Killian

Olhava para fora da janela, dando boas vindas silenciosas para o condado que sentira tanta falta. Fazia nove anos desde que eu partira e desde então, nunca mais tinha colocado meus olhos naquela paisagem tão familiar e ao mesmo tempo estranha. O tom verde acinzentado e a grama com aspecto amarelados típicos do fim do outono e que era o perfeito prenúncio que o inverno logo se instalaria, coloriam os campos que se estendiam adiante. As cores das folhas em tons de vermelho e laranja davam o toque de charme que recordava e sentia falta de ver em Londres. Talvez estivesse ainda mais bonito de se olhar se do lado de fora, se não estivesse caindo pequenos, incessantes e irritantes perdigotos de chuva.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

—Detesto o campo. – a voz de Milah fez-me desviar os olhos da janela para encará-la. – As pessoas do campo são rudes e simplórias demais. É impossível ter uma conversa civilizada com elas sem que acabem mencionando os colhões de seus porcos.

—Está sendo exagerada, querida. – discordei recebendo um olhar torto dela. – Posso garantir a você que são pessoas extremamente agradáveis.

—Mudará seu pensamento, Killian, quando voltar a conviver com elas. Há quanto tempo não coloca os pés no campo? Dez anos?

—Nove.

Milah deu de ombros com indiferença.

—Sei que cresceu aqui, mas esse não é mais seu mundo e deve ter esquecido quão rústico é. Recorda-se quando seus pais foram morar na cidade juntamente com você? Eles eram bárbaros, Killian! Que não sabiam se comportar diante da sociedade. Isto porque seu pai era reverendo da paroquia, era de se esperar que tivesse modos.

Voltei minha atenção para o lado de fora, preferindo ignorar o comentário sobre meus pais. Milah sempre tocava no assunto de forma maldosa, diminuindo eles e seus modos do campo. Havia convencido meu tio a deixar que meus pais se mudassem para Londres, onde estariam por perto e eu poderia cuidar deles assim que terminei os estudos e escolhi ficar na cidade. Por mais que tenha torcido o nariz, afinal ele esperava que eu deixasse os vínculos para trás e começasse a chamá-lo de pai, acabou por concordar e havia arranjado uma casa bem no centro de Mayfair para os dois, com uma mesada que era mais que o suficiente.

—Tenho medo de me tornar uma selvagem. – adicionou.

Praguejei mentalmente por ter ficado acordado. Poderia ter desmaiado como os pais de Milah, que babavam ao nosso lado, dormindo profundamente. Ou pelo menos fingido.

Não tinha paciência para as reclamações de Milah.

E ainda assim estava comprometido com ela.

Estava ansioso para me livrar do confinamento abafado da carruagem. De me ver longe do Sr. e Sra. Odom e de Milah, mesmo que fosse por poucos instantes, trancado em meu quarto na casa de campo deles, ou em uma caminhada. Queria sentir o vento em meu rosto, inspirar o ar limpo do campo que eu sabia ser capaz de acalmar a ansiedade. O cheiro da grama, de madeira molhada. Ouvir os ruídos que apenas encontraria se estivesse ali, longe da correria e da civilização de Londres, que me deixava exausto depois de um longo dia tendo que conviver nas ruas abarrotadas de gente, ouvindo gritos, carruagens por todos os lados. O cinza, apagado da cidade que estava sendo invadida pelas fábricas.

Estava ansioso para andar e ouvir o cascalho sendo escangalhados embaixo de meus pés, os insetos tocando a vida deles de modo invisível entre os matos e árvores.

Passamos por um campo que no verão costumava ser destinado ao plantio de trigo e tive a impressão de ver um leve vislumbre louro rodopiando contente, todavia, quando pisquei e voltei a observar, não havia mais nada.

Era um dia quente demais para se ficar dentro de casa enquanto escutava meu pai escrevendo seu sermão para a missa dominical e minha mãe reclamando dos consertos que nunca vinham que ele havia prometido na casa.

Calcei as botas, decidido a procurar algo que me rendesse algum dinheiro, já que eu não fazia ideia do que fazer, a não ser esperar pelo momento em que iria herdar a casa paroquial.

E Deus que me perdoasse, eu não queria aquela vida.

Mas o que eu poderia fazer se não fosse ocupar o lugar de meu pai? Como eu conseguiria ter uma vida razoavelmente boa se não possuía dinheiro para bancar a faculdade?

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Meu futuro parecia um grande borrão escuro agora que não teria que voltar para Eton quando o verão acabasse para mais um ano de estudos e isso me deixava agoniado.

