Meia Lua

Aqueles que resistem à tempestade


Cássio estava feliz. Finalmente de novo lá fora, caçando com Mauro, revirando as prateleiras do estoque de uma farmácia distante. Luca podia fingir o quanto quisesse, ele não estava bem. Precisava daquele remédio. Sorte deles que as pessoas fugiram pra cidades maiores, deixando muita coisa intocada.

Houve saqueadores, claro, mas mesmo eles não voltavam. Seguiam em frente. Como todos os outros, eles se escondiam e corriam. Sempre havia um obsessivo mais recente que os encontrava numa corrida mais extensa. E não, eles nunca aprendiam que não deviam disparar tiros lá fora. Não deviam fazer barulhos altos. Eles não caçavam animais por falta de fome, e sim por excesso de barulho.

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Luca acompanhava as câmeras, nervoso. Todo seu instinto gritava que trouxesse os dois de volta. Precisava daquela droga de antidepressivo e Marina, de toda a ajuda que pudessem trazer. Tentavam se manter otimistas, mas os dias passavam e ela não melhorava. Fred não dormia, e Luca temia que ele chegasse a um ponto sem retorno. Quando pensava nisso, a pistola nas suas costas ficava mais gelada.

— Sim, tragam essas latas grandes. Qualquer um! Escolham aí. Duas ou três. Grupo de três às dez horas. Dois recentes.

Acompanhava pelo drone e pela câmera de Cássio os dois imóveis na frente das prateleiras, como obsessivos antigos. Todo o ruído era do sangue velho pingando no chão. Os monstros entraram e os ignoraram, como sempre. Quando eles saíram, eles os acompanharam devagar, seguindo o caminho de volta, quando aconteceu tudo ao mesmo tempo. Luca viu dois humanos escondidos, camuflados, e sibilou “Caiam! AGORA”, quando os disparos começaram. Viu a imagem despencar, e não conseguia saber se tinham sido atingidos, se estavam vivos. Podia ver a capa de Mauro à frente, e amaldiçoava toda célula na sua cabeça e cada segundo que deixou de ver aqueles restolhos de gente.

— Fred, sobe o drone! Não deixa eles te verem!

— Hmnm?

— Fred? Cara, acorda! Desaparece com o drone, pode ter mais desses filhos da puta. Tá me escutando? Sobe o drone, Fred! Ah, me dá isso! Cássio, Mauro, se puderem me ouvir, façam algum ruído.

Os estalos leves que ouviu no comunicador era a música mais linda que ele já tinha escutado. Ninguém se aproximou. Luca mexia furiosamente nos controles, e quando ativou a câmera certa viu que eles se afastavam.

Praguejou baixinho. Fred olhava a tela apático, como se não soubesse o significado de nada daquilo. Todas as noites sem dormir estavam transformando-o num perfeito idiota. Pareceu um tempo infinito até que ele finalmente pôde dizer a eles para seguir.

— Vocês estão feridos? — Ok, aquilo era Morse. Longo, curto: N. — Obrigado, Deus. Venham pra cá. Rapazes, agora o drone tá longe. Qualquer coisa, matem, mas peguem os remédios, as latas e venham direto pra cá. Fui claro?

Curto, curto, curto: S.

— Fre… Inferno, Fred! Acorda! Os rapazes estão lá fora! Preciso da sua ajuda aqui! Olha pras telas, se aparecer qualquer coisa que não o Mauro ou o Cas você me avisa, entendeu? Eu vou subir e levar o controle.

O loiro só acenou devagar, como se em transe. — Já posso voltar pra Marina?

— Não, não pode. Fica aqui até eu voltar. — Ah, meu pai. O homem estava dormindo em pé, de olhos abertos. Teria que cancelar a outra viagem programada, não era seguro pros dois irem pra longe se tudo que tinha era aquela samambaia loira para ajudá-lo.

— Vem aqui. Pronto, comunicador no lugar. Não mexe em nada, só responde o que eu perguntar.

— …

— FRED! — Queria estapeá-lo até que recobrasse a razão, mas não antes de garantir a segurança dos rapazes lá fora. — Senta aí, droga, e não mexe em nada até eu voltar.

