Memento Mori

5.0 - Shatter me


“Hoje eu me apresentei

Para meus próprios sentimentos

Em silenciosa cerimônia, depois de todos esses anos

Eles falaram comigo, depois de todos esses anos.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Talvez eu sempre soubesse

Que meus sonhos frágeis se quebrariam por você.”

— Fragile Dreams, Anathema

Planeta Zyta-4, colônia terrestre, 2078.

Clara fechou as pontas do robe de seda fina e cara sobre o vestido leve que usava por baixo. O mordomo havia se retirado, deixando que sua senhora atendesse o visitante. Clara desceu as escadas do casarão com graça e delicadeza, adentrando a sala guardada por um silêncio pacífico.

— Oh, olá — o estranho de cabelos loiros e roupas claras cumprimentou com um sorriso educado assim que Clara adentrou a sala suntuosa de sua própria casa. — Ouvi dizer que seu marido ainda não está em casa, certo? Muito simpático o mordomo de vocês, a propósito — ele de pronto começou a falar, aparentando não estar intimidado frente a uma mulher tão importante como ela.

A jovem aristocrata analisou-o de cima a baixo, ponderando que assuntos aquele sujeito poderia ter com Geoffrey, seu marido. Não que ela fosse questionar que tipo de pessoas ele deixava ou não de falar, afinal, o braço direito do primeiro ministro possuía inúmeros contatos diferentes.

— Ele devia ter chegado há mais de uma hora... — Clara soltou pensativa. Era de certa forma curioso ela estar se sentindo à vontade naquela conversa, revelando suas próprias dúvidas.

Geoffrey andava realmente estranho, frívolo, de certa forma, havia cerca de duas semanas até ali. Passando mais tempo que o normal fora de casa, entrando e saindo em horários incomuns... Ele afirmava ser o trabalho no governo, que estava mais pesado com o objetivo de organizar uma recepção para os representantes do planeta vizinho, Pyton, tendo em vista o firmar de novos negócios entre as duas civilizações. Tudo devia ser pensado nos mínimos detalhes, ele dizia, para impressionar os convidados. Porém, Clara sentia que havia algo a mais. Geoffrey andava distante, arredio até. Sua intuição dizia para suspeitar de algo errado.

— Geoffrey tem agido um pouco diferente nas últimas semanas, se me permite perguntar? — O convidado soltou logo sua pergunta, revelando o porquê de sua visita. A aristocrata deixou um silêncio pairar no ar brevemente, sequer conhecendo aquele sujeito para ir logo falando de sua própria vida. — Oh, me desculpe, esqueci de me apresentar. Sou o Doutor. — O loiro esticou a mão e cumprimentou-a com um aperto de mão suave e gentil, ainda sorrindo com simpatia. — Eu sou um... Colega de parlamento de Geoffrey.

Os dois terminaram o aperto de mãos e logo o Doutor colocou as próprias mãos dentro dos bolsos de seu casaco de críquete. Aquilo era um aipo pendurado na lapela dele? Bem, cada um com suas manias, Clara pensou. Não que os outros membros do parlamento de Zyta-4 fossem grandes exemplos de moda.

— Ele... — O olhar de Clara cruzou com o do Doutor e a jovem sentiu-se, de alguma forma, à vontade para conversar e contar da própria vida. — Ele tem andado um pouco estranho nos últimos tempos, sim. — Ela cruzou os braços e balançou um pouco a cabeça, lembrando-se da última noite, de quando avistou, pela janela do quarto, Geoffrey saindo do prédio em plena duas horas da manhã. — Vem e vai em horários estranhos, de madrugada, tem retornado cada vez mais tarde do trabalho... Falando nisso, como anda essa recepção de vocês? Geoffrey diz que precisa ficar até tarde para cuidar de tudo... — Clara questionou com curiosidade, sentindo o seu instinto investigativo aflorar. Desde a última noite e a saída na madrugada ela se sentia assim, como se pressentisse algo.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Bem... — O Doutor pareceu um pouco desconcertado, tirando as mãos do bolso e cruzando-as atrás das costas. Ele limpou a garganta antes de começar a falar. — Temos tido bastante trabalho com a recepção, mas está tudo dentro dos conformes, não precisa se preocupar. — Ele devolveu um sorriso para ela e começou a caminhar lentamente em direção à saída, sem dar as costas para a aristocrata. — Há quanto tempo seu marido tem agido de forma estranha? — O Doutor parou na soleira da porta, pronto para sair daquele prédio e partir logo para a ação.