Pensar que não teria nada para preencher meus dias.

Parei perto de uma cerca, observando os trabalhadores segando o trigo debaixo daquele sol ardido. Todos pareciam infelizes aos meus olhos, passando a mão repetida vezes para secar o suor da testa, parecendo exaustos.

Até que um riso chegou aos meus ouvidos e virei-me procurando a origem daquele som tão alegre, que destoava a imagem dos trabalhadores.

Uma garota, que deveria ter seus quinze ou dezesseis anos, rodopiava no meio das espigas de trigo, como se tentasse distrair um casal que parecia estar no limite do cansaço. O homem e a mulher sorriram e logo a mais velha, se juntou a menina, dançando e rindo. Admirei o largo repuxar de lábios do homem, e seus olhos que estavam carregados de orgulho ao fitar as duas mulheres.

Estava claro que elas eram a luz de seus dias.

A garota saiu correndo, desaparecendo entre as espigas amareladas, voltando um pouco depois com um balde cheio d’água.

Ela tirou o pano que escondia os cabelos e vi fascinado, um amontoado de ondas louras descerem até a base de suas costas.

Foi apenas quando a menina ergueu os olhos, fitando-me com curiosidade, antes de abrir um sorriso, como se eu fosse um amigo que não via há um longo tempo, em um silencioso cumprimento, que percebi que estava encarando-a fixamente por um período longo demais e que poderia ser considerado impertinente.

Algo dentro de mim parecia correr rápido. Uma estranha euforia que não sabia explicar de onde vinha.

Ela desviou o olhar, como se estivesse sem graça pelo tempo que fiquei a observando, então voltou a conversar com o casal, que deduzi serem seus pais, já que se pareciam tanto. Eles olharam em minha direção e assentiram, a mulher dando-me um sorriso cheio de bondade e o homem, um franzir de testa.

Dei-me conta, alarmado que a garota vinha em minha direção, parecendo um pouco temerosa.

—Olá. – ela cumprimentou. – Você é filho do reverendo Jones, não? – indagou.

—Eu... Sim. Sim, eu sou.

—Já o vi pelos arredores nos verões, mas não tinha certeza. – comentou.

Estudei seu rosto que estava perdendo as formas da infância e que se moldaria para uma face de traços delicados e bem marcados.

Como eu nunca a havia visto?

Claro, eu não costumava sair muito de casa nos verões que eu ia passar as férias ali, quando não era convidado para ir para a casa se algum amigo em que íamos nos divertir nos bares de Londres, com vinho barato e eventualmente mulheres.

—Está um dia quente. – voltou a falar. – Gostaria de um pouco de água? Acabei de pegar do poço e está fresquinha.

—Eu adoraria Srta...

—Swan. Mas, por favor, chame-me apenas de Emma, senhor Jones. Entre aqui, meus pais ficarão encantados de conhecê-lo.

Tive a noção de que meu sorriso saiu acanhado e provavelmente mais parecido com uma careta, mas pulei a cerca, juntando-me a garota, sem conseguir desviar os olhos.

Eu até queria, mas não conseguia.

—Se irei chamá-la de Emma, então insisto que me chame de Killian.

Emma sorriu para mim, fazendo ruguinhas surgirem na ponte de seu nariz bronzeado do sol e suas bochechas se erguerem levemente.

—Muito bem, Killian... Venha. – segurou em meu braço, puxando-me com ela.

E eu não fazia a mínima ideia do que estava acontecendo dentro de mim.

Mas estava gostando daquela confusão interior.

A carruagem parou em frente, a casa e observei sua fachada simples, diferente da residência da família em Londres. Não podia negar que do lado de fora, aparentava ser uma belíssima casa.

E seria se seu interior fosse aconchegante e não uma tentativa de imitar os grandes e imponentes salões coloridos da França.

Milah esticou sua sombrinha para mim e eu a abri, segurando sua mão para ajudá-la a descer do veículo. Em seguida seu pai saiu praguejando em direção à entrada, deixando a esposa sem auxilio algum.

Sorri para a Sra. Odom, oferecendo-lhe a mão, que ela aceitou sem esboçar nada ou dizer um murmurado, “obrigada”.

Aquela era uma família que prevalecia os bons modos.

A governanta abriu a porta, recebendo-nos com uma alegria forçada, dizendo como, era bom estarmos ali, deixando a casa cheia, e que não era a mesma coisa quando os patrões estavam fora.

