O Mundo Cinza

Capítulo 2 - O Camaleão


Aquela era a maior vila que ele tinha coragem de ir em viagens como aquela, de pelo menos uma semana. É claro que haviam outras, melhores, maiores e mais perto de onde ele vivia. Mas todas elas eram de algum modo controladas pela sombra do Escudo Negro ou açoitadas pelo terror da Adaga Branca. Aquelas eram as maiores Companhias da Região e juntas formavam uma das mais poderosas Companhias conhecidas. A força delas vinha da implacável liderança conjunta dos irmãos que fundaram, logo nos primeiros meses que se seguiram ao Dia da Luz, o Cavaleiro Cinzento. Porém, o crescimento da Companhia era rápido demais para que um poder central pudesse controlar aquele monstro bárbaro que se formava. Por isso, ambos decidiram que a melhor forma de manter o poder que eles tinham de forma organizada seria fundando duas Companhias, distintas porém ainda unidas.

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E foi dessa decisão que a Irmã fundou o Escudo Negro e o Irmão fundou a Adaga Branca. A máquina de guerra criada pelo brilhantismo tático dos Irmãos do Preto e Branco, foi de tal maneira brilhante, mas ao mesmo tempo terrível, que até hoje aquela região tenta se recuperar do massacre que aquele amontoado de prédios em ruínas viu após a criação do Escudo e da Adaga. As Ruínas, uma das maiores regiões que fazem divisa com a Ferida do Mundo e que possuem população relevante para os interesses de alguma Companhia. E sendo uma das regiões mais populosas, um grande número de Companhias haviam se interessado em controlar a região e explorar ao máximo os recursos que ela poderia oferecer. Todas, sem exceção, haviam sido exterminadas pelos Irmãos. Uma após a outra, seja grande ou pequena, toda Companhia operando nas Ruínas havia sido destruída ou incorporada pelo Escudo e pela Adaga. Os mais inteligentes, haviam se rendido e jurado sua lealdade a um dos Irmãos. Os mais violentos ou sedentos por glória foram exterminados sem qualquer tipo de misericórdia. Mesmo as grandes Companhias de outra regiões, que ultrapassavam a força das duas Companhias juntas, não ousaram fazer qualquer tipo de incursão nas Ruínas. “O gasto com esse tipo de operação não valeria o retorno que as Ruínas poderiam dar, foi o que um dos líderes das Grandes Companhias disse.”, ele ouviu um senhor dizer enquanto passava por uma pequena loja que vendia metais inferiores, localizada perto de uma das entradas da vila.

Enquanto ele passeava pela vila, a procura daquilo que ele havia ido buscar, ele percebeu que havia apenas um assunto sendo comentado em todas as conversas pela vila: a Adaga Branca e o Escudo Negro. Aquilo nunca significava boa coisa, por isso ele foi até um pequeno muro, escondido pela barraca de restos mais nojenta que ele já tinha visto, e escondeu o rosto atrás do manto negro que ele sempre carregava consigo. “Tudo menos isso, por favor. Qualquer coisa menos isso”, e ele torceu para que seus medos fossem infundados.

Ele estava naquela vila a procura de antibióticos. Seu desespero já estava no limite, pois aquela era a terceira vila que ele havia entrado tentando encontrar os medicamentos, e não encontrado nenhum em quase quatro dias de viagem. Mas a sorte parecia estar lhe sorrindo naquele dia. Um pequeno e simpático comerciante havia lhe vendeu quase uma caixa inteira de antibióticos em troca de um litro de água. Água, o bem mais valioso naquele mundo sem vida. É claro que ele tinha consigo um cantil reserva para emergências, mas a troca daquele litro pelos medicamentos significava que ele teria de racionar na viagem de volta. Mas ele não estava preocupado com isso no momento, pois além de ter conseguido uma quantidade incrível de antibióticos, a sombra dos Irmãos fazia ele esquecer de qualquer sede que poderia ter no meio do caminho. Ele sabia que era hora de sair daquela vila.