— Em torno de umas duas semanas...

— Obrigado, senhora, muito obrigado. — Ele sorriu novamente e abaixou a cabeça em uma despedida educada. — Tenha uma boa tarde — desejou e partiu logo em seguida.

Clara foi até a janela da sala, visualizando logo em seguida o sujeito cruzar o jardim e alcançar a saída correndo. Qual foi a finalidade daquele questionário?

Sua vida pacata estava se tornando realmente movimentada e ela sentia seu espírito aventureiro e investigativo aflorar novamente, após tanto tempo adormecidos, dessarte, não era nada elegante uma mulher da alta sociedade ficar andando por aí em busca de aventuras, como Clara costumava fazer quando era mais nova. Ela sentia tanta falta disso...

Menos de cinco minutos após a partida do Doutor, ela avistou o próprio marido adentrando a propriedade e atravessando o jardim. Se aquele sujeito tivesse demorado alguns minutos a mais, teria conseguido conversar com Geoffrey o que quer que ele quisesse. Que coincidência o desencontro...

— Olá, querido. — Clara correu para receber o marido assim que ouviu um barulho na porta da frente. Geoffrey era auxiliado pelo mordomo a retirar o casaco. — Como foi o trabalho hoje? — insistiu em uma pergunta clássica, contudo, diferente das outras vezes, com intenção de sondar o marido atrás de respostas.

— Atribulado, como sempre — respondeu seco após o mordomo pendurar o casaco e partiu rumo às escadas. Clara seguiu-o logo atrás, não querendo deixá-lo cortar a conversa como das últimas vezes. — Você ainda não se vestiu para a recepção? — ele questionou para a esposa, olhando-a de cima a baixo ao terem chegado ao topo da escada. Havia certa arrogância e um ar de autoridade no olhar de Geoffrey, que Clara tinha certeza nunca ter visto até duas semanas atrás.

— Você não me avisou que seria hoje...

— Daqui a duas horas. Está avisada agora. — E deu-lhe as costas, pronto para sumir no corredor.

— Um conhecido seu do parlamento acabou de ir embora. Disse se chamar Doutor — Clara anunciou para o marido, que parou a meio caminho de uma das portas.

— Ótimo. — Geoffrey voltou-se de frente para ela e a aristocrata estremeceu um pouco ao ver um sorriso quase maníaco no rosto do marido. Talvez tivesse algo ali além do que ela havia imaginado... — Partiremos em duas horas — anunciou por fim, entrando em um dos quartos e batendo a porta, quase ecoando pelo enorme e silencioso corredor vazio.

Clara viu-se sozinha novamente com suas próprias dúvidas. A única certeza que tinha era de aquele não era seu marido.

...

Clara caminhava com graça por entre os inúmeros convidados elegantemente vestidos da recepção. Um quarteto de cordas era a trilha sonora para o momento, dando um tom suave e delicado das notas do violino e da viola para os presentes que sequer se importavam, mais embalados em suas próprias conversas e anedotas.

A aristocrata avistou o primeiro ministro conversando com dois representantes possuindo um tom de pele levemente esverdeado, vindos diretamente do planeta Pyton. O trio parecia em entendimento, pela postura relaxada de seus corpos. A jovem caminhou para o meio do salão, saindo de perto da mesa do buffet, quando sentiu alguém esbarrar com força em suas costas. Clara desequilibrou-se com a saia justa e longa do vestido e caiu de frente, atraindo alguns olhares dos convidados por perto.

