O Escriba e a Princesa

O Corredor de Sorrisos


Tirando o fato de que ganhei o apelido de “Disco Solar”, em referência ao disco vermelho que fica na cabeça do deus Rá, até que as aulas na escola de escribas eram legais. Quer dizer, mais ou menos. Os professores, que eram sacerdotes escribas, ensinavam basicamente dois tipos de escrita. Além dos hieróglifos tinha também o hierático. Essa escrita era uma forma mais simples dos hieróglifos, sem aqueles desenhos todos. Eram utilizados para simplificar a escrita em papiros. Era difícil e chato pra caramba! Mas eu gostava mesmo era das aulas de hieróglifos justamente porque pareciam desenhos. De certo modo eu me dei muito bem em aprender eles. Mas nem tudo ia tão bem assim pra mim.

Lembram do garoto que no primeiro dia de aula disse que minha cabeça era tão grande que poderia cobrir o Sol? Seu nome era Kosey, e ele não parou por aí. Ele meio que me virou uma praga em minha vida. Toda a oportunidade que ele tinha para me fazer humilhar, me fazer passar vergonha ou me bater ele aproveitava.

— Ei Disco Solar, vê se hoje não senta na frente pra gente poder ver o professor fazer os hieróglifos na parede. – disse ele uma vez na entrada da escola. Depois ele e quem estivesse escutado ria de mim.

Percebi que eu era o único garoto que Kosey implicava. Demorei para descobrir o porquê. O fato de eu ser filho do escriba real e morar no palácio do faraó parecia fazer de mim um alvo de inimizades. Acho que as outras crianças pensavam que eu era esnobe ou algo assim e elas não queriam nada comigo. Exceto Kosey que vivia me chateando. Mas morar no palácio nunca me fez sentir ser melhor do que ninguém. Na verdade eu me sentia pior. Eu não podia sair a não ser pras aulas. E ver as crianças pela janela brincando na rua me deixava com uma sensação de inveja e tristeza.

Todos os dias eu acordava e ficava um tempão deitado olhando para o teto do meu quarto e pensava se essa vida era mesmo o que os deuses queriam para mim. Quero dizer, ser um escriba real tem seus privilégios, mas eu ainda sonhava em pintar as paredes dos templos. Depois de muito tempo pensando sobre a vida e seus mistérios eu levantei. Cocei os olhos e fui a passos rápidos para a janela do meu quarto. Dali eu tinha a visão de um dos jardins do palácio e no meio dele estava um relógio solar. A sombra projetada pelo ponteiro indicava que eram nove horas. Minhas aulas começavam as dez, estava atrasado. Andar do palácio até a escola de escribas era um caminho longo. E eu ainda tinha que me banhar e comer alguma coisa antes de ir. Preferi priorizar a segunda opção.

Depois de vestir minha roupa de linho sai correndo do quarto em direção à cozinha. O palácio era enorme. Havia dezenas de corredores que davam para outra dezena de quartos. Eu e meu pai nos mudamos para o palácio quando eu tinha três anos, mas ainda hoje nunca conheci ele por completo. Haviam locais que meu pai me proibia de entrar, como as salas de culto aos deuses e o harém do faraó. Aliás eu vi o faraó poucas vezes e sempre de longe. Ele vivia cercado por soldados. E sempre que ele passava perto algum adulto me manda me curvar em reverencia. Assim o máximo que eu via de perto eram as chinelas reais do rei do Egito.

Quando eu corria para a cozinha algo chamou minha atenção. Em uma das colunas das paredes do corredor que eu estava havia uma coisa desenhada, e não era um hieróglifo que eu conhecesse. Era uma coisa curvada. Parecia um sorriso. Que estranho, isto nunca esteve aqui, eu pensei. Deixei o sorriso pra lá e parti de novo para a cozinha. Mas novamente outra coisa chamou de novo minha atenção. As outras colunas do corredor também tinham o mesmo sorriso desenhado da anterior. Algumas mais tortos que outros. Mas o que está acontecendo, eu pensava enquanto corria olhando para os sorrisos ao meu lado. E de repente eu esbarrei em alguém e cai de bunda no chão.

— Ai! – eu falei.

— Se você estivesse em campo de batalha já teria sido morto pelo inimigo correndo assim. – disse Bomani me olhando com os braços cruzados.

— Oi Bomani. Eu já ia pra saída encontrar você. – ele segura minha mão e me levanta.

