Novamente na casa de meus pais, inclusive com meu amigo Regis, que depois de se despedir de todos, inclusive de seus pais e Tony, fomos dormir às duas horas da madrugada, onde, talvez pelo cansaço de sua longa apresentação, em poucos segundos ele já estava dormindo e permaneceu assim durante toda o resto da noite..

Na manhã seguinte, quando acordei às sete horas, minha mãe já estava na cozinha e me disse:

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Tem um batalhão de gente aí na porta.

— Será que vieram me ver? — perguntei com sarcasmo.

Foi culpa de Regis, que durante o show, atreveu-se em dizer que permaneceria em Penápolis por alguns dias e que estaria na casa de meus pais.

Depois que tomei café, saí até a rua e disse àquelas pessoas, que Regis teria ido dormir muito tarde e não levantaria antes das dez horas; mas elas insistiam em dizer que esperariam.

Pouco depois das dez horas fui até seu quarto e o chamei, dizendo:

— Levante-se! Tem um batalhão de amigos seus querendo te ver!

— Deixe eu dormir, Willian! — protestou ele rolando na cama. — Estou cansado!

— E as pessoas que querem te ver? São seus amigos!

— Pede pra virem depois!

— Não se faz um amigo esperar! Depois, eles estão aí a mais de três horas!

— É?…

— Você queria ficar por aqui pra poder passear! Pelo jeito não vai conseguir sair de casa!

— Não tem problema! — falou ele, calmamente. — Em vez de irmos embora na quarta-feira, iremos na sexta... Ou sábado.

— Então levante pra dar um oi a seus amigos. Mais tarde você dorme de novo!

Um tanto preguiçoso, ele se levantou, jogou toda a roupa de cama no chão, arrumou-a calmamente, começando pelo lençol. Minha mãe, vendo aquilo, insinuou:

— Deixe a cama aí que eu arrumo!

— Pode deixar — continuou ele. — Se cada pessoa fizer um pouquinho, não sobrecarregará outra.

— Você tem compromisso! — alegou minha mãe.

— Fui eu quem dormiu nesta cama!

Desde os oito anos de idade, Regis já tinha este hábito: arrumar sua própria cama, lavar copos que ele usava, lavar suas cuecas e outras tarefas fáceis, porém importantes.

Terminado de arrumar a cama, seguiu para o banheiro. Na cozinha, embora com a maior cara de sono, cumprimentou educadamente meu pai e irmãos, então tomou um demorado banho, escovou os dentes e tomou um rápido café. Apenas pão com leite e achocolatado.

Às dez e meia da manhã, saiu até a rua, indo conversar com aquele vasto número de pessoas, pedindo-lhes desculpas pela demora.

Mais de meia hora depois, como já se passava das onze horas e o número de pessoas não diminuíam, ele pediu licença, dizendo que precisava ir até o hotel se despedir de seus pais, que já deveriam estar de saída para a capital.

Já dentro da casa de meus pais, lhe disse:

— Sei que as pessoas te incomodam, mas faz parte da fama.

— Ninguém me incomoda! — negou ele. — Gosto de ser mimado!

— Se não gostasse não poderia ser artista — concluí.

Segui até a cozinha, apanhei um copázio de quatrocentos mililitros de uma vitamina verde, que lhe havia preparado a alguns minutos e lhe entreguei dizendo:

— Tome isto. Preparei pra você.

— O que é? — perguntou-me desconfiado. — Vitamina?

— Sim! Uma vitamina especial!

Acreditando sentir o sabor de, talvez abacate, tomou uma boa tragada da tal vitamina. Quer dizer: colocou na boca. Porém, ao sentir o gosto nada bom da tal vitamina, fez tremenda careta, sentiu ânsia e correu ao banheiro, cuspindo tudo no vaso sanitário. Lavou a boca e voltou para a varanda, insinuando de certa forma bravo:

— Você tá louco, Willian? Tá querendo me matar?

— Nada disso! — neguei com certo sarcasmo. — É uma bela vitamina, que você precisa tomar.

— O que é isso? — perguntou-me fazendo careta. — Ovo choco?

— Brócolis fervido, ovo cru, a água do brócolis e óleo de fígado de bacalhau!

