My Little Runner

Tommie, uma possível amizade e um acerto de contas


Tudo aconteceu numa velocidade absurda. Em um momento o barulho seco da arma encheu seus ouvidos, em outro, Thomas tombava no chão, o sangue uma mancha crescente em sua camisa. Camille sentiu um zumbido ensurdecedor passar por seus tímpanos, fazendo-a ter vontade de se encolher no chão com as mãos em sua cabeça. Uma gritaria foi ouvida quando o homem levantou a arma, pronto para outro tiro. Minho reagiu em uma fração de seguntos, se atirando contra o loiro, a arma do crank foi novamente acionada, mas a bala perdida atingiu um dos muros do prédio, o objeto girou no chão quando escapou de suas mãos. Minho parecia movido pela raiva, prendendo o homem contra o asfalto e socando-o cegamente.

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O ato violento do garoto fez com que se recuperasse do choque e de repente se viu ajoelhada ao lado de Thomas. Brenda e Newt já estavam lá, juntamente com o único socorrista do grupo, tentando de todas as maneiras estancar o sangue que encharcava a camisa do amigo.

-Onde ele foi atingido?

-Ombro -o socorrista respondeu, não parando para olhá-la nos olhos. -Ele tem sorte de não ter sido em um lugar fatal, mas esse trolho está perdendo sangue mais rápido que os porcos no abatedouro da clareira.

Camille contraiu o rosto ao ouvir a comparação repugnante e voltou-se para o amigo estirado no chão. Ele tinha seus olhos entreabertos, mas não parecia orientado para saber o que estava acontecendo, ou mesmo para entender as palavras de conforto que Brenda murmurava.

-Eu não imaginei que pudessem ter armas de fogo -Newt soltou, a preocupação fazia seu rosto parecer branco como papel.

-Não temos -Brenda respondeu automaticamente. -ao menos, nunca vi outro crank com uma. Sabe-se lá quanta ferrugem havia naquela bala.

-Ela está afundada em sua carne, ele pode pegar uma infecção das feias com isso -o socorrista mais uma vez falou, a frustração presente em seu tom de voz. -Isso se não morrer antes.

A última parte foi dita entre os dentes, como um xingamento.

-Não dá para ajudá-lo? -Camille questionou exasperada.

-Aqui? -o garoto finalmente a encarou. -Eu era um socorrista, não Jesus. Não consigo fazer milagres no deserto.

Thomas gritou quando apertaram um tecido em seu ferimento. Camille desviou o olhar da cena, uma imagem do amigo depois de ser picado pelos verdugos passando como um raio em sua cabeça. Do outro lado da rua, avistou alguns garotos puxando Minho de cima do loiro, suas mãos sangravam e o crank estava completamente desacordado. Ela não queria pensar se estava morto ou desmaiado.

-Posso tirar essa porcaria dele -Jorge apareceu ao seu lado, indicando o ombro de Thomas. -Mas vou precisar de fogo.

-Não podemos fazer isso aqui -Newt rebateu.

A sombra de Minho surgiu sobre suas costas.

-Vamos sair logo dessa mértila de cidade.

-Tudo bem, ajudem-me a carregá-lo -O socorrista disse já se levantando.

Ele, juntamente com Minho, Newt e Caçarola se emprenharam na tarefa de erguê-lo da melhor maneira possível. Thomas gemeu, seu rosto se contraindo pela dor excruciante. Ele ainda choramingou uma vez antes de, por fim, apagar completamente num desmaio.

Camille sentiu seu coração apertar, mal haviam encontrado o amigo e já o tinham daquela maneira. Olhou rapidamente para a construção próxima, ouvindo um burburinho vir de dentro; presumiu que os cranks não demorariam muito para se recuperar do recente ataque.

Minho tem razão. Pensou. Precisamos sair desse lugar o mais rápido possível.