Porém, quando ele estava se afastando da pequena barraca onde ele havia conseguido os medicamentos, seu pior medo se provou ser real. Vindo ao seu encontro, um pequeno grupo. Todos, vestidos da mesma maneira. Roupas do mais escuro negro, levando seus capacetes na mão, espadas toscas na bainha que todos tinham nas cinturas, uma fina cota de malha podia ser vista por baixo do casaco de um dos guerreiros que não se preocupava tanto em estar adequadamente vestido para aquela ocasião, que parecia ao menos, ser realmente importante . E um símbolo, delicadamente costurado no peito daqueles guerreiros. Um simples desenho, que trazia o medo mais profundo ao coração de todos os homens naquela região. Uma adaga branca. “Se ao menos eles fossem do Escudo, as coisas poderiam ser menos complicadas”, o sujeito encapuzado pensou, se lembrando de que ao menos os guerreiros da Irmã eram mais diplomatas e fáceis de se lidar quando não estavam em batalha. Ao contrário dos guerreiros do Irmão, que pareciam sentir desprezo por qualquer forma de vida que encontravam, e se divertiam apenas massacrando seus inimigos em qualquer campo de batalha.

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Mas o que mais lhe assustou foi quando o sujeito do meio, que certamente estava acima daqueles guerreiros na escala hierárquica da Companhia, chamou por ele.

- Ei, você do capuz. Pare aí mesmo! - o oficial disse.

Demoraram-se alguns segundos para que ele se recuperasse do choque de ser parado por aqueles homens da Adaga Branca. Ele se virou e percebeu quem o chamava. Aquele oficial, o guerreiro que se vestia da forma mais estranha que ele poderia imaginar. Diferente dos soldados que o acompanhavam, o oficial não parecia estar usando qualquer equipamento que normalmente é usado num campo de batalha. Sapatos negros, muito bem engraxados. Um terno negro, daqueles que em outros tempos seriam mais caros do que o salário anual da maioria das pessoas. A camisa branca que ele usava estava com alguns botões abertos, e ele não deixou de notar que aquele terno escondia um corpo definido e forte, mais forte e certamente mais rápido do que aqueles soldados que tinham mais gordura do que músculos em seus corpos. Mas o que mais impressionou o sujeito encapuzado foi o rosto daquele oficial. Os cabelos loiríssimos, quase brancos, impecavelmente arrumados. Um sorriso desafiador no rosto, apenas esperando alguém falar uma palavra desafiadora para que ele pudesse cortar alguma garganta com a adaga afiadíssima que estava meio escondida por aquele caríssimo paletó. E os olhos, azuis escuros. Como um mar revolto. De certa forma até serenos, mas que la no fundo escondiam toda a raiva do mundo.

Ele percebeu que havia se encontrado com o Advogado. Um soldado raso que havia sido recrutado pela Adaga a alguns meses. Mas a inteligência dele só era superada pela crueldade que ele mostrava perante qualquer pessoa abaixo dele. A ascensão dele foi tão rápida e banhada a tanto sangue, que esse era o único assunto falado pelos membros da Adaga e do Escudo. Todos sabiam que não demoraria muito para que o Advogado fizesse parte do círculo pessoal de oficiais de guerra dos Irmãos. O rapaz encapuzado olhou bem fundo naqueles olhos e soube. Aquela era uma pessoa abastada no mundo antigo, que viveu sua vida a custa da miséria de seus inferiores, e que o fazia nesse mundo também. Porém, agora com mais sangue. Ele sentiu vontade de enfiar a espada curta que escondia nas costas, abaixo do manto que escondia quase todo seu corpo, direto no coração do Advogado. Se conteve e respondeu a interpelação do oficial.

– Sim, senhor? - manteve os olhos fixos no chão enquanto respondia.

Sim, senhor?” - o Advogado riu enquanto tentava imitar a forma com que o rapaz encapuzado havia falado – Que coisa bizarra temos aqui? E por que você esconde o rosto, criatura?

–Por isso mesmo, senhor. Sou uma criatura. Quando o Dia da Luz chegou, minha casa foi incendiada comigo dentro. Eu consegui sobreviver, mas todo o meu corpo foi mutilado pelas chamas. Hoje não me atrevo a mostrar meu rosto asqueroso para as pessoas, muito menos aos senhores da Adaga. Mas se esse é o desejo de meu senhor, irei mostrar meu rosto – ele fez o gesto de retirar o capuz.