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Tem certeza que precisa dar isso pro menino? — questionou-me minha mãe.

— Que é isso mãe? — ironizei. — Quando criança a senhora me fazia tomar!

— Nunca lhe dei isto?

— Não desta forma! Mas Emulsão Scott, que é a mesma coisa, me dava direto, dizendo que era bom pra tudo.

— Não vou tomar essa coisa fedida, Willian! — negou Regis, convicto.

— Tampe o nariz! É pro seu bem!

— Não adianta tapar o nariz se o estômago não quer! — negou ele com ironia.

— Você quer ser artista? Precisa cuidar de suas cordas vocais. Elas são seu instrumento de trabalho!

— Você tem certeza que me ama? — questionou-me ele sério.

— Podes crer que sim! —esbocei leve sorriso. — Tome logo e ficará livre.

Apanhou o copo, tapou o nariz e fazendo careta, tomou quase cinquenta mililitros da tal vitamina. Sentiu ânsia, mas acabou suportando.

— Tome o resto!

— Nem que você me matar! — reclamou ele, bravo.

Segui com ele, no carro, o qual nos foi emprestado e depois de enfrentar novo batalhão de “fãs” em frente ao hotel, seguimos juntos, com todos os membros de sua equipe, até a Rodovia Marechal Rondon, sentido Bauru, onde almoçamos juntos, em belo restaurante de beira de estrada, em frente ao batalhão da polícia rodoviária.

Terminado o rápido almoço, nos despedimos de toda a equipe e seus pais; eles embarcaram no ônibus e seguiram pela rodovia, sentido Bauru, enquanto eu e o menino retornamos para a cidade.

De volta à casa de meus pais, como a visita de seus fãs amigos, perduraram durante todo aquele domingo, acabamos praticamente nem saindo mais de lá. Diferente do que eu havia planejado, em irmos até o Salto do Avanhandava e à casa de alguns de meus entes, passearmos.

Apesar de sentir um pouco triste devido esta falta, ele se sentia compensado, pela amizade das pessoas.

Naquela noite, ao dormirmos na casa de meus pais, como dormíamos no mesmo quarto e então, depois de vários meses afastados, ao contrário da noite anterior, que ele dormira bem, percebi que ele estava nervoso e não conseguia dormir direito, sempre rolando na sua cama de solteiro, correndo o risco até de cair, variando muito e tendo pesadelos.

Na segunda-feira, para que conseguíssemos sair um pouco, fugindo das pessoas, saímos da casa de meus pais antes das sete horas da manhã, seguindo a passeio até a casa de minha avó materna, depois até a casa de uma tia, irmã de meu pai, que cuidava de minha avó paterna. Ambos já sabiam de nossa visita e que chegaríamos bem cedo.

Como de costume, pedi à benção a minha tia e depois a minha avó Aurélia (respectivamente irmã e mãe de meu pai), que me reconheceu imediatamente, então Regis fez o mesmo, inclusive, como de seu costume, beijou minha avó na face e então, ao pedir-lhe à benção, ela o puxou pela mão e acariciou seu rosto com ambas as mãos… O menino se espantou um pouco, mas aceitou o carinho. Minha avó tinha dois jeitos de reconhecer uma pessoa: ou pela voz, como foi em meu caso, ou pelo tato, acariciando o rosto, como foi no caso de Regis, que ela ainda não conhecia. Ela era cega.

— Quem é você? — perguntou-lhe ela. — Netinho ou bisneto?

Acabando de acariciá-lo, permaneceu abraçado a ele.

Aguardei alguns segundos e disse em tom de brincadeira:

— É bisneto!

— De quem ele é filho?

— De Willian, vó! — completou o menino.

— Willian! — estranhou ela.

— É Cido! — corrigi para ela saber.

— Quem é Cido? — quis saber meu amiguinho.

— Sou eu! — ele não sabia deste meu apelido.

— Quem é sua mulher? — quis saber minha avó, sabendo que eu era solteiro.

— É brincadeira, vó! — corrigi. — Eu não sou pai de Regis, de verdade! Só faz de conta!

— Regis! Eu conheço um Regis! — riu ela, com seu jeito muito especial de rir. Um sorriso agradável e cativante.

— Verdade! — exclamei.