— Você sabe que está atrasado pra sua aula. E seu pai iria ficar irado se descobrisse isso.

— Desculpe eu dormir demais. Mas ainda tenho uma hora antes da aula começar. Acho que se corrermos chego na hora.

— E você acha que é capaz de correr até o outro lado da cidade? – Bomani perguntou com um sorriso desafiador. E eu respondi ao desafio.

— Claro que sim! Sei correr muito bem. – bati no meu próprio peito para demonstrar coragem e de repente meu estomago roncou alto que parecia que ecoava pelo palácio todo

— Sua barriga não concorda. – disse Bomani rindo. – Tome. Coma enquanto caminhamos.

Ele me deu um embrulho feito de pano que ele segurava na mão. Quando abri vi que eram algumas frutas e pão de mel. Automaticamente eu dei um largo sorriso para a comida em minhas mãos. Bomani deu meia volta e começou a andar ate o portão que dava para a saída do palácio. Eu ia logo atrás e enchendo a boca de pão de mel. Então, ao passarmos por outra coluna eu vi de novo aquele sorriso desenhado.

— Bomani... – eu estava com a boca tão cheia que minha voz saia abafada.

— Que foi, Masud? Se quiser mais pão vai se atrasar mais ainda.

— Não é isso. São... esses desenhos nas colunas. Eu vi um em cada uma desde que sai do meu quarto. E não estavam ai desde ontem.

— Ah sim. Devem ter sido feitos de madrugada. Tem mais em outras colunas e paredes do palácio. Começaram a aparecer a quase um mês.

— Nossa. Mas quem anda fazendo isso? O coitado já era se o faraó descobri. Vai lhe cortar a mão, no mínimo.

— Acho pouco provável. – disse Bomani. – Quem fez isso a filha do faraó, a princesa.

Essa informação me pegou de surpresa que ate deixei umas uvas caírem no chão.

— O faraó tem uma filha? – eu perguntei. Nunca tinha ouvido falar que o faraó tivesse um filho ou filha. Só sabia o que meu pai queria contar. Eu perguntava varias coisas sobre o rei pra ele, mas ele dizia que eu só precisava saber o essencial para ser escriba.

— Na verdade ele tem várias. Filhas e filhos. Já viu o tamanho do harém dele? Ahn.. provavelmente não... Enfim, ela é a filha da primeira esposa. A esposa real. Logo ela é a filha mais importante para ele. Tem tudo do bom e do melhor. E o rei gosta muito dela, tem muito ciúme. Não deixa ela andar por ai para não se influenciar pela ralé. Ela vive trancada o dia todo no quarto, coitada. As vezes o rei permite que ela saia, mas apenas com uma guarda de vários soldados em volta para que ninguém mais possa ve-la. Eu já vi ela uma vez quando levamos ela para nadar com a esposa real no Nilo.

- E como ela é? – eu estava cada vez mais curioso.

— Não sei como descrever direito. É uma garota, quase da sua idade. Usa uma peruca preta e lisa como as outras meninas. Não prestei muita atenção. As mulheres do harém me interessam mais, me entende?. – Bomani me cutucou de leve com o cotovelo e estava com um sorrisão. Eu apenas olhei sem entender o que aquilo queria dizer. – Ah, provavelmente não

— E por que ela desenha esses sorrisos nas colunas? – perguntei.

Bomani fez uma cara de que não entendeu direito o que eu disse?

— Sorrisos? – repetiu ele. – Isso não são sorrisos, garotos. São barcos.

— Barcos?

— Sim. Quer dizer. Não tenho certeza. Mas todo mundo que conhece a princesa sabe que ela adora andar de barco no Nilo. Então essas coisas nas colunas só podem serem barcos.

Passamos pela ultima coluna rabiscada antes de chegarmos à saída do palácio real. E lá estava o ultimo desenho da princesa. Aquilo era um sorriso, definitivamente, eu pensei na hora.

Nós saímos do palácio e apressamos o passo. Eu já havia terminado de comer minhas frutas e o pão de mel, mas se pudesse queria um pouquinho mais. Mas eu não podia me atrasar. Lembrei que hoje era um dia importante. Eu iria fazer meu primeiro teste de conhecimento. Esse teste servia unicamente para que os mestres escribas soubessem quem realmente estava aprendendo e quem tinha um grande potencial para a arte de escrever hieróglifos. Me lembrei também que foi por isso que acordei tarde. Passei a noite estudando a luz de uma lamparina para sair bem no teste. Meu pai exigia nada menos que o primeiro lugar para mim.