– Não se atreva a fazer isso, criatura. Não há necessidade. Apenas diga quais são seus negócios aqui e siga seu caminho.

– Estou de passagem, meu senhor. Procurando algum serviço em troca de comida e água. Não como nada a mais de 4 dias, senhor – ele mentiu.

– Pois não me espanta. Quem iria querer dar comida para algo como você? Agora saia da minha frente antes que eu decida que te matar valeria o trabalho de limpar seu sangue da minha lamina. - o Advogado disse com um sorriso satisfeito no rosto.

O rapaz encapuzado se afastou do Oficial, satisfeito com a farsa que acabara de encenar. Ele sabia que o trabalho que ele fazia, de se aventurar tão longe de casa em busca de mantimentos ou remédios, era perigoso demais. Por isso ele sempre escondia seu rosto quando sabia que poderia se encontrar com algum membro das Companhias. Mas as pessoas não gostavam de ter alguém escondendo seu rosto nas vilas. Por isso, alguma história deveria ser inventada para se manter anonimo. Ele não poderia ser reconhecido, e principalmente, ele não poderia ser seguido até a sua casa. O segredo guardado lá era perigoso demais para que outras pessoas soubessem. E certamente a Adaga e o Escudo nunca poderiam saber, se não o horror iria bater a sua porta. Logo, ele inventava alguma doença infecciosa ou uma mutilação causada pelo Dia da Luz para manter seu rosto escondido pelo capuz. Na maioria das vezes isso funcionava, e ele conseguia entrar e sair das vilas sem precisar mostrar seu rosto.

Ao chegar na saída da vila, ele resolveu se virar para trás uma última vez, pois havia percebido que algo não estava certo. Foi fácil demais se livrar do Advogado, algo que ele não conseguiria imaginar acontecendo. Aquele homem conseguia ver através das mentiras, e certamente aquele mentira que ele contou não passaria por aquele oficial tão inteligente. Foi quando seu coração parou. O Advogado estava na barraca daquele simpático senhor que havia lhe vendido os antibióticos, e o rapaz encapuzado se pegou imaginando se o Advogado estaria interrogando o vendedor a respeito do que ele havia comprado. Ele decidiu que deveria se afastar daquela vila o mais rápido possível.

Usando as rotas conhecidas, a viagem até sua casa demoraria pelo menos seis dias. As Ruínas eram um lugar perigoso para se viajar. Grandes pedaços de concreto poderiam cair sobre os viajantes mais distraídos, ou mesmo o chão que se pisava poderia ceder sem qualquer tipo de aviso. Poucas pessoas se arriscavam a andar por essas rotas sozinhas. Mas ele já havia perdido o medo de andar pelas Ruínas há muito tempo. Ele já havia desvendado todos os segredos daquelas rotas, e já havia se aventurado em todos os caminhos alternativos que pode encontrar. Caminhos muito mais perigosos, através de arranha-céus tombados, que forneciam um caminho muito mais rápido até seu destino, mas que cobravam um preço muito grande para serem atravessados. Mesmo ele evitava rotas, e as usava apenas quando necessário. Essa necessidade surgiu ao final do primeiro dia de viagem. “Outra ação também deveria ser tomada”, ele pensou.

Sempre que a luz do sol começa a desaparecer, pessoas sensatas já haviam montado acampamento e preparado fogo para uma possível refeição noturna, se houvesse alguma comida. Mas não o rapaz encapuzado. Ele esperava, e continuava, até que ele soubesse que era a última hora de luz proporcionada pelo sol. Mesmo ele não se atrevia a continuar viagem a noite. A morte certa esperava por aqueles que se aventuravam pelas Ruínas a noite. Mas essa decisão de esperar até o último raio de sol era a mais inteligente, na visão dele. Quando ele parava, ele já poderia ver sinais de pessoas próximas, fogueiras acesas perto dele. E assim ele saberia onde ficar escondido, para se proteger de possíveis ataques noturnos. Naquela noite, ele viu sinais de apenas um acampamento montado. O rapaz encapuzado viu, não muito longe de onde estava, um rastro de fumaça da única fogueira acesa no seu raio de visão, no terceiro andar de um prédio em ruínas. Ele sabia que aquilo não era boa coisa e resolveu investigar. Andando por sobre os escombros mais altos que podia encontrar, ele foi se aproximando do acampamento misterioso. Ele se movia rapidamente, pois sabia que logo a noite chegaria e não conseguiria chegar perto o suficiente daquela fogueira para ver quem estava tão perto dele. Seu coração batia aceleradamente, temendo o que pudesse encontrar lá.