***

As próximas horas se passaram numa tortura: Além de despistarem cranks desvairados, tinham de andar o máximo que suas pernas poderiam aguentar carregando Thomas nos braços. Os garotos tentaram se revezar para levá-lo, mas a troca se provou mais difícil do que o esperado, com Thomas vez ou outra voltando a consciência para se debater e guinchar de dor. A cabeça de Camille ainda dava voltas como um carrossel, o sangue já seco em sua têmpora, ela daria tudo para se sentar. O calor era tanto que se perguntou como ainda poderiam estar vivos.

Quando o Sol se pôs já estavam no vazio do deserto, finalmente afastados da maldita cidade dos cranks. Aquelas criaturas ainda seriam motivo de seus pesadelos por muito tempo.

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Jorge andava a frente, afirmando saber um lugar onde poderiam descansar. Parecia impossível, mas ninguém fez perguntas, nem mesmo quando avistaram uma tenda improvisada de madeira. Parecia estar ali há anos, os pedaços marrons fincados profundamente na areia se erguiam como ossos contorcidos.

Os clareanos soltaram um grunhido de alívio quando enfim pararam de andar, como um coro mórbido. Thomas foi colocado no chão, seu estado era terrívelmente deplorável. Ninguém falou nada por uns cinco minutos antes de Minho quebrar o silêncio.

-E agora o quê? Vamos ficar aqui assistindo ele desfalecer?

Jorge suspirou.

-Como eu disse, posso tirar essa coisa dele. Mas vou precisar de fogo.

-Ótimo -Minho esfregou as mãos. -Você por acaso também não teria um isqueiro? Pelo visto até armas vocês têm.

Jorge não demonstrou reação à ironia de Minho, respondendo calmamente.

-Você está irritado pelo crank que atirou em seu amigo, muchacho, mas se esquece de quem está os ajudando desde que chegou àquela cidade. Não somos todos iguais -os dois trocaram um olhar duro, até Minho balançar a cabeça, como para se redimir, a situação o deixava de mau humor.

Brenda não se movia, nem fazia menção de falar. Os olhos estavam fixos em Thomas.

Newt suspirou.

-Tudo bem, vamos ter que fazer do jeito da clareira. Temos madeira de sobra aqui.

[...]

O crepúsculo logo subiu ao céu, Camille permanecia de pé com os braços cruzados, os lábios contraídos numa linha fina. De costas para os outros e um pouco afastada do abrigo, preferiu não presenciar a cena.

“Vai doer muito”, Jorge falara antes dela decidir sair.

Os outros clareanos pareciam inquietos, andando de um lado para o outro e sussurrando coisas entre si. Minho, Newt, Brenda e o socorrista permanerecem junto de Jorge, que agora se empenhava em retirar a bala de Thomas.

Camille fechou os olhos ao ouvir o amigo gritar, voltando a consciência e completamente tomado pela dor. O grito não perdurou como ela acreditou que aconteceria, o que indicava que deveria ter desmaiado novamente. Ela não sabia dizer se aquilo a aliviava ou a deixava ainda mais aterrorizada, sem imaginar por quanto tempo o amigo permaneceria apagado.

[...]

A infecção não perdeu tempo antes de atacá-lo. Como se concretizando o palpite de Brenda, a bala retirada estava tão enferrujada que parecia carregar o nome “doença” em letras garrafais. O garoto entrou em um terrível estado de torpor; não parecia reagir a estímulos nem a nada que tentassem dar a ele. Brenda por vezes tentou alimentá-lo, mas conseguia apenas fazer com que bebesse água, colocando-a aos poucos em seus lábios.

-Sinceramente, eu não sei se ele vai sair dessa.

Camille ergueu a cabeça de onde estava sentada ao lado de Thomas para encarar Minho que permanecia de pé, os braços cruzados tão apertado que suas veias se exaltavam. Seu rosto estava duro, sem nenhuma expressão.

-Não diga isso -Ela murmurou, precisava manter a única coisa que ainda tinha, esperança.

Newt, sentado em um canto, ergueu-se lentamente e andou em direção ao asiático. Os clareanos temeram algum tipo de discussão, mas o britânico se limitou a dar dois tapinhas no ombro de Minho antes de passar por ele para fora da tenda.

