O Cavaleiro de Sangue

Capítulo 2: Ambição Jovial


Capítulo 2

Ambição Jovial

Tavos nunca mais brincara conosco. Sua mãe o havia proibido sob as alegações da mãe de eu ser endiabrado. O curioso era que ele próprio parecia ter um demônio encarnado no corpo, já que andava como os garotos retardados da cidade, que falavam através de gemidos e urros e tinham trejeitos infantis mesmo se já fossem homens feitos.

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Hoje penso naquela brincadeira como uma das atitudes mais tolas da minha vida. Brincar perto de um palácio imperial e fazer com que pensassem que eu poderia entrar nele de alguma forma. A mente infantil é tola e fantasiosa, mas foram essas mesmas fantasias bobas que fizeram um garoto tornar-se demente para o resto da vida, quase o matando. A mente infantil, apesar de suas limitações, também é poderosa quando assim deseja ser.

Minha infância discorreu de maneira relativamente normal — se é que a situação de ser taxado como endiabrado fosse normal, mas eu me acostumara àquilo rapidamente — mesmo com aquele acontecimento. A única coisa que havia modificado dentro de mim fora a centelha que ardia dentro de mim sobre a cultura vídica. Eu nunca fora capaz de entender por que eu a achava tão interessante, mas agora posso perceber por quê: ao me olharem como uma criança endemoniada, as pessoas me temiam, e eu gostava daquele controle que eu mantinha sobre as pessoas. Por causa disso, jamais tentei desmenti-los, principalmente depois da conversa que eu tivera com Adovaal. Inclusive, tentei fazer com que minhas atitudes parecessem ainda mais sombrias aos olhos dos outros. Aquilo atraía alguns olhares reprovadores da minha família, mas sabia que também acreditavam que eu estava possuído, pois meus irmãos e meu pai gradualmente perderam o interesse em me castigar. Minha mãe também nunca havia me castigado, mas senti que ela se tornara mais relapsa em relação a mim.

Mas isso não me agradou. Por ser a única pessoa que não me olhava com medo ou desprezo dentro da minha própria casa, ela era um porto seguro para mim. Era a pessoa a quem eu podia recorrer quando meus irmãos me castigavam e era a pessoa que intercedia por mim quando meu pai era severo demais comigo. Depois dos constantes boatos que se seguiram ao acidente com Tavos, ela ficou distante como um navio à deriva no horizonte, e não mais o porto seguro em terra firma que tinha sido.

Hoje penso que ela finalmente entendeu o filho que tinha. Eu nunca fora uma criança fácil e sempre soube disso, mas ela sempre tentou me acobertar das travessuras — algumas que eram tão cruéis ao ponto de serem verdadeiras maldades — que eu fazia. Quando os boatos chegaram aos seus ouvidos, ela percebeu que defendia não um filhinho querido injustiçado, mas um garoto sem modos e mal educado que nunca tivera razão em ser protegido.

E se a minha infância havia sido difícil, o início de minha vida adulta, a minha juventude, foi ainda mais complicada.

Eu já não tinha os mesmos colegas com os quais contar. Alco e Sinesci afastaram-se gradualmente de mim, também temerosos com os boatos que os pais lhe contavam. Isso demorou algum tempo, no entanto, e não fora de súbito como Tavos — que, além dos boatos dos pais, tinha a idiotia para interceder por ele. Apenas Adovaal mantinha-se leal a mim, e eu a ele. Era o único que não dava ouvidos às fofocas, já que sabia a verdade por trás dos deuses vídicos.

No entanto, já não tínhamos a mesma disposição de criança nem o mesmo tempo disponível. Adovaal e eu agora trabalhávamos para nossos pais como comerciantes. Ele na venda de vasos, eu na venda de tecidos. Nossos pais haviam nos obrigado a trabalhar e seguir o negócio de família. Adovaal parecera aceitar sem contestações. Eu, porém, não estava nem um pouco contente com aquilo. Minha reputação continuava a espantar os clientes, principalmente com os indícios de uma guerra civil entre os eldônicos e os vídicos.