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A noite estava quase caindo quando ele encontrou o acampamento. Escondidos pelas sombras, cinco pessoas faziam um semicírculo ao redor da fogueira, com os rostos praticamente escondidos pela escuridão, o rapaz encapuzado temeu não conseguir identificá-los. Até que ele viu a figura sentada no meio dos demais. Ele nunca esqueceria daquele sorriso desafiador, que se mostrava mesmo naquela noite de pesadelos que era a noite nas Ruínas. E o pior medo dele se concretizou ao perceber quem estava ali. O Advogado, tão perto dele. “Mas por quê? Será que ele esta me seguindo?”, ele pensou. E essa dúvida se tornou uma certeza quando ele lembrou da última coisa que viu o Advogado fazendo naquela vila. “Falando com o vendedor. Ele poderia ter me visto falando com o vendedor? Será que ele descobriu o que eu fazia ali? O que eu comprei? Eram antibióticos. Mas não, isso faz sentido. Uma criatura mutilada precisa de medicamentos certamente, não pode ser isso. A não ser que.........oh, merda”, ele pensava freneticamente quando percebeu o que estava acontecendo. E então ele correu.

Ele corria o mais rápido que se arriscava naquele terreno perigoso, tentando fazer o minimo de barulho, para não chamar atenção daquele acampamento que estava tão perto dele. Enquanto a certeza se tornava mais clara na mente dele. Ele sabia porque o Advogado estava ali. Ele sabia porque estava sendo seguido. O Advogado certamente havia visto ele naquele barraca. E o vendedor iria contar o que aquele estranho de capuz comprou. Ou pior ainda. Como aquela suposta criatura faminta tinha comprado uma caixa de antibióticos e pago com um litro d'água, o bem mais precioso que alguém poderia ter naquele mundo seco e sem vida. O Advogado certamente descobriu isso rapidamente. Poucas eram as pessoas que se arriscavam a esconder algo de um oficial da Adaga Branca. O vendedor deve ter contado tudo isso para o Advogado, e ele não o culpava por isso. O vendedor não ia proteger um estranho mascarado, não quando isso poderia trazer a fúria de uma Companhia sobre ele.

Foi então que ele decidiu tomar uma das rotas alternativas das Ruínas. Uma pouco conhecida, extremamente perigosa. O Advogado não seria louco a ponto de seguir sua trilha por aquele caminho. Ele não tinha o conhecimento necessário para segui-lo através daquelas rotas. O rapaz encapuzado contava com isso. Por isso ele decidiu não dormir naquela noite, e se preparar para tomar aquele trilha assim que os primeiros raios de sol aparecessem. Ele também percebeu que outra ação deveria ser tomada. Para conseguir despistar o Advogado, ele deveria deixar seu disfarce para trás. Ele deveria deixar de ser o rapaz encapuzado e se tornar quem ele realmente era. O sol mal havia nascido e ele já estava a caminho daquele lugar que apenas um louco feito ele teria coragem de ir.

Os trapos da criatura mutilada deram lugar as roupas mais apresentáveis. O preto de suas roupas surradas deu lugar ao uma calça cinza, feito de um tecido extremamente leve. Ao invés do manto, ele agora vestia um casaco de couro cinza, por cima de uma fina cota de malha. Ele estava preparado para a batalha, rezando para não precisar usar a espada curta, não mais escondida pelo manto, mas a mostra em sua cintura. O capuz também foi trocado e em seu lugar ele usava uma máscara. Uma máscara com as feições de um réptil cinzento. Ele se transformara de uma criatura negra para um lagarto cinza. Mas não qualquer cinza. As cores que ele usava eram praticamente idênticas ao tom de cinza que dominava o mundo. Aquela roupa fazia ele se tornar uma parte da paisagem. Ele conseguia se camuflar perfeitamente entre os escombros cinzas dessa forma. E foi daí que surgiu o nome que ele usava nesse mundo. Seu verdadeiro nome, sua verdadeira natureza. Um rastreador invencível, capaz de seguir qualquer um sem ser notado. Conhecedor de todos os caminhos alternativos entre as Ruínas, capaz de fugir de qualquer perseguidor quando era necessário. Esse conjunto de habilidades faziam ele ser perfeito para buscar provisões em vilas distantes. Ele era uma parte vital para a sobrevivência da sua Casa, as suas habilidades eram necessárias para a sobrevivência de muitos. Esse conjunto de habilidade faziam ele ser conhecido como o Camaleão. “Para a minha casa sobreviver, eu preciso ser invisível. Para ele sobreviver, eu tenho que fugir do Advogado”, o Camaleão pensava enquanto ele tomava um caminho alternativo no labirinto de perigos formados pelas Ruínas.