Aparentemente, aquela era a forma deles se entenderem no momento.

-Você vai ficar bem, Tommie -Camille falou pela enésima vez naquele dia, observando o semblante do amigo ficar cada vez mais doente, segurava a vida por um fio.

-Está dizendo isso para ele ou para si mesma?

Brenda, que não falara quase nenhuma palavra desde o ocorrido com Thomas, se fez ouvir ao seu lado. Camille a encarou, mas a garota não olhava para ela. Seus olhos escuros pareciam vagar por outra dimensão e ela pôde jurar ver um resquício de lágrimas nele. Algo tinha acontecido no tempo em que estiveram sozinhos, ela só não sabia o quê.

-Ele vai ficar bem -Repetiu calmamente, dessa vez para Brenda. -Vamos todos ficar.

Sem que pudesse se controlar, deslizou sua mão para a da garota, envolvendo-a num aperto.

Ao contrário do que ela esperava, Brenda não a repeliu.

***

-Berg!

Todos já estavam de pé antes mesmo de Jorge gritar; o barulho no céu levando-os à alerta. Os clareanos se atropelavam para fora da tenda tentando distinguir a imagem que tapava o Sol: Uma sombra gigantesca os cobriu e por um breve segundo ninguém entendeu o que diabos estavam vendo. Planando no céu do norte e descendo em suas direções, se avistava um imenso veículo voador. Não era nada como um avião, parecia bem maior e mais moderno. De seus motores um zumbido grave era ouvido, infestando suas cabeças de forma ensurdecedora; como se não bastasse, uma nova ventania castigava a todos impiedosamente, aumentando a medida que o veículo escuro se aproximava.

-Mas que mértila é essa -Um dos clareanos gritou acima do barulho horrível.

Todos tapavam o rosto com os braços tentando impedir a areia de machucar seus olhos; suas roupas e cabelos moviam-se para todos os lados descontroladamente. Quando a máquina estava finalmente próxima o suficiente, um clique mais alto foi ouvido. Os clareanos aguardaram ansiosamente por qualquer movimentação, quando um compartimento foi lentamente aberto da parte inferior do veículo, tornando-se uma espécie de rampa. De seu interior começaram a sair pessoas, todas em macacões verde escuros de calças folgadas, botas de proteção individual e enormes máscaras de gás que os faziam parecer terrivelmente assustadores, mais como insetos gigantes que com humanos. Em suas mãos, luvas eram vistas, não deixando nenhum pedaço de pele a mostra. Alguns deles iam a frente, carregando pesadas armas que poderiam nocautear qualquer um dos presentes ali.

-Quem são vocês? -Uma voz se fez ouvir em meio ao barulho; sem dúvida nenhuma, Minho.

-Afastem-se -Um dos homens atravessou o grupo e ordenou, não se preocupando em responder a pergunta, a máscara de gás em seu rosto o deixando com um ar horripilante. -Vamos levar o indíviduo A2.

A confusão foi geral, até que se lembraram das tatuagens no pescoço.

Levariam o Thomas.

-Vocês são do CRUEL -Camille se pronunciou, compreendendo. Ninguém duvidou de sua afirmação, uma vez que os homens mascarados se aproximaram mais, o símbolo da organização que tanto odiavam apareceu sobre suas roupas.

-Saiam do caminho -O líder continuou, sustentando sua voz autoritária. -O indivíduo A2 precisa ir conosco.

Minho se adiantou, colocando-se à frente.

-Uma ova é que ele vai. Ninguém saí daqui até termos uma explicação! E que raio de missão suicída é essa que nos mandaram no meio desse deserto desgraçado?

Os clareanos grunhiram em concordância. Mais uma vez o homem ignorou sua pergunta, limitando-se a erguer a mão para seus companheiros. Em dois segundos todas as armas apontavam diretamente para eles.