Rodou rápido até o arnês que Marina desenhou pra ele e içou-se até o telhado. Rastejou com cuidado até o beiral e posicionou o rifle. Procurava por eles com uma luneta improvisada, até que viu as silhuetas conhecidas. Começou a vigiar pela luneta e pelo controle do drone até os dois estarem a algumas centenas de metros.

— Tudo tranquilo, Odin?

— Limpo. Alguém seguindo vocês?

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— Negativo.

— Venham. Estou descendo pra abrir a porta. — Os viu mudar de direção e fez o caminho de volta apressado. Fora um joelho machucado na queda, os dois estavam bem. Os deixou se limpando e voltou para o telhado.

Observou pela luneta toda a frente do laboratório. Estava cansado, com raiva e frustrado, e tudo que desejava naquele momento era algum daqueles caçadores no alcance da arma.

— Odin, tá fazendo o que aqui em cima de novo?

— Tinha razão, Cássio. É um exército. Tem gente não transformada atrás daquele grupo que vimos. Vocês não podem mais sair com aqueles merdas lá fora brincando de tiro ao alvo.

Cássio olhou pras mãos crispadas em torno do cano da arma.

— Você está esperando pra atirar neles?

— Quero ver se eles acham divertido ser a caça dessa vez. — Reconhecia aquela fúria fria e homicida de Luca, e não sabia dizer se ficava feliz ou amedrontado por ter aquele chefão da máfia cuidando deles.

— Vem, Luca. Acabou por hoje. Se tá vindo um grupo organizado que usa obsessivos, precisamos de você lá embaixo.

Viu o outro checar o horizonte uma última vez, um leão vigiando o território, e rastejar de volta pra dentro.

***

— Onde está o Fred, Mauro?

— Do lado dela, onde mais? Ele comeu hoje, Odin?

— Nada. Vou lá ver a Marina.

— E você?

— Sim. Me chamem se precisarem. — Pôde ouvir a preocupação na voz de Mauro quando o chamou, porém seguiu em frente. Empurrou a cortina pro lado com a coronha do rifle e entrou sem cerimônia.

Marina continuava com aquele tom cinzento na pele toda, murmurando num sono febril. Sabia que ela podia adoecer, mas tinham se passado nove dias e ela continuava a piorar, não importava o que fizesse. Cada vez mais ela parecia com um obsessivo, e os últimos dois dias encontravam Fred afogado num desalento mudo.

Luca até conseguira medicá-lo por alguns dias e forçá-lo a dormir, mas agora ele não comia ou bebia. Sequer se movia sem ser ordenado pra qualquer coisa que não fosse cuidar da namorada. Vacilou até Luca e o ajudou com os curativos, depois se sentou ao lado dela e continuou a encarar o nada.

— Ajuda a Marina, Luca.

— Estou fazendo tudo que posso. Ela vai viver, Fred. Só dorme um pouco, sei lá há quantos dias você não descansa.

— Preciso estar aqui quando ela acordar.

— Você vai. Prometo te chamar assim que ela abrir os olhos. Mas não vai ajudar ficar acordado.

— Se eu dormir Luca vai atirar nela.

— Fred, você sabe que eu não atiraria na Marina. — mentiu calmamente. — Nunca. Só preciso que você cuide de si pra ter força pra cuidar dela.

— Prometeu. — replicou numa voz monocórdia. Continuou movendo a boca, ausente.

Odin lembrou dos olhos repletos de angústia, da expressão desesperada de dias antes: “Não me obriga a sobreviver a ela, Luca. Me promete.”

— Ela vai viver, Fred. Todos nós vamos.

Não percebeu quando Odin foi embora. Não podia sair dali até ela acordar. Tinha a cabeça leve, não conseguia pensar direito, via um mundo cada vez mais colorido e disforme. Caso se afastasse, nunca conseguiria encontrar o caminho de volta, e ela morreria sozinha no escuro. Aguentaria um pouco mais. Porque ela acordaria, tinha certeza. Com certeza os apagões também acabariam quando Marina despertasse.

Tudo melhorava perto dela.

***

— Como foi que nós não morremos, Cas?

