Morte aos Lobos

Capítulo 6 - Grito de socorro


Minha mochila está mais pesada do que eu me lembrava. Julie não queria dividir nada dos suprimentos e, apesar de Bob ser um completo idiota, concordou com Terry quando o mesmo sugeriu nos dar um pouco de comida, água e analgésicos. Depois que Julie me avisou que deveríamos ir embora, acordei Thiago e Caroline, disposta a convencê-los de ficar com o grupo.

— Vocês dois deveriam ficar. Eu ouvi quando Terry disse à Julie que vocês eram bons aliados — menti. — Tenho certeza que...

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Que coisa, Amy! Quantas vezes preciso dizer que não vamos ficar aqui sem você? — diz Caroline.

— Se precisar, pode dizer mil vezes. Não vou mudar minha opinião — avisei.

— Você pode ser teimosa Amy — começou Thiago —, mas nós somos mais.

Ele levantou rapidamente, e tentei ler sua expressão, mas simplesmente não consegui.

— Vou arrumar minhas coisas — anunciou ele antes de ir.

— Eu também.

Caroline foi atrás dele. Não consigo compreender. Se estão tão bravos, por que insistir em ir?

Terry veio falar conosco quando estávamos no parapeito do telhado, quase prontos para sair. Ele estava com um olhar triste, cansado, e olhava fixamente para a rua vazia.

— Eles devem ter se espalhado — diz calmamente. — Mas cuidado com os barulhos que vocês possam vir a fazer, ou vão acabar reunindo-os novamente.

— Não se preocupa, cara... — pede Thiago. — Vamos ficar bem.

Mas o grandão continua sério e continua:

— Eu penso que, se no passado, as pessoas tivessem sido mais generosas umas com as outras, muita coisa teria sido evitada.

Eu realmente não sei como responder. Terry parece verdadeiramente chateado com o que aconteceu com nosso mundo.

Caroline dá um sorriso triste e diz:

— Sabe, minha vida não era lá essas coisas, mas eu era feliz. Eu tinha uma família e amigos, e havia passado no vestibular de medicina — ela pausa para evitar o choro. — Acho que todos temos um motivo para lamentar este triste destino, não acha?

— Ei — diz Thiago enquanto abraça a irmã. — Não fica lembrando disso, maninha. Ainda estou aqui, esqueceu? Você ainda tem uma família.

Carol enterra o rosto na camisa de Thiago e faz de tudo para segurar as lágrimas.

— Talvez se... não sei... — Terry não sabe como escolher as palavras. — Às vezes, algo me vem à cabeça. Não sei se é certo pensar assim, mas acho que aquela segunda vacina foi o que de fato acabou com tudo. Os jovens que foram cobaias, se nenhum deles tivesse se oferecido...

— Mas eles foram vendidos para o governo; ilegalmente — acabo dizendo sem querer.

Ninguém responde de imediato, e trocamos olhares desconfiados. Por fim, Carol retorna de sua tristeza e, surpreendentemente, fala:

— Vocês acham mesmo que foi isso? Que a vacina deu errado?

Todos confirmamos, exceto Thiago.

— Claro que não! Parem pra raciocinar — diz com raiva. — A segunda vacina retirou dos jovens suas células mais poderosas, e as uniu com medicamentos caríssimos. Sem contar a substância curadora da saliva dos lobos. Como poderia ter dado errado?

— O que você está querendo dizer? — pergunta Terry.

— Mentiram pra gente, usaram algo muito ruim na vacina Ns-300, eu tenho certeza. Não é a toa que muitos daqueles jovens morreram durante as pesquisas.

Fico paralisada. Ela tem razão, como nunca havia pensado nisso? Quando eu achava que não poderia piorar, Carol completa:

— Alguns daqueles jovens chegaram a ser infectados, mas de uma forma diferente. Eles fazem as mesmas coisas que esses bichos, mas possuem sanidade humana.

— Carol — interrompe Thiago —, eu já disse pra você que isso não faz sentido.

— Que droga, Thiago! Eu cansei de você dizendo que é uma teoria idiota!

— Não foi o que eu disse...

— Vamos logo embora daqui — diz antes de afastar-se do irmão com ódio no olhar.

**

Estamos de frente para a enorme porta de entrada do prédio. Bob e Terry levantam as estruturas de ferro, e a luz do sol invade o hall.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Olho para trás uma última vez, Julie está olhando diretamente para mim. Giro o corpo e fico de frente para ela. Uma sensação totalmente estranha toma conta de meu ser, grudando meus pés ao chão. Encontrá-la era uma coisa que eu queria tanto. Não abandonamos a família, meu pai dizia. Não é exatamente isso o que eu estou fazendo? Quero correr até ela, dar-lhe um abraço apertado, e dizer que talvez nós duas aprendêssemos a amar uma a outra. Quero dizer como papai era, uma pessoa totalmente diferente do que tia Yolanda idealizou para ela. Eu quero ter uma irmã para cuidar e chamar de minha. Mas nada me garante que ela quer o mesmo, e o mínimo de informações que tenho sobre ela não ajudam. Ficamos assim por alguns segundos, mas pareceu uma eternidade.

