informação e estaquei assim que ela o fez. Shizuka deslizou uma porta no fim do corredor e revelou um cômodo bem organizado e arejado, simples, mas confortável, tão impessoal quanto o quarto de hóspedes na residência de Yoshiaki.

— Você tem direito a duas refeições diárias aqui, não mais do que isso. Por um custo adicional, posso incluir o direito ao uso das fontes termais na estadia.

Assenti e em seguida ela partiu com suas passadas arrastadas, seus pés sussurrando ao tocarem o assoalho um de cada vez. Aguardei até que sua silhueta frágil desaparecesse no fim do corredor para entrar no recinto, fechando a porta comedidamente.

Avancei pelo cômodo, minuciando a pouca mobília como um armário embutido, uma cama de solteiro recostada no canto e um pequeno espelho dependurado solitariamente em uma das paredes. Boa parte do assoalho estava coberto por um carpete e as roupas de cama pareciam limpas, talvez recentemente lavadas.

Sentei sobre a cama e abri minha bolsa a fim de averiguar meus pertences. Os demais pergaminhos que Kakashi me confiara permaneciam lacrados. Ainda havia um pouco de comida, mas meu cantil estava vazio. O dinheiro eu utilizaria para pagar minha hospedagem e silenciar de vez qualquer suspeita que um dos aldeões pudesse ter sobre mim.

Devolvi os pergaminhos à bolsa, escondendo-os entre algumas peças de roupa limpa e decidi procurar por quaisquer pistas de Sakura naquele quarto.

Olhei embaixo da cama, mas só encontrei uma tênue camada de poeira. Testei as tábuas do assoalho sob o carpete, mas todas estavam firmes o bastante para me sugerir que não ocultavam nenhum segredo. Passei para o armário então, deslizando a porta, mas o encontrei completamente vazio. Apalpei as tábuas do fundo, deslizando meus dedos ao longo das bordas finas e testando a firmeza de cada placa de madeira.

Estaquei quando encontrei uma pequena saliência e, ao pressioná-la, senti a placa ceder sob o meu toque. Com cuidado para não danificá-la, desprendi-a da sua base, removendo-a completamente. Havia um espaço oco bastante estreito entre o armário e a parede, uma lacuna côncava com pouco mais de um braça de comprimento e bem estreita na largura.

Estiquei meu braço esquerdo até a fenda depois de ter constatado que era seguro. Apalpei a superfície com meus dedos até esbarrar em um objeto de material resistente, porém macio. Envolvi-o no meu punho e o puxei para fora do seu esconderijo, surpreendendo-me com o que encontrei: era uma bolsa, de alça transversal, branca.

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Eu só havia visto uma única pessoa usar uma bolsa como aquela.

— Sakura.

Mais que depressa puxei o zíper, revirando o forro da bolsa atrás de qualquer pertence dela que pudesse ter ficado para trás, mas para o meu desapontamento estava vazia, completamente vazia. Mesmo quando chequei as divisórias menores e externas, não encontrei nada.

Era estranho, refleti, amuado, sentindo-me miseravelmente fracassado. Por que Sakura se daria ao trabalho de esconder sua bolsa completamente vazia? Não fazia sentido... A não ser que outra pessoa tivesse descoberto seu esconderijo e esvaziado o conteúdo.

Cerrei meu punho quando a linha de raciocínio se tornou uma possibilidade enervantemente previsível. Com um suspiro de frustração preso entre meus lábios cerrados, ajeitei novamente a placa de madeira no seu devido lugar e cerrei a porta do armário. Mas não guardei a bolsa de Sakura, talvez eu a revirasse mais tarde novamente quando a raiva não afetasse meus sentidos e instintos.

Como sabia que ficar encerrado naquele quarto não contribuiria com as minhas investigações, resolvi caminhar pela vila, conhecer um pouco mais dos seus habitantes e tentar extrair — discretamente — mais algumas informações.

Já à porta, cruzei com a velha Shizuka que deixou claro que eu não deveria me atrasar para o almoço. Garanti que estaria de volta a tempo antes de sair para a manhã invernal de Imagawa, enrolado no meu manto e carregando minha Kusanagi comigo por via das dúvidas.

À medida que o sol se firmava alto no céu limpo e derretia o gelo que se prendera às rochas e aos caibros das residências, mais entusiasmados seus habitantes se mostravam para realizar suas tarefas.

Haviam pessoas espetando fardos de feno com suas forquilhas e amontoando-as para os seus animais no curral. Outras se ocupavam em apanhar suas ferramentas para arar o solo e cuidar das hortaliças. Cada qual desempenhava a sua função dentro do seu próprio limite.

Apesar de me sentir imensamente deslocado entre aquelas mulheres e os idosos, fiz o possível para transparecer naturalidade e até mesmo uma ínfima curiosidade inteiramente inocente, estudando o comportamento daquelas pessoas e sendo estudado na mesma proporção por seus olhares estranhados, afinal eu ainda era um estrangeiro ali.