— Não faço ideia. Caí quando Luca mandou cair. Talvez porque a gente tava na outra ponta do grupo. Mas essa passou raspando. Sabe se a Marina melhorou?

— Fui lá. Tá péssima. Eu espero que ela não morra. Fred não vai aguentar perdê-la de novo.

— Também já ficamos assim, não lembra? Você já ficou quinze dias com um pé lá e outro cá, quase me matou do coração. Olha pra isso aí. Tão vindo dezenas, talvez centenas de obsessivos. Nesse passo, eles estarão aqui logo. Luca te contou que ele acha que tem alguém tangendo esse grupo pra cá?

—Gente não mordida? Teremos que desligar e trancar tudo quando eles passarem. Tirar todas as armas do armário e rezar pra não precisar delas. Será que a porta aguenta? Eu não acerto nem um elefante com um revólver.

— Eu sei disso, Mauro. — Luca rodava na direção das telas — Vou precisar das suas habilidades e do Cas em algo diferente. Precisaremos de outra solução aqui.

— Credo, Luca. Teu sorriso tá me assustando.

— Não importa com o que vierem, estaremos prontos. Sentem aí, me deixem contar o plano. — Quando terminou, os dois o observavam com um misto de admiração e choque.

— Cara, se isso der certo, nem vão nos notar aqui. E se ainda assim chegarem perto, vão ficar presos no alcance das tuas armas.

— Armas? Se eles chegarem perto, vamos explodir os bastardos do demônio, então atirar neles, incinerar o que sobrar e mandá-los de volta pro inferno embrulhados pra presente. Comecem logo, temos pouco tempo.

— Eles não vêm com um tanque, né? — Luca encarou Mauro um momento, até perceber que era uma piada.

— Você assistiu muito Caminhantes Mortos, cara. Quando estiver tudo pronto, me avisem. — Rodou até o quarto de Shkreli. Como sempre, ele estava entretido com papéis e gráficos. Ouviu o xingamento logo antes de chegar.

— Boa tarde, doutor. Como estão as coisas?

— Boa tarde, Luca. Ainda não consegui progresso com esse vírus. É muito mais difícil do que pensei. Se ao menos eu tivesse mais equipamento... Me diga, a Marina está melhor?

— Não. Mas espero que ela melhore. E temos outro problema. Tem uma horda vindo pra cá, e talvez haja alguém manipulando todos aqueles obsessivos. Acredito que são homens que explorem outros sobreviventes.

— São muitas desventuras. Nenhum de vocês se chama Baudelaire?

— Como?

— Só distração minha. Li uns livros que Fred me emprestou, e... Deixa pra lá. Como eu posso ajudar?

— Vamos precisar de ajuda pra bloquear a porta, organizar a cozinha, carregar água. Assim que Marina melhorar, você e Fred retomam a pesquisa.

— Estou pronto. Pode me deixar sair.

E eles trabalharam. Construíram armadilhas, munição, limparam e afiaram as armas. Não viam mais Fred, apesar dos protestos dos outros, no fundo eles já tinham muito trabalho e era bom que alguém estivesse cuidando dela.

Numa noite, caíram de cansaço na cama.

— Puta que pariu, acho que Odin quer nos matar de trabalhar.

—...

— Eu nem sabia que Fred tinha toda aquela sucata lá trás. — O mago continuava em silêncio. — Cara, o que tá errado? Você e Odin estiveram estranhos a tarde inteira.

— Fui ver a Marina e o Fred. Eles estão morrendo.

— Mau, você tá exagerando. Eu e você já adoecemos por causa daquela porcaria dezenas de vezes, ela vai melhorar. Nem fala isso em voz alta, se Fred te escuta-

— Nunca ficamos com a pele daquele jeito, ou com a pressão tão baixa, Cas. Nada do que Luca fez adiantou. E Fred… Ele não se mexe mais pra nada. Luca enfiou um daqueles tubos no nariz dele hoje, faz dias que ele nem bebe água.

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— Aquela coisa incomoda demais.