— É melhor vocês irem logo — diz Julie.

Tive vontade de responder de mil maneiras, e em todas elas, Julie pediria para que eu ficasse. Mas apenas assenti com a cabeça e, por fim, disse:

— É... você tem razão.

Assim que colocamos os pés na pequena escadaria do shopping, ouço Julie dizer:

— Fechem essas portas de uma vez.

Não sei se foi impressão minha, mas senti um pouco de dor na sua voz. Decido que, se ela realmente estivesse triste, teria me deixado aqui, com ela.

A pequena cidade onde estamos faz parte de construções recentes, que foram erguidas para pessoas da classe alta, que se entocaram em meio à floresta para fugir das crises da cidade grande.

Andamos alguns quarteirões, memorizando onde estão as lojas, os mercados e as casas. Infelizmente, muitas pessoas passaram por aqui antes de nós e muitos locais estão totalmente saqueados.

Bob havia nos dito que, se seguíssemos para o leste, chegaríamos a uma cidade bem maior do que esta. Mas teremos que encarar um dia de caminhada pela floresta. Aderimos à ideia, mas passaremos ao menos dois dias em algum edifício próximo, para garantir que achamos tudo o que pode existir de útil por aqui.

Carol e Thiago estão à frente, mas ele diminui o passo para caminhar ao meu lado.

— Eu cheguei a acreditar que você tentaria ficar.

— Você mesmo disse que eu sou teimosa — respondi sorrindo.

— Acho que você tinha mesmo razão. Lembro de Julie com aquele papo de que não precisava de mais um fardo. Fala sério!

Por algum motivo, isso me faz rir. Era incrível a facilidade dele de me arrancar sorrisos.

— Eles são passado agora — lembrei.

— Pode ser, mas o grandão colocaria os bichos pra correr.

Caroline junta-se a nós e parece animada. Ela indica um prédio, o maior que vimos hoje.

— Olhem, parece um bom lugar para ficarmos hoje — diz ela.

— Vamos conferir — Thiago vai à frente, apressadamente.

O lugar está incrivelmente intocado, e os móveis dos apartamentos não estão revirados. Aqui moravam pessoas com rendas altíssimas, que não se importaram em deixar os pertences para trás, mesmo em meio ao caos, certos de que poderiam conseguir o que quisessem novamente. Bem vindos à nova era, penso, aqui o dinheiro não compra sua sobrevivência. Decidimos ficar em um andar alto, para ter uma melhor visão periférica.

Passamos o resto do dia fazendo pequenas refeições e conversando. Eu acabo conhecendo verdadeiramente meus companheiros de apocalipse. Thiago, como eu imaginava, tem a minha idade: vinte e dois. Caroline é sua única irmã, e é a caçula com apenas dezessete. Os pais eram muito ocupados com o trabalho, o que aproximou os dois. Carol é chocólatra assumida, e uma vez pôs a vida dos dois em risco quando fez o irmão ajudá-la a invadir uma loja de chocolates. Mas garantem que valeu a pena. Thiago diz que sente falta do emprego, ele era roteirista de um jornal famoso da sua cidade.

— E você, Amy? O que fazia antes de tudo? — quis saber Thiago.

— Se eu contar, vocês vão duvidar.

— Ah, qual é?! Diz logo, mulher! — pede ele.

— Eu era cozinheira — respondi. — Uma das ajudantes mais importantes do chef, e ele me garantia que um dia eu seria muito famosa pelos meus pratos.

— Bem, agora muita coisa faz sentido — diz Thiago pensativo.

— O quê faz sentido? — pergunto.

— O porquê de você ser tão boa com as facas.

Nós três caímos na gargalhada.

Quando percebemos, o sol já está quase se pondo. Vou para a janela que nós ainda não cobrimos com lençóis. As pragas não enxergam, portanto não poderiam ver as luzes, mas ainda existem pessoas ruins por aí.

O alaranjado do sol me dá uma leve sensação de paz, as matizes que se formam ao redor da grande estrela são um colírio para os olhos. Às vezes esqueço o quanto a natureza é linda.

Vou até Carol para cobrir a última janela. E então, escutamos o grito. Um grupo enorme de pragas está atrás de um jovem. Como esses bichos conseguem aparecer assim, do nada? Além de bizarros, são rápidos.

Mesmo do alto, consigo ver bem o garoto. Deve ter no máximo dezoito anos, está muito sujo e suado. A quanto tempo já está correndo a esmo? Ele parece exausto. Torço mentalmente para que ele consiga, mas acaba sendo alcançado e cercado. O garoto luta, e enquanto faz isso, acaba nos vendo. Ele pede socorro, a sua cabeleira negra me impede de ver seu rosto, mas vejo seus lábios se moverem.

Eu gostaria de ajudar, mas não é possível. As pragas arrancam seus membros e órgãos, mas ele parou de gritar e implorar. Usa seus últimos momentos para nos encarar raivosamente. Deve estar nos desejando o mesmo destino.