Médicos gatos, a Morte e outras histórias

Eu quero morrer porque gosto de ficar contigo


Sou um cara meio azarado.

A primeira vez que morri deve ter sido a menos legal de todas, mas pelo menos pude conhecer o Daichi. Digo, tomei uma facada na barriga? Tomei. Mas fui muito bem recepcionado, obrigado.

— Uh, isso deve doer.

— Doeu um pouco, mas acho que morri tão rápido que nem tive tempo de sofrer.

— Isso é bom, né? Ok, deixa eu pegar sua ficha, espera um instante.

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Daichi estava com um robe preto e uma espada presa na cintura. Nós dois estávamos parados do lado do meu corpo morto.

— Nome?

— Sugawara Koushi.

— Idade?

— Tenho 20. Ou tinha. Não sei.

— Hm... Morte: assassinato. - ele ergueu os olhos na minha direção e foi clicando no tablet - "Reencarnação"? E aí, Suga, quer voltar pro mundo dos vivos?

— Acho que sim.

Ele clica e arrasta a tela do tablet mais algumas vezes.

— Desculpe, tudo bem se esperarmos alguns dias pra te mandar de volta? A fila da reencarnação está cheia. Você pode ficar lá em casa.

Meio que foi assim que conheci a Dona Morte. Ou pelo menos uma delas.

A casa de Daichi era bem simples, mas até que legal. A TV dele tinha uns programas que nunca tinha visto - Céu S.A, rodas de debate sobre suicídio e até uns desenhos animados em que Deus e o Diabo eram melhores amigos e viviam no meio dos humanos. Daichi disse que isso tinha acontecido por um tempo, até Deus e o Diabo brigarem por causa da Amy Whinehouse; aí cada um foi pro seu canto.

O Heaven News disse, porém, que Deus estava tentando reestabelecer a amizade.

No dia da minha primeira reencarnação, Daichi me levou pra uma festa com as outras Mortes e nós ficamos comendo e bebendo a noite inteira e talvez eu tenha gostado um pouco demais de ficar no meio-mundo.

— Desculpa, Suga, mas tá na hora de você voltar. - Daichi deu um sorrisinho triste e me levou até o Departamento de Reencarnações, dizendo que nos encontraríamos de novo mais tarde.

Fiquei ansioso pra morrer.

Não demorou muito, honestamente. Foi bem mais trágico do que da primeira vez, mas o bom é que eu não estava sequer acordado quando aconteceu.

— Nossa, Suga! Você está de volta tão cedo!

— Pois é. Acho que sou meio azarado.

— E bota azarado nisso.

Meu avião tinha caído, mas eu nem tinha visto nada. Com a explosão de uma das turbinas, a cabine perdeu pressão e todos desmaiamos de falta de oxigênio. Então não doeu nem nada.

Fiquei feliz de ver Daichi de novo. Fiquei mais alguns dias na casa dele antes de reencarnar.

Quando reencarnei da segunda vez, achei a vida na Terra chata demais. Queria ver as disputas entre os Anjos e as grandes orgias promovidas pelos Demônios. As festas que as Mortes davam eram legais também.

Na Terra eu tinha que crescer, ir pra escola, depois ir pra faculdade, e trabalhar e aí morrer. Era chato demais. E eu também gostava bastante de Daichi. Passávamos ótimos bocados no meio-mundo. Eu particularmente gostava muito do doce que chamava Penadinho.

Realmente sou uma pessoa azarada. Estava parado na calçada como em qualquer outro dia comum quando um carro bateu em um caminhão e começou a vir desenfreado na minha direção. Eu poderia facilmente ter pulado para o lado e desviado, mas eu realmente estava muito a fim de ver Daichi e as outras Mortes, e nadar nas banheiras de hidromassagem do Inferno como daquela vez...

Então eu não desviei e agora Daichi está vindo na minha direção com um olhar meio zangado.

—- Olha, estou começando a acreditar que você tá morrendo de propósito.

—- É má sorte, juro.

Ele ficou preenchendo as coisas no tablet enquanto sentávamos na muretinha perto de onde meu corpo tinha morrido. Diferentemente das outras vezes, ele estava vestindo calças e uma camisa de botões pretas.

—- Mudaram nosso uniforme - ele diz sem tirar os olhos do tablet - Realmente, aquele robe estava muito fora de moda, não acha?

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—- Gostei da roupa. Cai bem em você.

—- Valeu. Escuta, tem um horário pra reencarnar às 19h, mas os Anjos nos convidaram para uma festa nas Nuvens. Eles gostaram de ti.

—- De mim?

Ele sorri.

—- É. Te acharam legal. Quer reencarnar ou ir na festa?

—- Quero ir na festa!