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-Eu vou te dar duas opções. A primeira é: Vocês sairão do nosso caminho enquanto levamos seu amigo, todos ficarão felizes e ninguém se machuca. A segunda, você tenta dar uma de engraçadinho e acaba com uma bala alojada em sua cabeça. De qualquer forma, levaremos o indivído A2.

-Minho -Newt falou, seu tom como um aviso; parecia saber que o amigo responderia mal ao homem mascarado. Voltou-se para ele com cautela: -O que querem com o Thomas?

-Estamos aqui para ajudar. O indivíduo A2 está em uma situação fora dos nossos planejamentos e não podemos permitir isso; o levaremos para ser tratado antes que perca a vida. Permaneçam onde estão e nós o traremos de volta.

-Tratá-lo? Mas que...

-Não avisaremos de novo -O mais velho o cortou, já andando em direção à tenda com alguns homens a seu encalço. Ninguém se moveu, as armas cumprindo seu trabalho de afastá-los.

De onde estava, Camille enxergou Brenda debruçada sobre Thomas, parecia lhe dizer algo, seus olhos arregalados de medo. O homem tratou de tirá-la do caminho, empurrando-a sem nenhuma cerimônia, e logo se puseram a segurá-lo.

O grito do garoto foi de pura dor ao ser erguido pelas axilas; Camille teve vontade de impedí-los, mas não ousou se mover. Quando passaram por ela, pôde ver o rosto do amigo, completamente distorcido de agonia.

Não demorou para que o levassem para dentro do veículo, e em pouco tempo todos os outros o acompanharam. O barulho ensurdecedor aumentou, voltando a machucar seus ouvidos assim que a rampa começou a se erguer. O Berg, como nomeado por Jorge, aos poucos subia ao céu, ganhando mais altitude a cada momento e levando o zumbido consigo, assim como seu amigo.

-Mas que diabos acabou de acontecer? -Caçarola, depois de um longo silêncio, fez a pergunta que assombrava a cabeça de todos.

[...]

Algumas horas se passaram quando os clareanos finalmente se convenceram de que não adiantaria divagar sobre o que estaria acontecendo com Thomas, o único jeito seria esperar para ver. O Berg permanecia distante, mas parara de se mover depois de um tempo; se procurassem, ainda conseguiam ver a enorme máquina planando ao longe no horizonte.

-Vão trazê-lo de volta -Camille disse com convicção para Brenda. A garota crank estava sentada na areia, não desgrudando os olhos da mancha escura e distante no céu.

-Como tem tanta certeza?

-O CRUEL pode ser muitas coisas, mas não é estúpido -Ela suspirou. -Aprendemos isso depois de tanto tempo sendo controlados por eles. Se quisessem o Thomas morto, não teriam feito tanto esforço vindo aqui.

-Como foi que vocês se meteram no meio dessa bagunça, afinal? Pelo visto são especiais, mas para mim parecem um bando de adolescentes comuns.

Camille caminhou até sentar ao seu lado.

-Acredite, daria tudo pra saber te responder. Mas eu realmente gostaria de ter a vida de um adolescente comum -o sorriso que deu saiu mais melancólico do que previsto.

-Sou uma garota que morava em uma cidade no meio do deserto e que está condenada a ser um crank. É, eu também gostaria.

As duas trocaram um olhar de cumplicidade e Camille sentiu, pela primeira vez em muito tempo, uma sensação boa em conhecer alguém novo.

-Vamos sair dessa.

-E qual é o plano?

-Atravessar esse deserto antes do prazo, conseguir um soro e com sorte dizer adeus ao CRUEL. Seu amigo Jorge garantiu que não vai desgrudar da gente até tê-lo para vocês dois.

Brenda conseguiu rir.

-É, ele consegue ser bem convincente.

-Vocês parecem muito próximos -Camille começou, a sugestão em sua voz indicando que gostaria de saber mais. Brenda não hesitou ao concordar com a cabeça.

-Ele me achou quando cheguei na cidade. Me salvou de muitas coisas, até de mim mesma. Se não fosse por ele, eu provavelmente estaria junto dos outros cranks alucinados -Fez uma pausa, amassando um pouco de areia entre os dedos. -Devo tudo à ele.