Milah bufou mostrando-se enfadada com o falatório da mulher, cortando-a e ordenando que fosse acender a lareira de seu quarto, já que estava a fim de descansar da longa viagem.

—Killian o que acha de deixarmos as damas descansarem e irmos fumar um charuto na sala? – Sr. Odom instigou animado, fazendo-me desviar os olhos do vestíbulo em tons claros de verdes e marfim.

Forcei um leve sorriso. Eu queria fugir da companhia de qualquer um deles, dormir também e descansar o corpo que estava dolorido de ficar tanto tempo espremido naquele cubículo sendo jogado de um lado para o outro por causa das estradas irregulares.

Entreguei minha cartola e casaca para o mordomo que se aproximou de mim.

—Agradeço Sr. Odom, todavia irei declinar por hora. Quero me esticar na cama.

—Bom, neste caso eu fico sozinho. Peça para acenderem a lareira do quarto de minha esposa e da sala de visitas também... Quer que acenda do seu, Killian?

—Não é necessário. Acredito que vá ser bom eu sentir um pouco do frio do campo. – comentei divertido e Milah revirou os olhos, murmurando um “caipira”, dando-me as costas e subindo com sua mãe.

Sr. Odom coçou a nuca, fazendo uma careta de desagrado.

—Milah é igual à mãe dela. – observou, então olhou para mim. – Tenho pena de você meu jovem. Logo irá descobrir que é melhor deixar para dormir quando ela estiver acordada, porque assim você se livrará do falatório maldoso e cheio de reclamações... Tem certeza que não quer um charuto?

Observei as mulheres sumirei no andar superior.

—Um talvez.

—Rapaz esperto. – elogiou, enquanto saía andando em direção à sala.

Suspirei pesadamente, indagando-me se a herança de meu tio valia tanto a ponto de passar a vida aturando Milah e provavelmente tornar-me um Sr. Odom no futuro.

Esta fora a condição imposta pelo meu tio. “Ou se casa com uma moça de nosso círculo social e que tenha fortuna para adicionar a sua, ou não receberá um tostão meu quando chegar a minha hora de partir”.

Quando impôs tal exigência, fiquei sem reação. Meu tio possuía terras, fortuna e não teria ninguém para recebê-la, sendo passada consequentemente para o irmão do meio que ele detestava. Ele me tirara do campo, pagara minha faculdade para que eu fosse seu herdeiro. Para que sua fortuna ficasse nas mãos de alguém da família que ele ao menos sentisse empatia. Meu tio sempre deixara claro que esse era seu desejo, mas nunca por um momento cheguei a imaginar que exigisse tal coisa. Que faria questão de escolher meu casamento e se eu quisesse continuar rico, concordar com seus termos.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

E eu aceitei. Se, tinha uma coisa que não tinha certeza que conseguiria ficar era sem o conforto que o dinheiro conseguia comprar e toda sua facilidade. Como todos o respeitavam quando entrava em um ambiente. A influência na sociedade que parecia ter.

Eu havia me acostumado com o status que adquirira naqueles anos. Voltar a ser aquele garoto sem perspectiva e que achava que herdaria a paroquia do pai, era um castigo pior que a morte.

Contudo, desde que o arranjo havia sido feito, com a filha de seu amigo mais íntimo, sentia-me infeliz ao lembrar que seria com Milah que teria que passar o resto da vida.

Estar de volta a Hertfordshire, era como trazer a tona, sentimentos que poderia manter domados, enquanto estava longe.

Como Emma Swan, a garota do campo.

Ela estava próxima. Sabia como chegar até minha menina que já devia ser uma linda mulher. Tinha curiosidade em saber como estava sua aparência agora, que eu tinha certeza que já havia perdido todos os traços infantis de outrora. Em como ela estava. Casada talvez? O que estava fazendo? Será que ainda se lembrava de mim?

Se eu não me vigiasse, era bem provável que eu acabasse na porta da casa dela no meio da noite.

Eu esperava não encontrá-la em minha breve estadia.

Assim como eu poderia estar equivocado e Emma Swan nem mais naquele condado residia, o que seria ótimo, tanto para mim como para ela.

Levei o charuto aos lábios em silêncio. Sr. Odom estava sentado relaxadamente na poltrona, fitando a lareira, enquanto eu ouvia o crepitar do fogo e encarava o lado de fora da casa, o imenso jardim que se esparramava pela propriedade, enchendo a boca de fumaça, saboreando o gosto do tabaco, antes de soltá-la, formando uma nuvem ao meu redor.

Era esquisito demais estar ali. Não me sentia como parte daquele condado mais.