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Os vídicos estavam cansados de serem subjugados pelo Alto Império. Eram orgulhosos demais de suas capacidades bélicas para se deixarem controlar por um imperador estrangeiro. Nós, háltros, também partilhávamos um pouco do seu orgulho, mas tolerávamos a situação passivamente. Nosso desgosto com o fato de sermos governados por um estrangeiro refletiu-se na nossa xenofobia contra os davrílicos, os nativos da Anvéria. Nunca antes havíamos tido problemas com aquele povo. No entanto, quando os davrílicos se rebelaram contra sua própria servidão, os háltros também passaram a menosprezá-los. Mas não menosprezavam os davrílicos da mesma maneira que faziam com os parnos ou ainda mesmo com os vídicos. Os davrílicos eram apenas vistos como rivais, mas rivais à altura. Os parnos eram simplesmente vistos como feiticeiros que se quebrariam com um golpe, e os vídicos eram selvagens animalescos que viviam no meio da selva. Havia outras etnias menores, como os naerquízios, um povo que, segundo as histórias, também eram feiticeiros, mas ainda piores que os parnos. Dizia-se que os naerquízios tatuavam-se com palavras e tinham cabelos brancos como uma nuvem num dia ensolarado, brancos como a neve em que viviam no extremo norte da Anvéria.

Toda a situação da guerra e meu desconforto com o trabalho que meu pai me impusera me fazia interessar-me ainda mais pela grandeza com a qual eu sempre fora fascinado desde criança. Eu ia às tavernas com Adovaal em nosso tempo livre e ouvia as histórias dos homens.

— Virnos foi à guerra contra os selvagens pretos — dizia um dos homens na taverna, engolindo sua cerveja a largos goles entre risadas e história. — Dizem que matou quarenta de uma só vez, sem parar para limpar a espada. As armaduras douradas e brilhantes dos vídicos se tornaram reluzentes de sangue, assim como a espada de Virnos.

— E quanto ao capitão Caltce? — outro retorquiu. — Ele lutou contra um dos próprios emires, pelo que dizem! — O homem riu, fazendo todos os outros gargalharam de orgulho juntos, e então se uniram num brinde.

Eu bebia minha cerveja enquanto ouvia a glória alheia percorrendo meus ouvidos. No entanto, eu não era capaz de poder ouvir tudo o que queria, porque Aldovaal bebia demais e eu sempre tinha de ajudá-lo a voltar para sua casa. Mas se eu pudesse, ficaria até o amanhecer, ouvindo as histórias dos guerreiros que iam a empreitadas e as canções épicas dos menestréis. Eu adoraria poder estar na posição daqueles homens que contavam a história, mas não queria contar sobre as vidas de outros; queria contar sobre a minha própria vida, uma vida de glória, fama e riqueza fora de Trebaněscu.

A vida de comerciante não era para mim, definitivamente. Detestava vender tecidos a velhas irritantes ou a mulheres nobres presunçosas. Detestava ainda mais quando desdenhavam de mim pela minha reputação de endemoniado, que eu ganhara na infância. Com o tempo, essa minha fama acabou tornando-se motivo de riso mais do que temor, e então eu passei a detestá-la ao invés de secretamente adorá-la.

E o tempo também tornou o império num lugar instável. No ano de seiscentos e nove, a guerra civil entre os eldônicos eclodiu. Os eldônicos do leste e do oeste tinham uma rivalidade enorme que fora acentuada pelos eventos da Crise da Moeda. Eu não havia nascido nessa época, mas diz-se que foi um terrível momento para a economia do império, e os eldônicos do leste passaram a usar uma moeda fictícia que eles próprios criaram. Aquilo revoltou não apenas o Alto Imperador, mas como os eldônicos do oeste. Dezesseis anos depois, eles voltavam-se novamente contra o império, agora para tornarem-se um território independente.

Meu desejo, naquela época, era de ser um guerreiro. Contudo, eu jamais pegara numa espada e não sabia os artifícios das línguas, como os vídicos e os parnos faziam.

Adovaal, nos tempos em que passávamos juntos, explicava-me mais sobre os parnos e vídicos, saciando minha curiosidade a respeito daqueles povos a princípio estranhos, mas fascinantes.

— Os Acadêmicos e os vídicos dizem as línguas — ele me dissera certa vez enquanto bebíamos numa taverna.

— Dizem as línguas? O que isso significa? — Eu não havia entendido a expressão.

— É quando alguém fala uma língua com propriedades fora do comum. No caso, o parno, o vídico, o naerquízio, entre outras.

— Existem outras? — Eu ficara ainda mais assombrado com aquela afirmação.

— Sim. Dizem que o sardomo é a língua mais poderosa que existe, sem contar a língua dos deuses, é claro. Mas a língua dos deuses não passa de uma suposição. Ninguém nunca a ouviu, para falar a verdade.