-Como um pai?

-É, acho que sim -Brenda a olhou por alguns segundos, depois voltou a encarar o berg ao longe. Camille não pôde deixar de pensar em como ela se apegara a Thomas.

-Aconteceu alguma coisa entre vocês dois? Digo, quando se separaram do grupo.

Brenda piscou, parecendo envergonhada.

-Não é nada, nós só... -Limpou a garganta. - Eu disse algumas coisas ruins antes de ele ser atingido, mas não era exatamente o que eu pensava. Apenas quero que ele volte.

Camille a observou, mas decidiu não perguntar mais.

-É, eu também.

-Por que está sendo legal comigo? -questionou repentinamente, seus olhos escuros olhando diretamente para os azuis de Camille.

A ex-corredora se remexeu, sem jeito.

-Por que eu não seria?

-Eu te dei um soco.

Camille ergueu as sobrancelhas. -Eu também.

Brenda ainda a olhou por alguns segundos antes de rir, já levantando-se.

-Gosto de você, Camille -disse, dando-lhe as costas. -E pelo visto não sou a única; aquele garoto não tira os olhos de você desde que chegou aqui.

Numa reação automática, seus olhos foram levados diretamente pra ele, que ainda a olhou por dois segundos antes de virar o rosto de lado. Ela abriu a boca para responder, mas Brenda já andava para longe.

Suspirou.

Minho estava recostado num dos troncos de madeira que sustentavam seu mais novo abrigo, concentrado em arrancar lascas de um pedaço com uma faca, formando uma espécie de estaca. Ela sabia que ele a perceberia encarando, mas o garoto não fez um movimento sequer.

Tudo bem, já chega. Pensou.

O garoto não pôde evitar o risinho ao ver com o canto dos olhos os passos decididos que ela dava em sua direção. Parou a um metro de distância dele e cruzou os braços sob o peito. Ele levantou a cabeça para encará-la, as sobrancelhas erguidas. A coragem da garota se desvaneceu e afundou na areia assim que teve toda sua atenção.

Nenhum dos dois falou pelos primeiros 15 segundos e ela remexeu-se desconfortavelmente.

-Você estava me olhando -comentou.

-Bela observação, Cammie.

Ela desviou de seus olhos negros e focou em suas mãos machucadas pelo ataque contra o crank, quando resolveu acabar com a miserável vida da criatura. Lembrou de como ele usou esses mesmos dedos para traçar a pele de suas costas.

Engoliu em seco, sentia-se uma garotinha de doze anos. Quando ergueu a cabeça, ele ainda a fitava.

-Como está a cabeça? -Ele finalmente perguntou. Camille automaticamente levou a mão para o ferimento recente, a lembrança da dor aguda voltando para a atormentar. Ela já havia tentato tirar todo o sangue grudado em sua testa, mas o que mais precisava era de um banho para se livrar de tudo aquilo.

-Acho que vou sobreviver -respondeu, tentando soar casual. -Aparentemente o CRUEL não vai descer para cuidar de mim também.

Minho não retribuiu o pequeno sorriso que ela deu, mas esquadrinhou o seu corpo, parecendo notar todos os arranhões e pequenos machucados que ela ganhara nos últimos dias.

-Aparentemente -foi tudo o que disse, voltando a encarar seu trabalho com a faca antes de jogá-la de lado.

Ela se remexeu, mais inquieta do que nunca. A sensação da parede de gelo voltando a atormentá-la.

-É tão estranho, não é? Terem aparecido aqui para salvar o Tommie... -começou, tentando conseguir uma conversa decente. -Não que eu esteja reclamando, é claro. Mas tantos de nós morreram -fez uma pausa, lembrando-se dos companheiros perdidos no caminho -, qual será o objetivo do CRUEL dessa vez?

Minho olhou para o berg ao longe, uma mancha escura no meio do céu azul claro, mas não demonstrou reação.