Não enquanto fumava um charuto com meu futuro sogro, em uma casa luxuosa e cheia de criados se movimentando imperceptivelmente para garantir que tivéssemos todo o conforto necessário.

—Está mais quieto que o normal, Killian. – o homem observou, estudando-me. – Qual o problema?

Balancei a cabeça, pressionando a ponta do charuto no cinzeiro para livrar-me da cinza que criava na ponta antes que caísse no chão.

—Estou me recordando da última vez que estive em Hertfordshire e como o clima estava diferente. Era verão. – contei, caminhando pela sala, lembrando-me do último verão bom que havia tido. – Aqui é lindo em qualquer estação do ano, mas no verão é espetacular. As plantações de trigos parecem feitas de ouro quando o sol está a pino e sua luz bate nas espigas. Chega até a brilhar.

Sr. Odom sorriu, soltando a fumaça e fechando os olhos de prazer.

—Você deve sentir muita falta daqui.

—Sim e não. Sei que não é mais a minha vida. Não pertenço mais aqui.

—E pertencerá menos ainda quando estiver casado com minha filha.

—Acredito que sim. – murmurei, apagando o charuto e servindo-me de um gole de conhaque. – Irei subir senhor, estou realmente exausto.

Ele fez um gesto com a mão indicando que eu fosse.

—Vá descansar rapaz. Conversamos mais depois do jantar.

Bati de leve em seu ombro ao passar por ele, saindo da sala. Subi as escadas e por um momento fiquei em duvida entre qual dos corredores deveria pegar para chegar até o quarto. Dei de ombros, achando que não seria nada mal, conhecer a casa, sozinho.

Peguei o corredor da direita, percebendo que aquele deveria ser o que os criados utilizavam, já que existiam poucos enfeites e era um bocado escuro para ser um dos principais, sem falar que o cheiro de mofo ali era mais presente, levemente embotado com o aroma de limpeza.

Um pequeno corpo se chocou em mim com pressa e eu já estava prestes a pedir desculpas por estar atrapalhando o caminho da criada, quando me peguei mudo ao reconhecer aqueles cabelos divididos com esmero, deixando uma fina linha branca no meio e terminando presos em um coque na base de sua nuca.

—Desculpe-me. – ela pediu distraída, antes de erguer os olhos para mim.

Vi aqueles olhos verdes se arregalarem de surpresa ao reconhecer meu rosto, e todo meu corpo estremeceu violentamente de prazer, ao sentir eles pousados em mim uma vez mais.

—Killian! – Emma gritou feliz, jogando seus braços ao meu redor, escondendo seu rosto em meu peito, aspirando profundamente. – Eu pensei que nunca mais iria vê-lo. – murmurou em um tom de voz que me fez recordar da garota que me despedi, prometendo que voltaria.

Emma apertou seus braços ao meu redor com mais força, como se pedisse para que eu a retribuísse.

E por mais que uma parte minha estivesse agoniado para fazer isso, tomá-la nos braços como antes, a outra, do homem que eu me tornara, deixara-me estático e querendo afastá-la de mim. Se alguém nos pegasse e chegasse aos ouvidos de meu tio, eu estaria sem um tostão novamente.

Mas foi gratificante saber que ela ainda se lembrava de mim e nutria o mesmo sentimento que de anos atrás. Foi arrebatador para a parte do garoto que ainda residia aqui dentro, sentir seu corpo próximo como costumava ser.

Swan por fim se afastou, estudando-me com curiosidade, como se tentasse entender alguma coisa. Aproveitei para admirá-la. Sem dúvida havia se tornado uma linda mulher, o nariz bem desenhado, o queixo pequeno e o maxilar bem marcado. As sobrancelhas eram delicadas, uma linha fina, na testa lisa. Apesar de parecer um pouco mais velha do que sua idade, Emma havia se tornado a mulher que eu imaginara.

—O que está fazendo aqui? – instiguei com a voz seca, como se a repreendesse de estar ali, dificultando a minha breve estadia no condado com a sua presença.

—Eu trabalho aqui, Killy. – respondeu com vivacidade, sem tirar os olhos do meu rosto. - Meus pais nem vão acreditar quando eu contar que finalmente voltou! – tagarelou, saltitando e tenho certeza que nem reparava que fazia isso. – Eu sabia que voltaria... Quero que me conte tudo. Como foram esses anos. A faculdade. Seu tio... Absolutament...

Sua voz desapareceu ao ouvir a de Milah no fim do corredor e Emma a observou com o olhar até que estivesse parada a meu lado, seu braço passando pelo meu firmemente.