Eu estava extasiado. Tudo aquilo era incrível demais. A possibilidade de dizer as línguas me era ainda mais interessante, poderosa e ameaçadora que empunhar uma espada. Naquele momento, eu gostaria de ser um vídico: um guerreiro completo, que sabia manejar a espada e dizer as línguas. Infelizmente, aquela possibilidade estava muito longe das oportunidades que eu poderia ter vivendo em Trebaněscu. Ainda que eu vivesse em Biancennus, a terra da Academia, eu poderia aprender a dizer as línguas, mas eu vivia a duas semanas de viagem até lá, o que tornava essa possibilidade um pouco menos improvável quanto ser um vídico.

— Martos — Adovaal tomou novamente minha atenção para si —, pretendo lutar no exército. A vida de comerciante não é para mim.

— Também não é para mim — respondi-o, terminando minha cerveja. — Sabe manejar uma espada?

— Não, mas o exército está tão carente de soldados que estão aceitando até comerciantes como nós. — E deu uma boa gargalhada que também me contagiou. — Eles provavelmente vão ter de ensinar o mínimo possível para aprendermos a manejar uma espada.

— Ou simplesmente vão nos dar o equipamento e pedir para nós nos virarmos no campo de batalha — sugeri, pedindo outra rodada de cerveja ao taverneiro. — De qualquer forma, eu não gostaria de lutar pelos eldônicos do oeste.

— Vai trair seu próprio povo?

— Os eldônicos são meu povo, sem distinção de leste ou oeste — eu disse aquilo com uma certa insegurança. Nunca havia pensado em mim mesmo como um háltro, minha etnia, ou como um eldônico, minha nacionalidade. Mas minha voz saiu com tanta firmeza naquele momento que até eu mesmo acreditei nas minhas palavras, bem como Adovaal. Talvez fosse o efeito da bebida. — E os eldônicos do leste têm a Academia. Eu poderia aprender a dizer as línguas lá.

— Você não desiste mesmo dessa ideia!

— Sou fascinado por isso desde criança. Talvez seja o demônio vídico encarnado. — E nós dois rimos daquilo.

Minha vontade de lutar por um povo que não me oferecia nenhuma possibilidade de grandeza era nula, portanto não me alistei quando Adovaal fora. Fiquei tentado a ir para acompanhar meu amigo no campo de batalha, mas minha ambição e minha falta de paixão por aquele lugar falaram mais alto e eu permaneci um simples comerciante.

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Àquela altura, meu pai já estava velho demais, e eu tinha que administrar a maior parte dos negócios, exceto as finanças. Como eu já era um homem feito de quinze anos, meu pai muitas vezes me colocava para cuidar de nossa venda no mercado e, às vezes, para ir acompanhando algumas caravanas até cidades próximas junto aos meus irmãos. Eu recebia uma parte dos lucros e, nas caravanas, eu me presenteava com trinta por cento do valor pago aos produtos ao invés dos vinte por cento que meu pai me pagava como salário. Meu pai às vezes me interrogava sobre os baixos lucros, e eu lhe respondia que os compradores estavam pechinchando demais. Depois disso, eu e Adovaal íamos às tavernas gastar tudo em rodadas de cervejas ou nos bordéis, dormindo com incontáveis mulheres. Imagino quantos bastardos eu devo ter tido devido às minhas aventuras noturnas com Adovaal.

Porém, meu pai adoecera seriamente durante certo período. Aquilo fez surgir um terrível medo em mim de meu pai morrer e minha sina se concretizar: ser um reles comerciante e não poder seguir minhas próprias ambições. Eu não seria o primeiro herdeiro da venda, já que Fèlitce, por ser o filho mais velho, a herdaria, mas eu estava certo de que Fèlitce e Adao também preferiam vidas regradas a álcool e putas tanto quanto eu, e fariam recair sobre mim a responsabilidade do negócio.

Meu pai estava se preparando para liderar uma caravana antes de a doença o acometer. Eu não sabia qual era o destino da caravana e imaginava que eu não seria autorizado a ir. Eu seria o responsável a cuidar da venda no mercado, enquanto meus irmãos, provavelmente, sairiam em viagem. Entretanto, ele me chamou em seus aposentos certa manhã para conversar sobre negócios, segundo ele.