-É mais fácil enfrentar um ataque de verdugos que tentar entender a cabeça daqueles desgraçados. Eu só espero que não estejam bagunçando mais o cérebro daquele trolho.

Camille se encolheu, pensando na imagem moribunda do amigo.

-Mal o encontramos e quase o perdemos de novo, dessa vez pra valer... Só espero que ele volte bem.

-É, também espero.

O garoto ainda olhava o horizonte, parecia estar a milhas de distância. Camille quis chacoalhá-lo.

-Não gosto disso -Ela finalmente admitiu, sentia um gosto ruim na boca.

-Não gosta do quê?

Camille o encarou profundamente, os melancólicos olhos azuis fazendo-o se revirar.

-De como está distante. Eu não quero isso, odeio o modo como as coisas estão. Sempre que penso que tudo vai voltar ao normal, essa parede é colocada no nosso caminho -Ela balançou os braços, como se para fazê-lo entender. -Você não quer que melhore? Não sente saudades?

Ele não respondeu de imediato, fechou os olhos por dois segundos e quase pôde sentí-la novamente, tocando-a, apertando suas coxas, mordendo os lábios rosados que tanto o convidavam.

Deus, ele a queria como nunca. Se ela apenas soubesse o quanto testava seu autocontrole.

Quando voltou a abrí-los percebeu como ela esperava por sua resposta, mais ansiosa que o normal. As mãos apertavam a pele dos braços quando os envolveu em volta de si. Mesmo no deserto, com cortes e arranhões por todo o corpo e a roupa apenas um trapo infestado de sujeira e sangue, ele sentiu que não desejaria estar com nenhuma outra garota, ela era definitivamente a melhor coisa que tinha lhe acontecido em muito tempo.

Conseguiu, por fim, relaxar a tensão nos ombros e aliviar o tom de voz.

-Venha cá -chamou.

Seu coração deu cambalhotas apenas por ouvir essas palavras; ela não esperou que ele dissesse outra vez, os pés parecendo se mover sozinhos quando se aproximou até estar aninhada em seu peito, usou as mãos para segurar as laterais de seu corpo. Minho envolveu os braços ao seu redor e a segurou apertado, abaixando a cabeça e encostando o nariz no topo de seu cabelo. Ela apertou os olhos, sentindo o bolo em sua garganta querer se transformar em lágrimas; nenhum dos dois falou pelos próximos minutos e, por um tempo, tudo pareceu se dissolver ao seu redor.

-Desculpe -ele murmurou.

Camille levantou o rosto tão rápido que quase bateu em seu nariz.

-Como é?

Ele bufou, desviando o olhar para o lado.

-Você ouviu.

A vontade de chorar foi logo substituida por outro sentimento, uma sensação gostosa de familiaridade que a deixava nas nuvens.

-Oh, acho que a areia do deserto está afetando minha audição. Você poderia, por favor, repetir?

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Minho a encarou com uma carranca, ela estava claramente fazendo uma piada de seu temperamento orgulhoso; o sorrisinho que tremulava em seus lábios não deixando nenhuma dúvida. Se ela achava que ele iria cair na provocação, estava muito enganada. Tomou fôlego antes de declarar:

-Me desculpe -fez uma breve pausa, colocando um mecha de cabelo atrás da orelha da garota -, sinto sua falta... E eu seria um completo idiota em te deixar escapar por meus dedos.

Camille engoliu, não havia um pingo da ironia costumeira em sua voz, apenas sinceridade.

-Então não deixe -ela falou com a voz suave. Ficou na ponta dos pés, Minho voltou seu rosto para ela, os narizes se roçando levemente. -Eu não quero que me solte.

O beijo que se seguiu foi lento e delicado, carregando muito mais sentimento que luxúria. Ele lambeu levemente seu lábio inferior e ela o abriu, dando-lhe livre passagem; suas mãos foram parar no peito do garoto, apertando o tecido da camisa enquanto continuavam. No momento em que pararam por ar, mantiveram seus rostos juntos, sentindo suas respirações se misturarem.