Depois de algumas boas horas ociosamente gastas, eu cruzei com Ajisai enquanto tomava o caminho de volta para a casa de Shizuka. Ela carregava um cesto abarrotado de leguminosas tiradas recentemente da terra e me encarava timidamente, por trás das pestanas escuras, embora ainda tentasse claramente estabelecer contato visual direto comigo.

— Oh, Sasuke-san! Não esperava encontrá-lo aqui.

Inesperadamente, ela pressionou a borda do cesto de palha trançada que carregava contra o peito. Considerei suas palavras com certo aturdimento levando em conta como Imagawa era pequena e pouco habitada.

— G-gostaria de me acompanhar até em casa? Preciso levar esses legumes para a Okaa-san preparar o almoço e...

Ela corou quando eu a fitei, desviando o olhar ligeiro. Eu precisava de informações, então sabia que uma hora ou outra teria de me mostrar mais propenso a pequenas gentilezas. Com um suspiro, resignei-me àquele pequeno sacrifício. Sem lhe dizer nada, apanhei o cesto de suas mãos e o rubor em suas faces tornou-se ainda mais intenso.

— O-obrigada.

Nós rumamos na direção da residência de Yoshiaki e Ajisai, durante todo o trajeto, não conseguiu esconder o rosto corado e tampouco o olhar sonhador.

— Uma pena que não tenha podido aceitar o convite do meu Ojii-chan — ela lamentou enquanto mexia numa mecha de cabelo escuro de forma nervosa.

— Seu avô é um homem gentil, eu não poderia abusar da hospitalidade dele.

— Mas então — ela arfou e manteve os olhos pregados ao chão —, você decidiu se hospedar na velha Shizuka? Ela não é lá muito cortês.

— Ficarei aqui por pouco tempo — enfatizei com um dar de ombros casual e minhas palavras pareceram entristecê-la.

— Entendo.

Era o momento, percebi, e não deixei o ensejo escapar.

— Então, vocês não recebem muitos estrangeiros por aqui, não é?

Ajisai se mostrou desconfortável com nossa conversa pela primeira vez.

— Não, não recebemos. Só houve uma kunoichi da Folha nas últimas semanas. Mas ela não está mais aqui — acrescentou com um tom um pouco ríspido, como se de repente se sentisse acuada.

— Uma kunoichi da Folha? — soergui as sobrancelhas de um jeito inocente e ela se mostrou ainda menos propícia a compartilhar o que sabia comigo.

— É, ela esteve aqui para tratar uma doença.

— E como ela era? — persisti, arriscando-me; Ajisai bufou, pouco satisfeita.

— Como qualquer outra kunoichi para mim. Ela até que era um pouco bonita, mas nem tanto — comentou de má vontade e eu sorri internamente. — De qualquer forma ouvi dizer que elas dão péssimas esposas!

Ajisai cobriu os lábios e pareceu-me por um momento chocada com a própria audácia.

— Você sabe o nome dela? — pressionei-a novamente, para o seu óbvio desgosto.

— Hm, Sakura... Eu acho. Não tive muito contato com ela, uma vez que não fui apanhada pela enfermidade.

— E para onde ela foi?

Ajisai levou um tempo para me responder dessa vez, mas quando o fez, carregava uma expressão enigmática no rosto... Seria empatia o que eu vi nos seus olhos?

— Ninguém sabe. Ela desapareceu há algumas semanas, só a alguns quilômetros daqui. Shinobis da Folha vasculharam a região por dias, mas não encontraram o corpo dela. Já faz algum tempo que não os vejo, acho que deram as buscas por encerradas.

— E o que levou ao desaparecimento dela?

Ajisai subitamente se mostrou hostil aos meus questionamentos. Puxou o cesto de minhas mãos e forçou um sorriso indecifrável para mim.

— Desculpa, Sasuke-san. Eu preciso me apressar. Obrigada por me acompanhar.

Ela adejou as pestanas para mim assim que reassumiu sua postura de flerte, acenando energicamente ao passo que se afastava de minha figura estática e desconfiada:

— Espero vê-lo mais vezes!

Ali, tive certeza de que Ajisai tinha conhecimento de algo a respeito do desaparecimento de Sakura. Mas, por algum motivo, não queria ou não podia me revelar. Seu aparente sentimento de rivalidade com Sakura também não estava contribuindo. Eu precisava encontrar um jeito de fazê-la me contar tudo o que sabia.

Mas o que me causava um desânimo imenso era a certeza de que teria de me aproximar dela para isso. Justamente eu, que nunca soube lidar com o assédio feminino e permaneci indiferente a isso por tanto tempo — ainda o sou, francamente.

Era a única forma, entretanto, e disso eu estava convencido.

Ho no Kuni (País do Fogo), três anos antes.

— Chegamos.

Sakura anunciou sem necessidade porque, é claro, eu sabia que ela ainda morava com os pais no mesmo sobrado modesto em uma das ruas mais tranquilas de Konoha.