Minha avó, por não ter outra diversão e ser cega, passava o dia todo ouvindo rádio.

— Ele também é menino! — tornou a rir, passando as mãos sobre seus próprios cabelos grisalhos, amarrados, fazendo-a se parecer muito com a dona Benta do Sítio do Pica-pau Amarelo.

— A senhora conhece um Regis menino, vó? — questionei-a surpreso.

— Conheço sim! Mas é do rádio!

— Esse nosso menino se chama Regis Moura, vó! — expliquei a ela para ver sua reação.

— Pois é! — riu ela. Eu sempre a fazia rir, só para ver aquele sorriso abençoado — O menino do rádio também se chama Regis Moura!

— Ele é o Regis do rádio, mãe! — explicou minha tia, à minha avó.

— É? — alegrou-se ela. — E você é meu bisneto?

— Com certeza vovó! — foi incisivo Regis, feliz.

Aquela visita, também deixou minha avó imensamente feliz. Uma pessoa idosa, cega, sem nenhum outro prazer na vida, receber de repente a visita de uma pessoa que conhecia apenas pela voz, através das incríveis ondas do rádio, talvez pudesse ser o melhor presente do mundo. E Regis, sem demagogia, tinha um carinho especial pelas pessoas.

— Eu te amo vovó! — disse ele, de certa forma emocionado.

Acho que há muitas décadas minha avó não ouvia uma frase dessas. Nós, os netos de verdade, não tínhamos o costume dessas delicadezas, que poderiam significar muito.

Vovó Aurélia, que nem enxergava, sentiu lágrimas, tornou a acariciar o rosto daquele menino diferente, dizendo:

— Você é muito bonito, menino!

— A senhora não enxerga, mãe! — ironizou minha tia. — Como sabe que ele é bonito?

— Enxergo muito! — reclamou ela. Até para protestar ela tinha um jeito especial; nunca perdia a calma e educação. — Ele é bonito de alma e coração! E de rosto também!

Realmente, seus olhos estavam no tato das mãos e no sentimento de sua alma sofrida, pelo passar dos anos de muito trabalho. Vovó, uma mulher um tanto obesa, cabelos grisalhos, amarrados, lembrava, como já mencionei, com muita semelhança, a famosa dona Benta, personagem do “Sítio do Pica-pau Amarelo”, havia ficado cega, vítima de um derrame, há mais de vinte e cinco anos, ou seja, antes que eu mesmo tivesse nascido. Assim sendo, ela passava o dia todo, praticamente sentada ao lado do rádio, o qual, como já dito, era sua única forma de diversão. Meu avô Alfredo, havia falecido quando eu contava apenas nove anos de idade.

— Você esteve no hospital? — perguntou ela, tornando acariciá-lo.

— Foi triste vovó... — embargou a voz, o menino. — Mas eu sarei.

— Posso ver?

Ele levantou a camiseta e levou a mão dela até seu peito, fazendo com que ela sentisse a marca de seu triste drama.

— Uma áurea Divina paira sobre você, meu menino — profanou a vovó.

— Eu sei, vovó! Mas não sou único! Deus cuida de você também! Me perdoe. Dá senhora!

— Eu rezei pra você o dia todo enquanto estava ferido.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Claro que eu acredito! — confirmou o menino.

— E sabia que iria sarar. Só não sabia que Deus iria me recompensar, trazendo você para que eu o conhecesse — em seus olhos sem vida, ainda existiam lágrimas para banhá-los.

Regis, também emocionado, a beijou várias vezes e ela, em seu sorriso encantado balbuciou:

— Jamais recebi um beijo de um de meus verdadeiros netos.

Regis virou-se a mim, perguntando:

— Por que, Willian?

— Sei lá! — dei de ombros. — Hipocrisia de nós netos.

— E o que está esperando pra começar agora? — insistiu tal anjo apaziguador.

Acho que foi com muita timidez que me aproximei de minha querida vovó e a beijei no rosto sofrido, depois justifiquei:

— Perdoe nossas faltas, vovó. Acho que, principalmente quando crianças, gostávamos tanto de nos reunir em sua bela chácara, para brincar e correr felizes, que beijos e abraços nos pareciam coisas insignificantes. Mas desde muito pequenino que eu a amo como a senhora nos ama.