-Acho que estão nos observando -ela diz, finalmente, referindo-se aos clareanos que não estivessem dormindo na tenda. Um leve sorriso brotava em seus lábios.

-Deixe que olhem -Minho repondeu, movendo-se para mais um beijo. Ao contrário do momento “agitado” de antes, nenhum dos dois tinha pressa, aproveitavam cada segundo de contato com devoção.

-Não quero brigar de novo -Camille alegou entre o toque, seus lábios ainda juntos.

Minho riu em sua boca.

-Eu não sou a melhor pessoa para prometer isso -respondeu enquanto desviava a atenção para sua pele, beijando seu queixo e mandíbula até perto da orelha onde sussurrou apenas para que ela ouvisse: -E se toda briga que tivermos terminar como naquele prédio, eu ainda pretendo ter muitas.

-Comporte-se, trolho - repreendeu entre uma risada; mas o modo como seu rosto enrubesceu e seu corpo se apertou mais contra o dele indicavam que ela não fazia nenhuma objeção à ideia.

-Eu sempre me comporto, Cammie.

-É claro que sim -ela revirou os olhos, o tom sugestivo do garoto não passando despercebido por ela.

A garota quase se permitiu relaxar por completo, derretida em seus braços, finalmente sentindo que as coisas voltavam aos eixos, quando um assunto de urgência passou por sua mente. Ela se afastou num salto, agarrando seus ombros.

-Newt!

Minho a olhou como se fosse maluca.

-O quê?

-Não pense que se safou dessa -ela começou, apontando o dedo em seu rosto. -, isso não vai ficar assim mesmo.

Minho ainda se perguntava em que momento ela enlouquecera de vez.

-Eu acho que ser atingida na cabeça revirou seu cérebro.

-Você disse que conversaria com ele!

-Opa, você disse que eu devia conversar com ele -ergueu as mãos em defesa, entendendo onde ela queria chegar. -Nunca concordei com nada.

Camille bufou em frustração, colocando as mãos na cintura.

-Nada vai mudar assim.

-Ótimo. Agora porque não volta aqui para continuarmos de onde paramos?

-Ah, nem pensar. Não até que vocês dois se resolvam.

O garoto apertou os dedos nos olhos, tentando não falar nenhuma besteira.

-Camille...

-Não me venha com “Camille”. Estou falando sério -disse, apontando o dedo em seu peito. -Passamos por maus bocados juntos e Thomas literalmente definhou na nossa frente, como pode ter coragem de ser cabeça dura num momento como esse? Não estou pedindo para saírem por aí abraçados, mas uma conversa não vai arrancar a sua língua.

-Deus, você consegue ser irritante -ele resmungou, passando a mão pelo rosto.

Ela não se deixou abalar pelo comentário, olhando-o duramente pelo que pareceu uma eternidade. Os dois se encararam numa batalha silenciosa, mas dessa vez Camille não vacilaria.

-O que eu fiz para merecer isso -ele murmurou, fechando os olhos por dois segundos antes de voltar a olhá-la. -Certo, Cammie. Você venceu. Eu falarei com aquele trolho, mas não me responsabilize por nada depois.

Camille teve de se controlar para não saltitar em comemoração. Pigarreou, mantendo a fachada séria.

-Quando?

-Logo.

-Prometa.

Ele arqueou as sobrancelhas.

-Não confia em mim?

-Não mude de assunto.

-Ah, claro, claro. Prometo -balbuciou, revirando os olhos. -Agora

volte aqui.

Camille ergueu uma sobrancelha e sorriu. O mesmo sorrisinho que ele sempre dava. Minho sentiu o feitiço voltando-se contra o feiticeiro.

-Oh, você não ouviu o que eu disse antes? Você pode estar comigo depois da conversa com Newt. Até lá, contente-se em me olhar.

Dito isso, deu-lhe as costas e caminhou calmamente para dentro do novo abrigo. Minho abriu a boca em descrença.

Não era ela que sentia saudades?

Resmungou um xingamento. Aquela trolha definitivamente o deixaria louco.