—Querido, está perdido? – indagou com um tom leve e divertido, que poderia ser considerado encantador. – Esse é o corredor dos criados, Killian.

—Não conheço a casa ainda, Milah. – atalhei, olhando para minha noiva e abrindo-lhe um sorriso forçado. – Então como encontrei com essa criada, já aproveitei para pedir que me preparasse um banho. – adicionei, sentindo um gosto amargo na boca ao chamar Emma daquele modo. – Você poderia preparar um banho para mim?

Milah olhou para Swan que tinha os olhos fixos em nossos braços, sem nem ousar piscar, como se estivesse ainda assimilando o que estava se desenrolando a sua frente. Entendendo que eu estava comprometido com a sua patroa. Que estava ali, mas não porque havia voltado para ela como eu prometera.

Vi os cantos de sua boca, contorcerem minimamente, sua respiração se tornando um pouco mais alta, como se estivesse passando mal.

—Responda quando seu senhor estiver falando com você, criaturinha deplorável! – Milah rosnou para Emma, com aquela pontada de maldade que sempre carregava na voz quando não estava se fazendo de agradável. Se eu não tivesse apertado seu braço com força, mantendo-a no lugar, estava certo de que teria batido em Emma, apenas porque sentia prazer em maltratar os criados.

—Perdão? – Emma piscou como se estivesse se esquecido, de onde estava. Percebi que ela contorcia as mãos em um gesto nervoso, como se precisasse sair dali o mais depressa possível.

—Poderia preparar para mim? – questionei bem devagar, não querendo deixá-la mais nervosa do que parecia estar. Swan torceu o nariz de confusão. – O banho. – acrescentei.

Emma assentiu sem olhar-nos nos olhos, abrindo um sorriso leve e voltando as costas para nós dois sem dar uma resposta, sumindo no corredor.

Observei a barra de sua saia de tecido grosseiro se erguer levemente, enquanto ela virava, os tamancos gastos aparecendo brevemente e um pedaço do tornozelo branco, que outrora eu costumava beliscar para irritá-la.

—Eu já estou por aqui com essa garotinha. – Milah atalhou irritada, soltando meu braço. – Ela é muito devagar, sempre devaneando como acabou de ver... E foi impressão minha ou a criada o chamou pelo primeiro nome?

Dei de ombros.

—Não reparei Milah.

—Eu consegui ouvir o grito dela do meu quarto e você não reparou? – instigou descrente.

—Talvez nos conhecêssemos quando morava aqui... Não me lembro dela. – desconversei. -Perguntarei assim que encontrá-la novamente. Poderia mostrar meu quarto, querida?

Milah olhou-me com os olhos cerrados, como se estivesse desconfiada, antes de guiar-me para o corredor certo, indicando meu quarto e se trancando no seu, batendo a porta com violência.

Suspirei de desgosto, ao imaginar quão difícil seria ter que conversar com Emma. Todo caminho vim torcendo para que não a encontrasse, todavia o destino parecia gostar de pregar peças e rir do desconforto e infelicidade alheia. De fato, era maldoso o maldito, sem um pingo de condescendência para as pessoas. Não importava quem fosse elas.

Pensei em um modo de explicar para a Emma a situação em que me encontrava e o motivo que me levou a ficar noivo de outra... E talvez, ela acabaria por não me odiar. Talvez pudéssemos ser amigos.

Caminhei a passos vagarosos até meu quarto e então voltei, achando melhor não estar lá quando Emma fosse encher a banheira. Fiquei admirando os vasos do corredor, as pinturas na parede o mais demoradamente possível, até que vi a porta do quarto, entreaberta.

Retornei até lá, esperando do lado de fora, ouvindo a água dos baldes sendo despejadas na banheira, o farfalhar, abafado dos tamancos de madeira no carpete, até que achei que já poderia entrar.

Assim que pisei no quarto, Emma e outra criada que estava ajudando-a, olharam-me e terminaram de ajeitar o banho. A moça mais miúda e que parecia ser mais jovem, colocou as toalhas sobre a cadeira, virando-se para ver Swan pousando o frasco de sabonete no chão.

Elas pegaram os baldes, dois cada uma, e imaginei como conseguiam carregar o peso, já que eram grandes para que pudessem carregar maior quantidade de água.

—Poderia acender a lareira para mim? – perguntei quando Emma estava escapando pela porta. Ela parou e a outra criada olhou para o seu rosto, pressionando os lábios enquanto pegava os baldes das mãos de Swan.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Ela retornou para dentro do quarto como se tivesse sido condenada a forca. Os ombros caídos, o olhar fixo no chão sem me encarar, indo se ajoelhar em frente à lareira.