Bomani andava muito rápido, era difícil de eu manter o ritmo dele. Ele era um soldado experiente. Tinha apenas trinta e dois anos, mas já havia participado de várias campanhas de guerra em outros territórios. Ele vestia a típica armadura de couro do exercito egípcio, mesmo assim era possível ver algumas cicatrizes em seus braços, pernas e uma no lado esquerdo do rosto. Talvez ate tivesse cabeça careca, mas o capacete e o pano protetor cobriam ela. Eu ficava imaginando como era uma guerra. Com certeza não era um lugar de um garoto magricelo como eu. Mas sabia que os soldados que voltavam de grandes guerras eram tratados como heróis. Seria legal ser tratado assim

Finalmente havíamos chegado à escola de escribas. Eu estava suado e mais cansado que um camelo no deserto. Mas eu cheguei a tempo de entrar antes que fechassem os portões. Eu me despedi de Bomani:

— Tchau, Bomani. Obrigado e até mais tarde. – antes que eu pudesse me virar para entrar ele disse:

— Espera ai, Masud. Eu não vou poder levar você de volta ao palácio hoje.

— Ué, mas por que?

— Bem eu tenho uma coisa importante pra fazer marcada justamente nessa hora.

— Então eu volto sozinho mesmo. – eu já estava ficando alegre por saber que poderia andar pela cidade sozinho. Mas minha alegria durou menos que um piscar de olhos.

— Não. Seu pai não iria gostar de ver você chegando sozinho. Ele iria era te dar uma bela bronca.

— Verdade... Mas quem vai me buscar, então?

— Meu irmão mais novo, Asim.

— Não sabia que tinha um irmão. E como ele vai saber quem eu sou? Vai sair gritando o meu nome?

— Não se preocupe. Eu descrevi você muito bem a ele. – dizendo isso ele acenou um adeus e deu meia volta para partir. Neste instante eu me lembrei de perguntar algo muito importante.

— Espera ai, Bomani

— O que foi? – ele apenas olhou para trás com a cabeça.

— Qual é mesmo o nome da princesa? – perguntei.

— Monifa . – dizendo isso ele partiu. Monifa, bonito nome, eu pensei.

Mas não tinha mais tempo de pensar em princesas, nomes ou sorrisos. Disparei em direção a minha sala de aula e assim que cheguei a porta vi um mar de rostos olhando para mim.

— Quase atrasado, Masud. – disse o Mestre Jahi. – Sente-se logo, menino. Vai fazer o teste aí em pé?

Sem dizer nada fui me recolher no meu lugar. Percebi que os outros alunos também estavam nervosos com o teste.

— Muito bem. Agora que todos estão aqui faremos nosso primeiro teste de eliminação. – disse Jahi.

— Eliminação! – falaram alguns dos meus colegas. E realmente isso foi uma surpresa para todos.

— Isso mesmo – continuou o mestre. – Como sabem nossa escola de escribas é a mais tradicional e competente de todo o reino. Aqui somente saem os melhores dos melhores escribas. Logicamente que muitos de vocês não possuem o devido talento. Portanto a cada teste somente os que fizerem a melhor pontuação continuam em frente. Na verdade, apenas serão escolhidos cinco de cada turma.

Começou um burburinho na sala. Percebi que a maior parte dos alunos estava olhando para os outros e apontando o dedo indicador. Estavam contando. Sim, eles queriam saber a quantidade que de alunos que seriam eliminados quando os cinco forem aprovados. Eu não precisei contar naquela hora. Já havia contado logo no primeiro dia de aula. Éramos dez. Ou seja, metade de nós iriam se dar mal. Droga, eu estava nervoso. Meu pai nunca havia mencionado teste de eliminação. Ele só dizia o quanto rígido era a escola de escriba de Tebas e que era pra eu me esforçar muito nos estudo para me sair bem. Eu fiz isso, estudei pra caramba. Mesmo assim a insegurança em mim crescia mais a cada instante.

— Silencio! – gritou o meste Jahi batendo a sua vara de disciplina com força na mesa. – Prestem bem atenção pois já vamos iniciar o teste. Ele será dividido em duas etapas. A primeira um teste em escrito. E depois um teste oral.

— Fica pior a cada instante. – eu pensei.