O Camaleão sabia que deveria colocar o máximo de distância entre ele e seus perseguidores antes de sair da trilha principal que atravessava toda a região das Ruínas. Ele havia andado o mais rápido que conseguia, durante meio dia até que ele finalmente chegou onde desejava. O Passo do Penhasco era uma pequena trilha que rodeava uma parte do Dedo Cinza, uma grande montanha de escombros que se formou ali durante o Dia da Luz. Os viajantes normalmente contornavam o Dedo, o que tornava a viagem na região demorada e cansativa, porém mais segura. Viajando pelo Passo ele demoraria não mais que três dias para chegar em casa. Mas os perigos eram incalculáveis, ele teria que seguir com o máximo de cuidado para não ser pego por uma das armadilhas daquele caminho. Todos os perigos que se enfrentavam viajando por uma das rotas principais das Ruínas, eram redobrados quando se viajava pelo Passo do Penhasco. Ninguém se arriscava por aquelas estradas ingrimes, e o Camaleão sabia disso. Por isso não se importou em esconder sua trilha no caso de ainda estar sendo seguido pelo Advogado, pois ele não acreditava que o oficial seria louco o suficiente para segui-lo no Passo.

A viagem pelo Passo do Penhasco iria durar no máximo um dia e meio, se ele continuasse no ritmo que estava, e ao final do primeiro dia ele percebeu o tamanho do erro que cometera. Ao longe ele poderia ver os sinais de um acampamento montado. Ele sabia de quem era aquele acampamento. O Camaleão sabia que ainda estava sendo seguido pelo Advogado. “Deuses sejam bons, estou sendo seguindo por um louco. Não posso deixar ele descobrir minha casa”, esse medo nublou seus pensamentos enquanto ele dormia um sono inquieto. Ainda era noite quando o Camaleão acordou e se preparava para continuar viagem, sabendo o tamanho do perigo que o seguia através do Passo.

Depois de mais meio dia de viagem ele viu o fim daquela trilha infernal, e felizmente ele havia sobrevivido a ela. Mas ele havia perdido qualquer sinal do Advogado. Torcia para que ele tivesse sido engolido por alguma das armadilhas do Passo e nunca mais fosse visto. Mas essa dúvida não saia da cabeça dele, e mesmo tendo escondido sua trilha do Advogado, o Camaleão resolveu esperar. Escondido no alto de um monte de escombros, ele observou a saída do Passo. Não mais que quinhentos metros o separavam daquela trilha. Era uma decisão arriscada, ficar tão perto assim de seus possíveis perseguidores, mas ele sabia que aquilo era necessário. Ele tinha que saber qual perigo poderia estar em seu encalço. Nenhum erro poderia ser cometido, não tão perto de casa. Ele esperou algumas horas até ver os primeiros sinais de seus perseguidores. E ele viu que o Passo havia cobrado seu preço. Dos quatro soldados que acompanhavam o Advogado no início, apenas um tinha sobrevivido. O próprio Advogado parecia ter sobrevivido por pouco. Seu terno estava todo esfarrapado, sua camisa branca estava manchada de sangue, seus cabelos estavam uma bagunça e aquele sorriso desafiador desaparecera. Sobrara apenas aquela fúria em seus olhos.