— Quando vocês voltam a me visitar? — perguntou ela, sabendo que eu era sincero.

— É difícil vó! — aleguei. — A gente mora muito longe!

Ela ainda não deixara o menino, que por sinal não se importava, permanecendo abraçado a ela.

— Mas vó! Como eu sou o Regis do rádio, quando a senhora ouvir uma música minha, lembre-se que estarei cantando pra senhora — disse ele em tom emocionado.

— E eu posso te dar um beijo? Pra lembrar sempre de você!

Ele tornou a beijá-la com o mesmo carinho de um neto legítimo. Ou mais.

Às dez horas daquela manhã, já estávamos caminhando às margens da prainha, do gigante e famoso Rio Tietê.

— Sabe que rio é este? — perguntei-lhe, mostrando a imensidão do rio represado.

— Nem faço ideia! — negou ele.

— O mesmo rio Tietê fedido de São Paulo.

— Como ele pode passar limpo aqui e chegar lá sujo?

— É o contrário! — expliquei-lhe. — Ele sai de lá sujo, devido o descuido de nós paulistanos, que o enchemos de lixo. Mas graças à força da natureza, pelo caminho, até chegar aqui, suas águas acabam sendo filtrada e chegam aos nossos amigos do interior, com toda essa beleza. Inclusive, servindo de local de pesca e lazer, como natação e até mergulho profissional.

— É! — admirou-se ele. — E as pessoas ainda duvidam de Deus!

— Mas não é Deus quem faz isso! — agi com sarcasmo. — É a teimosia da natureza!

— Quem criou a natureza? Quem fez este Rio... Este Céu... Esta atmosfera perfeita?

— Sei que dirás que foi um Deus que existe mesmo antes de tudo. Mas tem um dito popular que diz, “a natureza é pródiga”.

— O que vem a ser, pródiga? — franziu o nariz. — Não sou gênio e ainda não sei tudo!

— Pródiga... Digamos que... no caso em referência à natureza seria, ela é teimosa, mesmo que você derrube todas as árvores, outras árvores teimariam em nascer e produzir sombra e frutos novamente.

— Bem real — concordou o menino. — A gente polui o Rio Tietê lá na capital e ele teima em chegar aqui no interior cheinho de peixes...

Pensou um pouco e disse:

— Willian, você gostaria de poder mudar o mundo?

— Quem me dera! — exclamei duvidoso. — Brincar de Deus!

— Não precisa ser Deus! Basta começar pelas coisas mais simples!

— De onde saiu essa?

— Li em um livro! (“O Todo Poderoso” de Bruce Almighty ) Não sou tão inteligente! Outra coisa que li e vendo sua avozinha, completamente cega e animada, me faz saber, que realmente precisamos pôr em prática.

— O que mais você leu?

— Quando você tiver um grande problema, diga ao seu problema que você tem um grande Deus!

— Minha avó é cega, mas Deus lhe aperfeiçoou, usar melhor os outros sentidos do corpo.

— Com certeza!

— Você sabe por que aqui se chama Salto do Avanhandava?

— O que é salto? Pra mim é sola de sapato!

— Queda d’água! — ri — Cachoeira!

— Aqui se chama isso? — admirou-se ele.

— É o nome que deram!

— Não vejo nenhuma cachoeira!

— Mas já tiveram várias nesse lugar! Esse rio que você disse ser feito por Deus, na verdade foi feito, ou pelo menos modificado pelo homem. Um dia, na metade da década de sessenta, meus pais, meus irmãos e eu morávamos no sítio, um dia chegou por lá, um homem do governo e informou a meu pai que o sítio seria desapropriado, pois a empresa Cesp (Companhia Energética de São Paulo) represaria o rio, para construção de diversas usinas hidrelétricas ao longo do mesmo. Era o progresso, necessário, porém cruel, que chegava para nós do interior. Então quase que imediatamente meus pais pararam de plantar, comprou um terreno na cidade e construíram a casa que eles moram até hoje. Com isto, acabou-se o sítio, onde a gente nadava pelado nos rios e brincava pela relva orvalhada. O rio ainda permaneceu igual era por mais de dez anos, depois aconteceu o que o homem disse a meu pai, e as belas cachoeiras que aqui existiam, inclusive as pontes penseis, presas por cabos de aço, iguais àquelas vistas nos filmes de Tarzan e o restaurante construído sobre as pedras e até a antiga ponte sobre a rodovia, acabaram todos ficando sob as águas. A beleza que a natureza levou milhões de anos pra construir, foi submersa em questão de um ano, após o início da barragem. Isso aconteceu agora, no ano passado. Quando estivemos na fazenda Carrier, se tivéssemos vindo aqui, você ainda teria visto as cachoeiras. Agora está encoberto pra sempre, porém o nome “Salto do Avanhandava” acho que continua até hoje.