— Fred nem abriu os olhos. Odin insistiu que eu gastasse tudo que precisasse pra manter a Marina viva, mas tem aquelas coisas vindo, e sei lá quantos filhos da puta atrás deles. Se eles passarem perto demais, prestarem atenção no laboratório...

— Esse lugar vai parecer a porra do prêmio da Mega Sena. — Cássio completou infeliz. — E mesmo que eles não consigam entrar, vai dar um trabalho do cão espantá-los da nossa porta. Merda, se eles só ocuparem o bairro vamos morrer de fome.

Podiam ouvir a voz de Luca, em algum ponto distante, tentando uma resposta de Fred. Mauro assentiu, deprimido. — Eu tenho que distraí-los. Não é complicado, mas exige muita energia. Não dá pra fazer isso e ajudar a Marina. — Bateu no chão, grunhindo frustrado. — Nem sei se consigo fazer a Ma melhorar, mesmo que eu tente.

— Claro que consegue. Já fez isso comigo e deu certo, não foi?

— Pura sorte, e não dá pra fazer igual. Vai ser como atirar com um canhão velho: Virar na direção que quero e rezar pra não explodir a porra toda. Não dá pra mirar, Cas.

— Mas pelo que você disse, ela tá ferrada de qualquer jeito. E aí Luca terá que atirar no Fred, o tapado não aguenta viver sem ela. O que pode ser pior que isso?

— Ninguém vai me perdoar nunca se essa droga der errado. E pode dar horrivelmente errado, Cas. — A voz baixou até um murmúrio dolorido. — A coisa mais humana a fazer é deixar tudo como está. Até o Luca entendeu isso.

Cássio achou que não tinha ouvido direito. Moveu-se até ficar de frente pro Mauro, tentando controlar a raiva. — Mauro, essa porra não tem graça. Você tá falando da Marina. Tá sugerindo que o melhor é deixar a garota definhar na frente do Fred?

— Ela é minha prima, babaca! Acha que eu gosto de vê-la assim? Posso acabar transformando a garota num tipo de Obsessivo, caralho! Acordar a menina e deixá-la presa naquele corpo moribundo! Ou fazer um maldito zumbi! E aí todo mundo morre, porque eu não afastei os putos que estão chegando aí! Ou porque ela e o Fred mataram todos nós!

— Pelo menos tenta. Levanta essa tal barreira mística e ajuda com o que sobrar. Ela só precisa de uma chance, vai ver. Vou contigo, e prometo que se ela virar um monstro eu resolvo o problema. Mas se tem alguém que é capaz, é você. É um mago forte pra cacete.

— Você tem coragem de acabar com a Marina? Ou com o Fred?

— Sou um assassino, Mau. É o que faço, matar pessoas.

— Já falei pra parar com essa-

— É o que eu sou agora, e não muda de assunto. Falo com o Luca?

— Avisa a ele, mas tem mais uma coisa. Ei, senta e olha na minha cara, porra.

— Diz logo.

— Esse tipo de magia não pode ser interrompida. E vou fazer uma porrada de coisa hoje. Se eu morrer, você fica na sua, entendeu? — Viu o ciborgue recuar, o olho arregalado.

Era uma chance pequena, mas não correria o risco do cara surtar e ferrar com a vida de todo mundo de novo. — Pode acontecer. E Você. Vai. Ficar. Quieto. Lembrar que essa maluquice também foi ideia sua. Não quero arriscar me foder inteiro e você mandar todo mundo pro além uma hora depois. Além disso, não vai tocar em mim, falar comigo nem vai deixar nada me interromper até eu acabar, ouviu?

Cássio continuou encarando-o atordoado. Mauro quase podia vê-lo procurando alternativas, qualquer outra coisa que pudessem fazer que não arriscasse a morte de todo mundo… até desistir. Sussurrou de cabeça baixa:

— Prometo. Mas não vou precisar, você vai dar um jeito. Vou conversar com o Luca. Me espera voltar, ok?

— Ok. — Observou o amigo se afastar quase correndo. Merda. O idiota tinha razão, não podia deixar a Ma naquela miséria. Nem mesmo Odin esperava que ela ficasse tão mal, ou que ele não pudesse consertar sem arriscar tudo. Eles mereciam pelo menos uma tentativa.