O Camaleão sabia que tinha apenas mais um dia de viagem a frente e finalmente estaria em casa. Ele estava totalmente desesperado quando a noite caiu e viu o acampamento do Advogado muito perto dele, sinal de que ele não conseguiria fugir dele, ele era um rastreador bom demais, o campo era muito aberto e ele estava muito perto de casa. Não poderia se arriscar ali. De manhã ele teria uma ultima tentativa de fuga ou o Camaleão se veria forçado a ter que enfrentar o Advogado e aquele último soldado que o acompanhava. Mas uma viagem tão longa quanto a que ele estava, somada a terrível passagem pelo Passo, acabou cobrando seu preço no último dia para o Camaleão. O cansaço o alcançou e ele acabou dormindo mais do que devia naquela noite. Quando acordou, a primeira coisa que ele viu foi o sorriso desafiador do Advogado na sua frente. “Por favor, que isso seja um sonho ruim. Por favor, que eu ainda esteja dormindo”. Ele percebeu que não estava sonhando quando ouviu o oficial falar.

– Vejam só no que se transformou aquela criatura mutilada - o Advogado disse.

O Camaleão procurou sua espada curta, que deveria estar ao seu lado. Se fosse para morrer, ele iria morrer com uma espada na mão. Ele percebeu que ela havia desaparecido quando sentiu o aço frio tocar sua garganta. Ao olhar para o lado, ele viu que o último soldado estava parado ali, com a espada curta que era dele em mãos, pronto para cortar sua garganta ao menor sinal de resistência. O Camaleão desistiu de tentar qualquer coisa imprudente naquele momento, e aceitou seu destino. Ele morreria, mas não falaria nada que pudesse prejudicar a sua casa. O Advogado não iria tirar nada dele. Foi quando o Advogado continuou falando.

– Não, não, não. Nem tente nada imprudente, garoto. Já não basta tudo que você fez. Tentar me enganar naquela vila, fugir de mim, me fazer te seguir por aquele caminho demoníaco que me custou três dos meus melhores homens. O que te faz pensar que eu não te mataria agora mesmo pra pagar tudo que você me fez passar nos últimos dois dias? - ele perguntou.

– Eu acho que nada. Então faça o que tem que fazer e siga seu caminho logo – o Camaleão respondeu.

– Exatamente. Mas antes disso você vai me responder algumas perguntas. Para onde você esta indo? Que local é esse que você teve que usar o Passo do Penhasco pra me despistar? É tão importante assim você esconder essa localização de mim, é isso? - o oficial continuava perguntando.


– Acho que você nunca vai descobrir isso, não é mesmo? - o Camaleão provocava o oficial que já demonstrava sinais de não conseguir controlar toda aquela fúria acumulada pela viagem através do Passo.


– Veremos, garoto. Veremos. Mas mais importante que isso, eu gostaria de saber onde você conseguiu um litro de água pra poder comprar aqueles medicamentos.

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Todo o sangue do rosto do Camaleão parecia ter desaparecido enquanto o oficial continuava falando.


– Vejo que toquei num ponto sensível, não? Então vamos brincar de adivinhar o que realmente está acontecendo aqui. Eu acho que alguém que você conhece está precisando de medicamentos, urgentemente. O que explica você ir para tão longe em busco de alguns antibióticos. Essa urgência também explica você gastar tanto pra consegui-los. Mas mesmo assim é muito para alguns antibióticos. Por que você gastaria tanto assim? Talvez por você ter uma reserva de água no seu local? Certamente tem, nenhum louco gastaria tanta água assim em local desconhecido se não tivesse uma boa reserva. E alguém de sua confiança deve estar guardando ela. Então eis o que vamos fazer. Você vai me contar onde esta guardado essa reserva e eu vou até e levar o inferno que você me fez passar para as pessoas que estão esperando você voltar com esses medicamentos. Que tal isso? - o Advogado estava gritando de raiva enquanto terminava de falar.