— Não está encoberto pra sempre! — negou o menino fazendo micagem.

— Infelizmente meu amiguinho, está!

— Destrua as usinas e represas e o rio volta a fluir com suas cachoeiras.

— Impossível!

— E por que você não me trouxe aqui quando estivemos da outra vez?

— Sei lá! Nem me toquei!

— E então, por que deram esse nome? — perguntou Regis. — Você me perguntou isso e eu não sei!

— Quando eu era criança, vinha com meus pais passear na chácara de minha avó, que na época morava aqui em Barbosa, na avenida dona Ricardina. Ela é a mesma avó cega que mora com a minha tia Amélia; já tinha os cabelos amarrados iguais os da dona Benta, do sítio do Pica-Pau amarelo e já passava o dia sentada na copa, ouvindo seu rádio. Dizia que era pra saber notícias de Penápolis. Como já disse, eu adorava passear na chácara dela. Até o cheiro e o clima ameno daquela casa era de um encanto diferente e ao lado existia um laticínio que sempre doava queijos de todos os tipos pra ela; e nós, lógico, éramos os mais beneficiados com aquelas delícias. Mas o que quero lhe contar, é que ela adorava contar histórias e uma vez, quando eu tinha sete ou oito anos de idade, ela me contou uma que nunca esqueci. Como aqui, até hoje ainda tem reservas indígenas, dizia que na época da catequização dos indígenas, um padre jesuíta por nome Avaí caminhava com eles sobre as pedras das cachoeiras que aqui existiam e certo dia, acabou por escorregar caindo sobre as águas e vindo a falecer. Os indígenas, embora desesperados nada puderam fazer e viram o corpo desaparecer sobre as águas; depois de dois dias, como é normal acontecer, o corpo do padre começou a boiar e então era arrastado pelas águas, inclusive, caindo entre as diversas cachoeiras e os indígenas, do lado de fora, acompanhava aquele acontecimento e então com o passar dos tempos, comentavam entre si, com os demais e com o homem branco, que Avaí andava sobre as águas, como se fosse algo extraordinário. Com isto acabou pegando esse nome, Salto do Avaí Andava…

— Legal! — riu ele. — Não vou esquecer esta história!

Calou-se um pouco, depois prosseguiu:

— Você vive dizendo que gostaria de voltar a ser criança! Toda criança é fase! Você foi feliz quando era uma delas! Cada pedacinho da infância que você viveu e me conta, me causa inveja. Dá vontade estar lá e te visitar! Hoje, eu estou no final de minha fase criança. Daqui a pouco estarei na fase que você está hoje. Viva bem a fase em que você se encontra e seja sempre feliz! Deixe eu viver minha fase criança! É isso que Deus almeja em nossas vidas!

— Seja muito feliz na sua fase criança, meu amiguinho, pois ela passa muito rápido!

— Eu sei disso! — concordou ele, sério. — Espero nunca me arrepender do que faço!

— Eu gosto de recordar. Dizem que recordar é viver duas vezes!

— É! Mas procure não viver só de recordação!

— O que você quer dizer, meu... filósofo?

— Se você passar sua juventude só recordando a infância, deixará se viver sua juventude!

— Tem lógica! Não terei o que recordar na velhice.

— Com certeza! — riu ele.

— Este convívio com você, já é um bom motivo de recordação.

— É! Mas talvez você estarás recordando a minha infância! — tornou a rir, meu intelectual amigo.

— É engraçado como nossos papéis se invertem! — ri.

— Como assim? — fez careta.