E lá na festa nós tomamos muito Licor dos Deuses, comemos até a calça ficar apertada, espionamos os humanos na Terra e contamos segredos e talvez eu e Daichi nos demos uns pegas por 40 minutos no sofá na frente do portão da casa de Deus, e eu não me arrependo nem um pouco.

Daichi disse que foi porque o Cupido estava flechando loucamente todo mundo na festa, mas eu juro que não vi Cupido nenhum. Não, senhor.

Não que eu precisasse que ele me flechasse para eu sentir vontade de sentar no colo dele e beijar sua boca. O próprio Diabo chegou em nós e disse que "estávamos de parabéns por estarmos pecando tanto logo ali em solo sagrado". Assim, não que os Anjos que promoveram a festa fossem puros; muito pelo contrário, acho que eles pegaram algumas dicas com os Demônios e estavam fazendo uma puta de uma orgia ali no meio das nuvens.

Mas acho que o Diabo disse aquilo por Daichi ser uma Morte e eu uma alma esperando para ser reencarnada. Não deve ser algo muito comum de se ver.

—- Ei, Suga, desculpe por aquilo na festa. -- quando chegamos na casa dele, ele deixou a espada do lado da porta e colocou as mãos no bolso de um jeito que fez meu pobre coração disparar. -- Acho que não foi muito legal da minha parte. As Mortes não podem se envolver com as almas, mas o Cupido bebeu Licor dos Deuses demais e acabou flechando todo mundo. Nós inclusos.

—- Tem algum Cupido aqui, por acaso? -- perguntei, olhando ao redor.

—- Não...?

— Então por que tô com uma vontade doida de sentar na sua pica?

Foi mais ou menos assim que uma Dona Morte me fodeu tanto que até reencarnei dolorido.

A última vez que morri foi agradável e pacífico.

Olhei para baixo e o vento balançou meu cabelo.

—- Eu sabia que você estava morrendo de propósito. -- uma voz soou na esquerda e eu virei para ver quem era.

Daichi estava sentado na beirada do prédio, balançando as pernas. Ele olhava para frente, observando as luzes da cidade. Tinha um pequeno sorriso no rosto.

—- Desculpe. Eu sei que não deveria fazer isso.

—- Não estou aqui pra te julgar. Se quiser morrer, tudo bem.

—- Eu quero morrer porque gosto de ficar contigo.

Ele virou e olhou para mim. Dei um sorriso e, com cuidado, sentei ao lado dele.

—- Sério, Suga?

—- Sério. A vida aqui na Terra é muito chata. No meio-mundo podemos ir pro Inferno ou pro Céu quando quisermos, tem muita festa legal, comida boa, bebida gostosa. Até a televisão tem programas melhores.

—- Os Demônios sempre deram as melhores festas, mas acho que os Anjos começaram a pegar o jeito também.

Ele riu, e depois ficamos em silêncio por algum tempo. Tratei de aproveitar os cheiros que vinham com o vento, e como meu cabelo balançava na brisa.

—- Você tem certeza? -- ele perguntou, olhando lá pra baixo de novo.

—- Tenho. Quero ir naquele churrasco que vai ter no Inferno. Quero ficar bêbado de Licor dos Deuses e comer Penadinho até passar mal. E ir jogar papel higiênico no telhado da casa de Deus junto com os outros Anjos. E se a gente conseguir trancar o Diabo pra fora, podemos fazer a maior festa de arromba que o Inferno já viu.

Daichi riu.

—- Quero ficar contigo, Daichi. Quero ficar no meio-mundo com você, ir no show do Kurt Cobain, ser flechado pelo Cupido. Quero ouvir você falar das pessoas famosas que ajudou a reencarnar, do dia que conheceu o Elvis, e como preparar Leviatã. Daichi, pra mim não faz sentido ficar aqui na Terra se você não está comigo.

Ele me encarou por longos segundos, parecendo pensar intensamente. Depois, pegou na minha mão e sorriu.

—- Suga, você não pode ficar no meio-mundo como uma alma perdida. Mas, se quiser, posso te ajudar a estudar pra virar uma Morte. O concurso tá chegando.

—- Uma Morte?

—- Sim. Na verdade, várias Mortes trabalham em dupla. Você pode ser a minha se quiser. E aí... Aí vamos poder ficar juntos.

Por um momento um fiquei bem surpreso, mas logo depois um sorriso se abriu nos meus lábios e eu tive a mais absoluta certeza de que adoraria ser uma Morte e passar o resto da Eternidade do lado de Daichi.

Apertei os dedos dele na minha mão e levantei, parando na beirada do prédio. Olhei para baixo, mas não senti medo.

—- Será que vai doer muito? -- perguntei.

—- Não. Feche os olhos e em um instante tudo terá terminado.

—- Você estará lá quando eu morrer?

Ele abriu um doce sorriso para mim e eu soube que tudo ficaria bem.

—- Sim, como sempre estive.

Com um pequeno impulso, pulei.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.