Entrei em seu quarto pesadamente, temendo estar importunando sua recuperação ou seu sono. A única janela fazia entrar a luz tépida e pálida da manhã. Parecia que até o tempo naquele dia era complacente com a saúde fragilizada de meu pai. Soube que meu pai estava em seus últimos momentos pelo cheiro de morte e putrefação no quarto. O cheiro da doença e da velhice inundava o quarto, e eu tentava fazer o máximo para não franzir o nariz. Minha mãe estava sentada à beira da cama, limpando seus olhos com um lenço enquanto fungava baixinho. Chorava de tristeza, pois seu marido estava à beira da morte e chorava de desgosto, pois seus filhos eram vagabundos irresponsáveis que só queriam beber e trepar.

Naquele momento, tive uma enorme pena dela e uma vergonha de mim mesmo. Gostaria de ser invisível, de não existir para não lhe causar mais desgosto. Seu desgosto era triplicado: cada filho, uma tristeza. Acredito que era por isso que ela sempre quisera uma filha: para poder lhe enfiar toda a responsabilidade goela abaixo que não conseguiu nos fazer engolir.

— Mulher — disse meu pai, numa voz rouca, mas ainda assim potente. Mesmo às portas da morte, ainda conseguia arranjar forças —, deixe-nos a sós. Quero falar com Martos sozinho. — Minha mãe apenas assentiu, chorando ainda mais copiosamente, e saiu, fechando a porta. — Garoto — meu pai começara —, não confio em seus irmãos para a caravana. Acredito que estejam me roubando. O lucro está pequeno demais, e acho que eles têm pegado uma parte nos lucros e gastado tudo em cerveja barata e mulheres asquerosas de bordel.

Meu coração dera um salto quando ele falou sobre o lucro. Meu pai descobrira, mas ao invés de me culpar, culpara aos meus irmãos. Meu medo de ser descoberto tornou-se ainda maior. Aquilo indicava que meu pai possuía um resquício de confiança em mim, e ao vê-lo naquele estado, eu não queria quebrar essa tênue linha de esperança que meu pai me depositara.

— O que deseja, meu pai? — falei num tom tão formal que meu pai estranhou. O medo de ser descoberto e sua doença me deixavam desconfortável demais perante ele.

Ele pareceu não se importar com minha formalidade excessiva.

— Vou deixar Fèlitce cuidando da venda — declarou. — Você partirá com Adao para Biancennus.

Meu coração mais uma vez deu um salto tão grande que pensei que meu pai até poderia tê-lo ouvido. A oportunidade que eu tanto aguardara estava ali, a minha passagem para Biancennus, para os exércitos, para a Academia e para a glória a qual eu tanto sonhara! Meu êxtase não me deixou responder, e fiquei alguns segundos lívido, sem palavras para descrever meu agradecimento ao meu pai e para descrever a mim mesmo a minha própria sorte. Meu pai não apenas havia culpado as pessoas erradas pelos meus pequenos furtos, como havia me dado a minha passagem para a grandeza.

— P-pai... — consegui balbuciar, ainda sem conseguir acreditar na sorte. — Obrigado. Muito obrigado. Farei com que você e minha mãe se orgulhem de mim — e respondi aquilo como a mais pura verdade. Talvez a frase mais verdadeira que saíra dos meus lábios durante todos meus quinze anos de vida. Se eu realmente batalhasse na guerra e me inscrevesse na Academia, eu sabia que seria um motivo de orgulho para minha família, apesar de que meu pai jamais iria ver meus feitos.

— Junte suas coisas — ele se limitou a dizer. — Partirão hoje à noite. Adao está negociando com os homens da caravana. Já avisei a ele que você irá acompanhá-lo. Vocês irão seguir pela estrada que passa próxima à Colina do Imperador. Seguirão nela e chegarão a Biancennus. Agora me deixe dormir. Estou cansado e sentindo dores. Chame sua mãe de volta. — Eu fui me afastando à medida que ele começou a proferir suas lamúrias, seu tom de voz cada vez mais brando e sussurrado, anestesiado pela doença.

Assim que saí do quarto, atendi ao desejo de meu pai e chamei minha mãe, que voltou correndo para o quarto. Eu também corri para juntar meus pertences. Juntei tudo o que podia, afinal, eu não pretendia voltar. Meu destino final era Biancennus, e eu residiria por lá, portanto juntei todo o dinheiro que eu possuía, minhas roupas e alguns outros objetos que poderiam vir a ser úteis, como uma faca, caso encontrássemos eventuais ladrões pelo caminho.