Observei a outra criada desaparecer para então fechar a porta.

E como se fosse o sinal que ela esperava, sua voz preencheu o quarto, séria e imperturbável.

—Então você está noivo da Srta. Odom? – quis saber, pegando as toras de madeira que ficavam ao lado com facilidade e as colocando sobre a grade.

Fitei seu trabalho, vendo suas mãos já acostumadas a fazer o fogo surgir e tentando atiçá-lo nos pedaços maiores de madeira.

—Sim... Escute Emma. – comecei, sem saber o que raios falar. – Eu sei que tivemos um caso no passado, mas gostaria que deixasse para lá e não comentasse com ninguém. – soltei de uma vez, achando que seria melhor ser direto.

O crepitar do fogo se tornou mais intenso, assim como o quarto começou a esquentar. Emma se colocou de pé, olhando para as chamas.

Aproveitei para observar a candura da pele exposta de seu pescoço, salpicado pelas pintinhas marrons, rosadas, cor da pele, que conhecera tão bem durante o verão a luz da lua. Quis tocar e cingir como uma vez fiz. Meus dedos formigavam e imploravam pela sensação de senti-la. Queria soltar seus cabelos que estavam presos em um coque bem feito e bagunçá-los como o vento fazia, para então prendê-los da forma que ela costumava usar. Uma mecha de cada lado que se juntava atrás e descia para as costas em grandes caracóis dourados.

—Você me fez uma promessa. – falou, virando-se para mim. – E fez-me prometer que o esperaria.

Olhei para a sua boca, vendo-a se movimentar. Era incrível como Emma falava bem, sendo que não tivera estudo algum. Apesar de não saber escrever e nem ler, isto quase não afetava sua fala, como acontecia com os outros. Talvez por que ela ficasse prestando atenção às pronúncias feitas e as treinava mais tarde.

—Parabéns meu garoto! – meu pai me abraçou com força, rindo e exibindo em seu rosto um semblante orgulhoso. Minha mãe sorria largamente, demonstrando a felicidade que sentia. – Perdão, agora já é um homem. E formado!

—Estou tão orgulhosa de você, filho. – a mulher de cabelos negros afagou meu rosto. – Queríamos ter trazido Emma conosco para que comemorasse, mas não foi possível. Entretanto ela pediu para dizer está feliz por você e que sente sua falta.

—Tudo bem. Eu irei em breve buscá-la. – contei animado. – Começarei a trabalhar e serei capaz de manter uma casinha aqui em Londres.

Seus lábios tremeram e ela me abraçou novamente.

—E como está nosso rapaz recém-formado? – meu tio, irmão de minha mãe, entrou na sala, parecendo satisfeito.

—Muito obrigado, Theodore, por ter dado a chance ao meu garoto de completar os estudos. – Brennan agradeceu, andando até meu tio. – Serei eternamente grato.

—Não foi nada. Fico contente em ter ajudado... Teria feito o mesmo com Liam, se tivesse tido a oportunidade.

A sala caiu em um silêncio mórbido à menção do nome de meu irmão mais velho Liam. Eu não o conhecera, morrera por conta da varíola, antes que eu nascesse.

—Mas hoje é dia de festa, não? – meu tio exclamou, tentando trazer o clima de volta. – Do que estavam falando?

Minha mãe passou a mão pelos meus cabelos, como se os ajeitasse.

—De Killian ir buscar a moça que deixou em Hertfordshire.

Ele arqueou as sobrancelhas.

—Tem planos de se casar com essa jovem?

Assenti.

—Prometi que voltaria.

— Diga-me, ela ao menos tem estudo?

—Nenhum senhor. Mas não vejo como isso seria problema. - atalhei.

—Emma é uma moça adorável, irmão. Se conhecê-la, garanto que irá se encantar. – minha mãe interveio.

—Claro que é. Todas as moças são não é mesmo? – ele abriu um sorriso forçado. – Importariam se eu pegasse Killian por uns minutos?

—De modo algum. – meu pai bateu em meu ombro, indicando que eu fosse com meu tio.

Caminhamos em silêncio até seu escritório e o observei se servir de sidra, enquanto andava lentamente pelo cômodo, com uma expressão pensativa.

—Eu o coloquei em meu testamento. – falou por fim, erguendo os olhos para mim. – Mas terei que tirá-lo se continuar com essa ideia. Não posso deixar que... Se case com uma garota do campo.