— Desculpe, estou com um pouco de pressa. Está tudo bem com você? — Uma mocinha de olhos azuis gentis estendeu a mão para ela. Era a mesma pessoa que esbarrara nela instantes antes.

— Obrigada. — Clara ficou de pé com a ajuda da moça, vendo que ela trajava um conjunto de calça e casaco no tom de vinho, destoando completamente dos vestidos e ternos formais dos outros convidados da recepção.

— Nyssa! — O Doutor, aquele mesmo homem que a visitara algumas horas mais cedo, gritou para a jovem de olhos azuis, recebendo olhares repreensivos por causar alarde no meio de um ambiente tão elegante.

Nyssa despediu-se de Clara com um sorriso e logo deu as costas para ela, correndo atrás do Doutor e sumindo de vista em alguns piscares de olhos, saindo pelas portas do salão em direção ao corredor que guiava mais para dentro do prédio do parlamento. Aos convidados não era permitido ir até lá, restringindo a cerimônia apenas às áreas do salão e do jardim.

Mandando às favas o decoro, Clara resolveu ir atrás daquela dupla que tanto lhe atraía a curiosidade. Quem sabe ela até encontrasse Geoffrey pelo meio do caminho! Ou talvez ele estivesse no jardim, com... Não, ela seguiria os seus instintos, que voltaram a aflorar ainda mais fortes naquele momento.

Quanto mais se perdia pelos corredores cheios de portas e mais portas do prédio do parlamento, mais baixo ficava a música e as vozes dos convidados junto de suas regras de etiqueta e protocolos. Clara sentia-se mais leve em espírito, longe daqueles olhos julgadores, mesmo que limitada em movimentos pelo vestido justo que trajava.

Estava pronta para passar reto por mais uma das portas quando ouviu uma gargalhada alta, expressando talvez deleite de quem quer que risse daquela forma. Arqueando uma sobrancelha curiosa, voltou alguns passos, vendo as costas da mesma moça que esbarrara minutos atrás. E, para seu espanto, Geoffrey apontava um tubo preto para ela, provavelmente algum tipo de arma.

Os olhos que a aristocrata tanto conheciam voltaram-se para ela ao fundo, tendo ouvido o barulho de saltos ecoando pelo corredor.

— Minha cara Clara — Geoffrey soltou com deleite na voz enquanto ela adentrava boquiaberta o salão dos acordos, onde todos os ministros reuniam-se para as decisões referentes à sociedade em que viviam. Seu marido continuava apontando o objeto para Nyssa, que o encarava de queixo erguido e com fúria contida nos olhos claros. — Deseja se juntar à nossa festa?

Abrindo e fechando a boca várias vezes, Clara finalmente conseguiu pronunciar alguma frase em meio a tantas que rodavam em sua mente naquele momento.

— Por que você está fazendo isso, Geofrrey? Por que está apontando uma arma para ela? Por quê... — Os olhos da aristocrata passaram do homem à sua frente para aquele que estava tombado ao fundo. Seu queixo caiu ainda mais ao ver uma faca sobre seu peito e sangue ainda fresco. Ela sequer tinha reparado naquele cheiro metálico que ia impregnando aos poucos no salão.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Geoffrey — ou aquele que se parecia com ele — soltou uma risada baixa ante a confusão de Clara.

— Geoffrey se foi há muito tempo, minha cara. — Para sua surpresa, o sujeito que ela acreditava ser seu marido começou a puxar com a mão livre a pele na região do pescoço, revelando que tudo era um disfarce e o rosto de Geoffrey nada mais era que uma máscara de uma tecnologia que a aristocrata sequer conhecia. Debaixo do que era a face de seu marido, revelou-se um rosto com olhos escuros e impiedosos, portadores de um olhar que a fez estremecer. O cavanhaque completava a aparência de aristocracia daquela face. — Eu sou o Mestre.