— Acho que sou eu quem deveria lhe dar conselhos!

— É que, como estudo pouco, leio muito! Você precisa ler mais, Willian!

— Falta de tempo! — insinuei como desculpa.

— Você tem o mesmo tempo que eu! O que faz durante as longas viagens?

Almoçamos em restaurante próximo à prainha e como seus proprietários ficaram sabendo de quem se tratava, não aceitou receber o valor referido às refeições servidas; tirando apenas algumas fotos, junto com o menino artista.

Ao chegarmos à casa de meus pais às quinze horas, havia pelo menos umas trinta pessoas esperando por Regis e ele, apesar de cansado, acabou permanecendo até às dezessete horas no quintal da casa, atendendo com muita simpatia e educação a todas as pessoas que já estavam e as que chegavam, entre crianças, jovens, adultos e idosos, de ambos os sexos.

Quando pensei que ele fosse entrar para um banho, me pediu:

— Posso jogar bola com os outros meninos?

— E o banho?

— Banho eu tomo todos os dias! — caçoou ele.

— Pode ir — concordei. — Eu conheço aqueles meninos!

E lá foi ele, se juntar aos dois paraibinhas loiros, Claudileno e Edileno; além de Quinho, muito parecido com Regis; os irmãos Marcio, Moacir e Marcelo, de pele morena; além de Cláudio e Ezequiel de raça negra (os quais eu não conhecia), que jogavam pelada na rua, na esquina, pouco acima da casa de meus pais.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Conversou um pouco com todos, que lhe acolheram muito bem, então decidiu pra quem ele jogaria e se juntou, sentindo-se feliz.

Claro que não era o melhor dos jogadores! Claudileno, muito ágil, esperto, correndo o tempo todo, era o melhor. Depois vinha o irmão Edileno, os dois neguinhos (sem preconceito)... Regis, talvez fosse o pior deles! Mas isso não importava. O importante era ser feliz e sentir-se um pouco criança.

Naquela mesma tarde, intimado por ele, fomos até a recepção da rádio Difusora, onde ele conversou com o locutor Marquinho, de programa sertanejo, o mesmo que apresentou sua festa de agradecimento, que compreendendo os desejos do menino, anotara para que sempre que fosse tocar músicas sua, faria a mesma coisa.

Durante seu programa daquela mesma tarde, anunciou:

— Esta música vai com muito carinho pra vovó Aurélia, grudadinha no rádio, lá na casa da titia Amélia. Quem manda de coração, é seu bisnetinho, que a ama muito. E é ele mesmo quem canta agora pra ela. Com Regis Moura, “Caminhos do amor”.

Agradeço a Deus e a quem deu-me a vida

E ensinou-me a conviver em modo geral

Amar sobre tudo em primeiro lugar

Sempre procurando a fazer o bem

Não olhar a quem,

E sempre fugindo do caminho do mal.

Seria tão bom se todos reunissem

E plantasse flores com muito carinho

Teria certeza que todos mais tarde

Colheria flores em vez de espinhos

Vamos cultivar os campos da vida

Todos reunidos neles trabalhar

Porque Jesus Cristo será o patrão

E de coração ele nos vai pagar

Plantando carinho no canteiro do amor

Receberá em dobro de Nosso Senhor

E nenhum tostão ninguém vai gastar.

Seria tão bom…

Novamente naquela noite, notei que ele não conseguia dormir. Levantei-me e fui até ele, sentando-me em sua cama, então o abracei perguntando-lhe:

— Por que você não consegue dormir? A cama é ruim?

— Não! A cama é ótima!

— Então durma!

— Fique um pouco comigo.

— Claro!

Deitei-me a seu lado naquela cama de solteiro e permaneci por algum tempo em silêncio; mesmo assim, percebi que ele demoraria para dormir.

— O que há com você?

— Você acha errado você ficar deitado junto comigo?

— Como assim?

— Sei lá! Seria errado perante as pessoas?

— Regis, pra mim você é um filho! Não é um amante!

Meia hora de espera e então, percebendo que ele dormia, levantei-me devagar, seguindo para minha cama, de onde, permaneci acordado por muito tempo, observando seu sono difícil: ele continuava nervoso, rolando na cama, tendo variações e pesadelos.