—Senhor?

—Já não basta sua mãe, Killian. Veja a situação que ela está. Casar por amor não é a solução, porque amor não enche barriga. Se não fosse por mim, ajudá-los você não teria estudo algum... Jenna foi uma cabeça dura de querer se casar com seu pai, mas eu deixei, mesmo sabendo que ela teria uma vida inferior a que foi criada...

—Não estou entendendo de onde quer chegar tio. – fui sincero, sentindo algo estranho se enrolando em mim, e apertando-me.

—Que não irei deixar minhas terras e fortunas para você se não for para que as aumente. Não deixarei o que é meu para você se for se casar com uma mulher que não contribuía para expandir a sua fortuna, que não seja de nosso círculo social. Está certo de querer se casar, Killian, mas tem que ser inteligente. Uma garota simplória do campo que nem sabe ler não acrescentará nada em sua vida, além de envergonhá-lo diante da sociedade.

—Garanto para o senhor que não há necessidade de se preocupar com isso, tio. Eu ensinarei Emma o que é preciso. Ela se portará como uma dama e prometo que cuidarei bem de sua fortuna...

Meu tio balançou a cabeça, parando em frente à janela, de costas para mim.

—Infelizmente não é assim que funcionam as coisas, Killian, e você sabe. Veja sua mãe. Cresceu nesta sociedade, todavia foi excluída dela por se casar com seu pai, um clérigo. Ele tem estudo e é inteligente, todavia é um gentry e mesmo dentro dessa classe é inferior. O mesmo irá acontecer com você se escolher essa garota. As pessoas irão ignorá-lo. Ninguém irá querer fazer negócios com você. Ela e você serão ridicularizados... Sua vida estará acabada, assim como tudo o que construí até agora... Eu não possuo título de nobreza, mas sou um gentry nobre, superior e respeitado pela minha riqueza e terras... Responda-me Killian, você quer ser meu herdeiro? Porque eu quero que seja. Foi para isso que o trouxe até aqui, mas terei que aceitar tudo o que tenho indo para as mãos do meu irmão porque não irei admitir que meu legado, seja manchado por causa de uma camponesa. Se disser que não, mudarei o testamento e você voltará para Hertfordshire sem um tostão e posso dizer para você que irei garantir que não arrume um trabalho decente...

—Tio...

—Mas se escolher esquecer essa garota, ainda terá o dinheiro, a admiração dos outros, será respeitado e conseguirá um casamento para aumentar nossa fortuna. Irá crescer aqui como homem. E prometo para você que nem irá se lembrar dessa garota que conheceu quando era um rapazote. Não cometerei o mesmo erro duas vezes... O que me diz filho?

—Éramos dois adolescentes. Não teve validade alguma. Você deveria saber.

Minha vontade foi pegar as palavras ditas e enfiá-las de volta em minha boca, engoli-las e esquecê-las ao ver o maxilar de Swan tremer com a força que fazia para não chorar e seus olhos inundando de lágrimas.

—Teve para mim. – ela respondeu com serenidade, apesar de seu estado, seu corpo dizer que não estava tão calma assim. – Você poderia ter ao menos avisado por carta para que... Eu... Não ficasse o esperando. Avisado que havia mudado de ideia quanto a voltar para mim. Que se apaixonou. Eu não ficaria brava.

Sua honestidade e sua bondade me irritaram. Senti raiva do bom coração que Emma possuía, que mesmo naquele momento, não se descabelava, exigindo algo que eu prometera.

Senti raiva por ela achar que eu havia me apaixonado, quando nunca deixei de pensar nela um só minuto.

Senti raiva porque eu sabia que ela sempre iria querer o melhor para mim, não importasse o que eu fizesse. E se não fosse ao seu lado, tudo bem. “Eu não ficaria brava”.

De tudo que ela podia exigir Swan só queria ter sido informada.

—Por que eu perderia meu tempo escrevendo para você se não sabe ler, Swan? – perguntei com um tom petulante, sentindo o sorriso de escarnio que havia adquirido com os anos. – Quero que esqueça, está entendido? Você não me conhece. – o pedido saiu com um pouco mais de rispidez do que eu esperava, soando mais como uma ordem.

Emma fechou os olhos e assim permaneceu por longos minutos.

Queria saber o que se passava pela cabeça dela.

Então ela retornou a abrir os olhos verdes para mim e um sorriso simpático surgiu em seus lábios para a minha surpresa.