Aquelas palavras fizeram uma raiva crescer no coração do Camaleão. Só de pensar que o Advogado poderia causar algum sofrimento para ele, apenas esse pensamento era demais para ele suportar. Ele decidiu agir. Ele morreria ali, antes de fazer o Advogado chegar mais perto da casa dele. Mas antes dele se mover, uma sombra cinza se moveu atrás dos escombros que ele usou como esconderijo. E tudo aconteceu rápido demais. Uma criatura, meio homem e meio cachorro, surgiu das sombras. Um gemido de dor foi ouvido e uma espada atravessou o coração do Advogado. Sangue jorrou no rosto do Camaleão e ele instintivamente usou a mão pra parar a espada curta que estava em posse do soldado. Uma dor aguda atravessou seu braço enquanto ele pulava sobre o homem. Ele alcançou a pequena adaga escondida em sua bota, e começou a esfaquear seguidamente seu último perseguidor. Toda frustração e medo foram descarregados sobre o corpo que a muito já estava sem vida. As lágrimas escorriam sobre seu rosto, quando uma mão o fez parar de esfaquear o soldado da Adaga Branca. Um homem, também todo vestido de cinza, mas ao invés da máscara de réptil, ele usava uma máscara de lobo. O homem retirou a máscara e o Camaleão nunca se sentiu tão aliviado ao ver um rosto. Enquanto as lágrimas continuavam caindo sobre seu rosto, ele abraçou a figura cinzenta.

– Lobo, Lobo. Você está aqui. Não acredito, Lobo. Eu pensei que ele iria chegar até você. Eu não poderia deixar ele fazer mal a você, Lobo. Eu morreria antes dele chegar perto de você - o Camaleão disse.


– Está tudo bem, calma. Já acabou. Eu estou aqui com você. Ainda bem que eu estava patrulhando a Casa, dificilmente outra pessoa veria esse cara nas redondezas, espreitando alguém que parecia estar escondido aqui. Meu coração parou quando eu vi que ele estava com uma espada na sua garganta. Aliás, quem é esse cara? Espera, isso é o símbolo da Adaga Branca? - o Lobo perguntou


– Sim, longa história. Eles estão me seguindo a uns dois dias. Eram cinco no começo, eu tive que usar o Passo do Penhasco pra tentar despistá-los. Mas eu não consegui, Lobo. O Advogado é louco. Ele me seguiu pelo Passo e chegou tão perto de Casa. Ele chegou tão perto de você – ele parou de falar enquanto as lágrimas voltaram a cair de seus olhos.

– Espera. Esse é O Advogado? O novo oficial da Adaga Branca? Aqueles que todos estão falando? E a gente matou ele? Isso é um problema gigantesco, Camaleão. E como assim você usou de novo o Passo do Penhasco? Quantas vezes eu tenho que te dizer pra você não ir lá, que aquele caminho é perigoso demais e...

Lobo parou de falar quando viu o estado do rapaz que ele tanto estimava. Ele ouvia o Camaleão apenas balbuciar “Me desculpa, Lobo”, seguidamente e parecia não saber mais onde estava. Era estranho ver aquele rapaz sempre tão forte e confiante, dessa vez totalmente tomado pelo medo. Não pela vida dele, pois Lobo viu que ele estava pronto pra se sacrificar antes que alguém tão cruel como o Advogado chegasse perto da Casa. “Ele morreria antes que o Advogado chegasse perto de mim”, o Lobo percebeu. E também percebeu que esse era o amor que o Camaleão sentia por ele. Mais forte do que própria vida dele. E ele sabia que esse sentimento era reciproco. O Lobo se aproximou daquele Camaleão em estado tão frágil, e o abraçou. Um abraço que continha todo o amor que sobrou naquele mundo sem sentimentos. Um abraço que continha todo o amor que ele sentia por aquele rapaz.


– Está tudo bem, Camaleão. Está tudo bem. Agora nós temos que te levar pra casa, fazer um curativo nessa mão e reportar sua história completa para o Doutor. Ele não vai gostar nada do que aconteceu aqui. Mas não se preocupa, eu vou estar do seu lado. Sempre. Tudo bem? - Lobo tentou dar segurança pra ele.

– Sim, Lobo – ele respondeu e um sorriso tímido surgiu naquele rosto que o Lobo achava tão lindo.

E os lábios dos dois se encontraram. Um beijo que reafirmava um sentimento cada vez mais raro naquele mundo tomado pela violência. E os dois sabiam e sentiam isso. E eles se sentiram mais seguros, enquanto o dia surgia e iluminava o beijo do ultimo amor verdadeiro que restava no mundo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.