Eu a encarei sob o facho de luz artificial do poste de iluminação. O então verde-oliva das suas íris captava as cores cinzentas da noite e as sobrepunha. A lua ainda desbotava sua tez e o coral do seu cabelo, mas meu olhar inesperadamente se prendeu ao botão dos seus lábios, tão escuros quanto lúbricos.

Ela não pareceu reparar no meu pequeno e indevido devaneio, felizmente.

— Bem... — murmurou de súbito, mas jamais terminou a sentença.

Não era tão cedo, mas tampouco era tão tarde e Sakura parecia indecisa sobre me fazer um convite para entrar. Precisei frustrá-la apenas desta vez porque eu realmente queria ir para casa e talvez descansar na companhia dos meus velhos e conhecidos dilemas.

Por mais de uma vez, vi-a apartar os lábios e tentar encontrar a voz, mas à medida que falhava, enraivecia-se consigo mesma. O conflito interno espelhava-se nos seus olhos.

Tínhamos avançado já para aquela etapa constrangedora em que o silêncio começava a se avolumar entre nós dois; dúzias de palavras não ditas, acumuladas ao longo dos anos, guardadas no meu e no olhar dela.

Esta foi uma característica peculiar de nosso entrosamento que jamais ousei questionar: o modo como éramos capazes de nos entendermos numa mera troca de olhares. O modo como bastava olhar para ela para que eu soubesse o que estava pensando, como estava se sentindo.

Às vezes eu tinha uma estranha sensação de acalento só por saber que não precisaria me expressar através de palavras para que Sakura soubesse o que estava me abatendo, me incomodando. Era como ter o meu cerne revirado pelo avesso para que ela o minuciasse, mas isso não me incomodava.

Com um suspiro, Sakura finalmente se afastou um passo na direção de sua casa:

— Obrigada por me acompanhar até aqui, Sasuke-kun — por fim rompeu o acanhamento que já me alfinetava o âmago. — Nos vemos amanhã, certo?

Ela fez menção de se afastar novamente e eu a impedi, chamando-a apenas uma vez. O som do seu nome na minha voz despencou em outra espiral silenciosa e profunda a seguir. Sakura me olhou aturdida e talvez até um pouco preocupada.

— Está tudo bem, Sasuke-kun?

Assenti, mais para despreocupá-la do que qualquer outra coisa e ela me ofereceu um sorriso de encorajamento.

— Você e o Naruto estão quase completamente recuperados. Já pensou no que pretende fazer daqui para frente?

Sua pergunta me pegou com a guarda-baixa, admito. E me deixou apreensivo e amargurado, de uma certa forma. Eu não tinha ideia do que seria o meu futuro agora. Já não havia mais a motivação da vingança para que eu gravitasse ao seu redor, já não havia mais o meu propósito utópico da revolução. Quem eu seria então?

— Tudo bem, Sasuke-kun. Você terá tempo para decidir e terá o meu apoio e o do Naruto também.

Sakura se aproximou o suficiente para tocar-me o braço decepado. Mesmo através das ataduras seu toque queimava a minha pele. O ar fresco da noite trouxe até mim o cheiro do seu cabelo.

— Eu ainda não pensei... — Era difícil admitir, até mesmo para alguém que já estava habituada a ouvir as minhas angústias. — O futuro...

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Ela afagou meu braço com mais afinco e assegurou-me mais uma vez que haveria tempo e que não devia apressar a minha reabilitação, de qualquer forma. Quando se despediu de mim pela segunda vez, eu a deixei partir.

No entanto, aquele questionamento me perseguiu em todo o trajeto de volta à quitinete (emprestada por Kakashi) e mesmo depois de eu ter repousado a minha cabeça no travesseiro, ansiando poder aquietar as minhas dúvidas ali.

Dormi pouco ou nada naquela noite, revirando-me sob as cobertas ensopadas pelo meu suor. Fui acometido por pesadelos que envolviam flashes da noite do massacre do meu clã, amalgamados à minha deserção de Konoha e minha luta violenta com Itachi, Danzou e por fim com Naruto, no Vale do Fim e nas duas vezes em que aconteceram.

Ter sido questionado sobre o meu futuro aparentemente despertou os fantasmas do meu passado que eu vinha negligenciando nas últimas semanas, desde o meu retorno à Konoha.

Um homem não pode escapar do seu passado por muito tempo sem que ele decida emergir por conta própria para assombrá-lo, não é?

Só na manhã seguinte, exausto pela noite insone e desgastado por meu estado emocional instável, eu procurei alguém que poderia me aconselhar. Alguém que entenderia a minha relação dolorosa com o passado e poderia, ao menos, me indicar qual direção deveria seguir dali em diante.

Naquela manhã, eu procurei Kakashi pela primeira vez em anos para pedir aconselhamentos — os mesmos que fiz questão de ignorar durante tanto tempo.