—Seja muito bem-vindo, senhor Jones. – falou docilmente, a voz baixa, submissa. - Espero que goste da estadia em Hertfordshire. Precisando de alguma coisa é apenas tocar a sineta. – indicou a parafernalha presa a parede. – Com sua licença. – pediu, fazendo uma rápida mesura e disparando para fora do quarto como se não aguentasse ficar em minha companhia mais nenhum segundo.

Quando a porta bateu o peso do que eu lhe falara atingiu-me como um soco no estômago que tira o ar.

Tinha-a chamado de burra. Usei a minha superioridade contra sua condição, coisa que sempre prometi nunca fazer com ninguém.

Ela não teve culpa por não ter tido uma oportunidade.

A vida me deu todas elas, enquanto Emma se contentava com as palavras que eu lhe ensinava na terra e ficava agradecida. Apoiou-me quando a chance de, ir para a faculdade surgiu, mesmo quando eu queria deixar para lá para poder ficar com ela.

Emma foi quem me convenceu. Era graças a ela que estava naquelas roupas caras, fumando charutos e tomando conhaque de garrafas feitas de cristal. Que era solicitado por pessoas importantes. Porque no passado Swan bateu o pé para que eu fosse.

Seu tom de voz, tratando-me como se eu fosse seu patrão, alguém distante, que só estava ali para lhe dar ordens e humilhá-la, ecoava em minha mente, embrenhando nos labirintos do cérebro, como se para deixar bem marcado o que eu dissera. Um prova que ele puxaria para mostrar que estava me tornando exatamente como as pessoas que tanto detestava estar por perto, mesmo que eu afirmasse o contrário.

Eu tinha que ter explicado. Contado tudo o que acontecera. De repente a raiva que senti de seu bom coração me incomodava e percebi que não era raiva, e sim inveja da superioridade dela em perdoar mesmo que estivesse machucada.

Reprimi a vontade de ir atrás dela para pedir-lhe desculpas. Eu a encontraria novamente, a oportunidade iria surgir e conversaríamos de verdade.

[...]

Na hora do jantar, observei a sala discretamente em busca de Emma nos cantos, como os criados costumavam ficar, contudo não havia sinal dela, parada de cabeça baixa esperando seu momento de ser solicitada se caso necessário.

Terminamos de comer, um interminável jantar com trocas de farpas entre Sr. e Sra. Odom, com Milah reclamando das comidas e eu me vendo no meio de uma discussão que minutos depois, ninguém mais sabia como havia se iniciado.

Enrolei mais um pouco comendo a sobremesa, vendo-os se retirar para a sala de música, enquanto os criados começavam a tirar a mesa.

—Com licença. – segurei no braço da moça que estava com Swan mais cedo. – Emma está? Não a vi agora.

A mulher loura e que lembrava uma criança, começou a juntar os pratos com uma careta, como se achasse estranha, aquela pergunta.

—Emma não trabalha aqui pela noite, senhor. – respondeu por fim.

—Entendo... Os pais dela estão certos de não quererem que ela trabalhe o dia inteiro. – pensei alto. Ela parou por um instante, olhando para o meu rosto com o cenho franzido e então deu de ombros, pegando os pratos. – Sabe se ela virá amanhã?

—Se ela não vir, será despedida, senhor. – atalhou com azedume.

—Claro. – concordei. – Muito obrigado... E como se chama?

A moça olhou para mim surpresa.

—Tinker, senhor.

—Prazer em conhecê-la, senhorita.

Tinker pareceu atordoada, mas acabou por fazer uma reverência e se retirou.

E eu retornei para o meu quarto, mesmo sabendo que teria que aguentar o falatório infernal de Milah no dia seguinte, mas precisava trabalhar e articular melhor as palavras que iria dizer para Emma.

Não queria machucá-la ainda mais.

Contaria sobre a faculdade para ela. Meu tio, minha nova vida. Da condição imposta por ele em relação à herança.

E talvez, apenas talvez, eu entregasse a caixa cheia de cartas que escrevera ao longo dos anos para ela e que não havia mandado, pois acreditava que voltaria para nos casar e a ensinaria a ler e escrever como uma vez prometera. Então Emma poderia ler cada palavra que havia escrito para ela, sozinha, sem precisar recorrer a alguém e ter a privacidade invadida.

Balancei a cabeça descartando a ideia.

Entregar as cartas tornaria tudo ainda pior.

Deitei-me na cama e tirei o cordão do colar que usava escondido por baixo da camisa, brincando com a pedrinha branca simples do pingente e procurando alguma coisa para agradecer naquele dia.