Quanto a noite caiu, antes de ir ter com a caravana, eu fui me despedir de Adovaal. Imaginei que ele estaria na taverna em que costumávamos frequentar e fui até lá. De fato, o encontrei bebendo cerveja, sozinho, enquanto todas as mesas ao redor estavam ocupadas de homens brutos e beberrões, e o ar se enchia de histórias de guerreiros, de suor masculino e cantigas dos menestréis. Um ambiente confortável e caloroso, um lugar onde eu nunca me sentira excluído, temido ou menosprezado. Penso que poderia estender meus domínios para além da traição e do caos; por que não ser também o Deus das Tavernas?

Quando entrei, Adovaal sorriu para mim e me cumprimentou calorosamente.

— Martos! — disse, levantando-se para me dar um breve abraço. — Pensei que não iria beber comigo esta noite! Eu já estava de saída, mas acho que vou pedir mais uma rodada de cerveja, já que chegou.

— Eu também já estou de saída — expliquei-me, fazendo um gesto para dizer que não queria beber. — Estou de partida. Vou embora para Biancennus.

— Quê?! — Adovaal quase se engasgou com a cerveja. — Vai embora? Para sempre?

— É o que devo fazer. Sabe que minhas ambições me levam até lá, e eu finalmente consegui a oportunidade para conseguir aquilo que desejo.

Adovaal pareceu transtornado. Olhou para mim sem expressão e depois para o conteúdo de sua caneca, num silêncio que indicava que seu mundo acabara de ruir sob seus pés.

— E nossas noites nas tavernas? Nossas conversas? Nossas caminhadas nas Ruas do Gambá? Nosso trabalho no mercado? — ele inquiriu.

— Você não será mais um mero comerciante — eu o corrigi. — Você agora será um guerreiro, e eu, um Acadêmico.

Mais uma vez ele olhou para sua cerveja. Não sei por que ele fazia aquilo. Talvez o reflexo de seu rosto no líquido enegrecido o fizesse olhar para sua própria expressão de quem não conseguia acreditar no que ouvia. Ou talvez olhava para a bebida tentando enxergar seu futuro sozinho depois que eu partisse. Não importava. Ele pôs a caneca sobre a mesa novamente, levantou-se e me deu um vigoroso abraço.

— Boa sorte, amigo. Meus dias serão mais solitários, mas saberei que terá partido em busca de seus desejos, em busca da sua glória. Mas antes de partir, permita-me um brinde. Taverneiro — ele chamou —, traga um copo para ele! — Apontou para mim, e o taverneiro prontamente o atendeu. Eu vasculhei meus bolsos por uma moeda, mas Adovaal me impediu. — Eu propus o brinde, então a cerveja é por minha conta.

Sorri para ele, e assim que o taverneiro trouxe minha cerveja, nós brindamos e bebemos num só gole. Voltamos a nos abraçar e, após trocarmos nossos adeuses, parti pela noite, rumo à Colina do Imperador.

A Colina do Imperador era a sede do Palácio Imperial, que ficava no alto do monte. Instantaneamente, lembrei-me da minha infância e do episódio com Tavos. Sempre me lembrava daquilo quando passava por lá. A árvore em que eu subira fora cortada, e agora os arredores do palácio eram nus, guardados apenas pelos seus grandes muros.

Eu andava pela mesma estrada por onde iríamos viajar. Ao longe, eu avistei alguns cavalos e um grupo de pessoas. Apressei o passo para me deparar com a caravana que me aguardava. Adao, meu irmão, ao me ver, aproximou-se de mim o mais rápido possível para me repreender pela demora.

— Você foi o último a chegar! — Sua expressão era puro desgosto. — Já deveríamos ter partido há muito tempo!

— Eu estava apenas me despedindo de Adovaal — tentei explicar.

— Pouco me importa, apenas seja rápido de agora em diante. Seu cavalo é aquele marrom. — Ele apontou para um dos animais parados no meio da estrada. Era um bonito garanhão de crina negra, já selado. — Monte longo, não temos mais tempo a perder — ele me apressou e montou seu animal, uma égua negra. Eu fiz como ele me ordenara e montei o cavalo. Os caravaneiros também se apressaram em montar seus animais ou em suas carroças, e logo já estávamos em movimento, rumo a Biancennus, a cidade da minha glória.