Nyssa sequer reagiu quando o senhor do tempo se revelou, enrijecendo ainda mais a mandíbula ao ficar mais uma vez frente a frente ao rosto de seu pai*. O grande problema era que aquele deixara de ser seu pai havia muito tempo, pelo contrário, aquele senhor do tempo apenas usava seu corpo livremente, tendo a vida de Tremas ido embora de trás daqueles olhos outrora tão gentis. Agora eles eram frios.

— Você matou o meu marido... — A mente de Clara logo adivinhou, não precisando sequer de uma confirmação do homem estranho à sua frente.

Os olhos de Clara começaram a se encher de lágrimas, nublando sua visão e fazendo seu peito arder com um turbilhão de sentimentos que forçava saída.

— Essa sociedade nunca o aceitara como líder! — Nyssa disse com sua voz em tom moderado, ainda sob a mira do TCE**. Ela desejava não ter se separado do Doutor pelo meio do caminho... Talvez ele a encontrasse a tempo.

— Você subestima a adoração das pessoas, minha cara. Ao ver um alto representante de seu planeta, morto pelo Doutor — Mestre pontuou, causando confusão na jovem Nyssa, enquanto Clara ainda o encarava em uma mistura de lágrimas e ódio —, em uma cerimônia organizada pelo próprio governo de Zyta-4, eles se voltarão para o primeiro que surgir com uma solução: eu — gabou-se de seu próprio plano cheio de soberba na voz.

Amante do caos, tudo o que o Mestre queria era causar uma guerra entre os dois planetas, para, no fim, ele mesmo surgir como uma solução para o conflito, tornando-se adorado pelo povo por ser aquele a dar cabo de tamanha destruição. Talvez o elevassem a primeiro ministro de Zyta-4 ou ainda criassem um cargo mais alto para que assumisse, ele ambicionava. Imperador, talvez?

O que não estava em seus planos, contudo, era que seu velho conhecido Doutor fosse cruzar o seu caminho, como sempre fazia. Ao menos não deixaria passar a oportunidade de acusá-lo do assassinato que ele mesmo acabara de cometer em prol de seu plano ambicioso. Dois coelhos com uma cajadada só, como costumava dizer aquele ditado que ouviu na Terra.

— Você não irá conseguir acusar o Doutor de algo que ele não fez — Nyssa afirmou, ainda mais tensa ao descobrir o plano do senhor do tempo para seu amigo.

— Não é o que as impressões digitais naquela faca dizem... — Em momento algum o Mestre tirou aquela arma da direção em que estava apontada, direto para Nyssa.

Quase sumida no meio das suas lágrimas durante os breves instantes daquele debate, Clara fez-se ouvir novamente.

— Você matou o meu marido!

O Mestre estava pronto para mandá-la calar a boca, quando foi surpreendido pela figura pequenina da aristocrata vindo direto para cima de si, cheia de fúria e de um coração partido.

Aquele homem matou Geoffrey e ainda queria causar uma guerra em seu planeta e levar um inocente à prisão?! O peito de Clara borbulhou ainda mais com aquela confusão de sentimentos e ela finalmente deixou que eles escapassem enquanto atacava com força as unhas no rosto do senhor do tempo.

— Não! — Nyssa despertou do susto, porém não rápido o suficiente para impedir que a mão do Mestre colocasse o TCE em ação.

Em uma fração de segundos, Clara sumiu de cima do senhor do tempo e o Doutor apareceu na soleira da porta junto de dois guardas que achara pelo meio do caminho.

Nyssa encarou chocada a miniatura do que outrora fora Clara, afetada pelo poder do TCE do Mestre. O senhor do tempo sequer teve tempo de recuperar-se de seu orgulho ferido e fugir para sua Tardis, sendo logo pego pelos oficiais.

O Doutor colocou a mão sobre o ombro de Nyssa, seguindo com tristeza nos olhos para o ponto que a jovem encarava.

Mesmo sem saber, a Garota Impossível o salvara mais uma vez: impediu que um inocente fosse preso por algo que não cometera. Deixando que todos seus sentimentos viessem à tona pela última vez, Clara salvara não somente o Doutor, mas todo o seu próprio planeta de uma guerra.