— O teste escrito será o primeiro. Depois eu lhes darei um intervalo para em seguida aplicar o teste oral. E vou logo avisando que não será fácil. Talvez somente os que realmente estudaram desde o inicio conseguirão estar entre os aprovados. Vamos começar.

“Talvez”? Essa simples palavra fez minha mente ficar em branco na hora. Meu pai nunca havia me passado testes quando me ensinava em casa. Apenas verificava se eu escrevia correto os hieróglifos. Depois ele nem dizia se estava bom ou não. Apenas falava “continue praticando”. Espero que toda a minha pratica valha a pena agora.

O mestre entregou o teste para cada um de nós. Ele estava em um pedaço de papiro enrolado. Abri ele devagar e tremendo. Quando deslizei meus olhos pela folha eu senti um certo alivio. Apesar de tudo não era lá o desafio impossível que eu esperava. Haviam varias linhas de texto em hieróglifo tradicional. O que tínhamos que fazer era escrever eles em hierático. Molhei meu pincel no pote de tinta e comecei a escrever. O tempo passava e o mestre Jahi estava de olho nele. Literalmente. Pela porta da sala ele observava a sombra do grande relógio solar que ficava no centro da escola. Mas não olhava tempo o suficiente para dar a chance de algum espertinho da uma olhada no papiro do vizinho. Em certo momento ele disse que se pegasse alguém bisbilhotando o teste de outro esse iria desejar ir direto para o Julgamento de Osiris no mundo dos mortos. Acho que o alerta foi o suficiente porque ninguém foi pego nesse ato até o mestre anunciar o fim do tempo do primeiro teste.

— Podem ir para o intervalo agora. Quando for a hora de voltar vocês serão avisados. Lembrem-se que depois será o teste oral.

Os alunos saíram da sala devagar. Uns mais cabisbaixos que os outros. Já eu estava confiante que fiz um bom teste, mas preferi não demonstrar entusiasmo. Resolvi ir até um pé de tâmaras colher algumas para comer. Estava faminto. As tamareiras ficavam um pouco distante das salas de aula mas pensei que se fosse rápido eu poderia voltar a tempo de ouvir o alerta de retorno pras salas. Chequei até as arvores e fiquei surpreso de ver como eram mais altas de perto. Acho que eu nunca conseguiria subir para pegar as frutas.

Tentei escalar uma delas, mas só fazia cair e ganhar arranhões. De repente ouço chamarem meu nome.

— Ei, Masud.

Quando me virei levei a terceira surpresa daquele dia. Era Kosey com dois garotos um em cada lado seu. O que será que ele quer comigo? Não tinha mais ninguém por perto pra rir dos apelidos que ele me inventava.

— Ahn, Oi Kosey. Como foi com seu teste?

— Era exatamente sobre ele que vim falar com você. – ele começou a se aproximar de mim. – Você é o melhor aluno da sala. Melhor até do que eu.

— Ah, valeu. – Na verdade eu queria ter dito “ Eu e o resto da turma também”.

— É por isso que você vai ter que se dar mal no teste oral. – ele disse.

— Como é que é?

— Se você se der mal vai ser mais fácil para eu conseguir ser aprovado.

Eu achava que ele só podia estar de brincadeira com minha cara. Mas nenhum sorriso saia do rosto dele. Ele estava falando sério.

— Eu não posso fazer isso. Meu pai quer muito que eu passe.

— E os meus também. – ele aumentou a voz. – Se eu for reprovado da escola de escribas meu pai me manda pro treinamento no exercito. E já sei que não é nada bom. Então você vai ter que falhar.

Eu comecei a ficar assustado. Kosey era bem mais alto e robusto que eu. Os seus dois capangas também não eram nada pequenos. Mesmo assim eu me mantive firme.

— E- eu não vou fazer isso!

De repente Kosey avançou em minha direção e me deu um soco. Foi tão rápido que quando me dei por mim estava caído no chão com gosto de sangue na boca. Kosey e os outros dois me olhavam do alto.

— Isso é só uma amostra do que vai te acontecer se não fizer o que eu disse.

Então uma voz alta cortou o ar. Era um dos mestres avisando que o intervalo terminara, sinal para que os alunos voltassem pras salas. Kosey deu meio volta, mas antes de ir olhou de novo para mim caído.

— E se falar isso pra um adulto será pior.

Ele então se foi com seus comparsas. Eu fiquei ali no chão, caído, sangrando e sem saber o que fazer.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.