Cássio encontrou Luca sentado ao lado do colchão, vigiando Marina. Chamou o mais baixo que conseguiu, Odin virou pra ele como um zumbi. Fred permanecia sentado, imóvel como um bicho empalhado.

— Que é, Cássio?

— Mauro vai tentar melhorar a Marina depois de ativar a barreira mágica lá fora.

— Ele não pode. Os riscos são grandes demais.

— Acredite em mim, ele consegue. — O lobo imbecil tinha razão. A garota estava nas últimas, e parecia arrastar Fred e Luca com ela.

— Ele lhe disse que ela tem chance de virar algum tipo de obsessivo? Que ele vai arriscar a vida e ainda assim pode não ser suficiente?

— Sei disso tudo. Mas deixa o Mau tentar, Luca. Essa situação está fodendo você também. Se Marina virar qualquer coisa, eu estarei aqui. Ela não vai ferir ninguém.

— E ainda tem aquela maldita horda vindo direto pra cá. Não consigo, é problema demais. — Suspirou pesadamente, e desviou do olhar de Cássio. — Diz pro Mauro ajudar no que puder sem morrer. Eu vou... aguardar, acho. Em outro lugar. É tudo que eu posso fazer.

***

Encontrou Mauro na frente do computador principal. Ele parecia brilhar quando se curvou no escuro.

— Me perdoa, Ramona. Eu queria falar com você, ver você. Mas preciso salvar meus amigos. Me desculpe. — Virou-se, e ele não conseguia ver as pupilas. Um arrepio desagradável tomou Cássio, mas ficou mesmo assustado ao ver a respiração sair em nuvens, a temperatura despencando. Mauro parecia o centro de uma tempestade.

O ouviu falar naquela estranha linguagem de magia, até brilhar como um pequeno sol. Quando o brilho diminuiu, Cas enxergou o mago apertando a bancada com tanta força que ouvia o metal ranger em protesto, as telas e luzes acendendo e apagando descontroladas, até que tudo apagou de uma vez. Merda, até aquelas tiras que brilham no escuro do chão sumiram. Era como estar cego. Como diabos não encostaria em Mauro se nem sabia onde ele...? Ah. Os olhos brancos ainda brilhavam.

Andou à frente no que esperava que fosse uma distância segura, até chegarem ao colchão de Marina. As luzes de segurança voltaram a acender, ele parecia farejar o rosto de Marina (e talvez ele nunca fosse se acostumar com Mauro se comportando como o Doutor Esquisito numa hora e como um vira-lata no momento seguinte)

Silêncio, só quebrado aqui e ali pelos arquejos curtos de Marina. Ela estava respirando cada vez pior, e Cássio implorava mentalmente pro amigo se apressar. Iria fechar a boca de Fred com a mão, pra ter certeza que ele não diria nada dormindo, até notar que ele brilhava mais ou menos como a Marina.

Depois de um tempo, algo no ar mudou: Os olhos de Mauro estavam voltando ao castanho no meio da coisa, mostrando muito do branco, e seus movimentos eram bruscos como um eletrocutado ou alguém prestes a ter uma convulsão.

Algo estava brutalmente errado, tinha certeza, mas o que poderia ser? Marina começou a se mover em reação, mas parecia muito mais com a garota do Exorcista que com uma pessoa sendo curada. Puta merda, que não fosse um demônio ou coisa assim. Podia lidar com obsessivos e bichos selvagens a qualquer hora, mas assombrações... coisas do além vida eram outra história.

Se gritasse pelo Luca, ele mataria todo mundo. Será que a magia do homem estava acabando? Olhou ao redor, tentando pensar em meio ao pânico crescente, dando voltas na tenda, até que viu o lápis mágico.

Mauro tinha sido bem específico que não o tocasse ou interrompesse, mas isso era uma emergência. O troço era mágico, era da Marina, talvez pudesse ajudá-la. Com o cuidado de alguém desarmando uma armadilha, enfiou o lápis na mão dele e se encolheu, esperando a explosão ou gente andando de quatro no teto.

Levantou a cabeça uns segundos depois, quando tudo continuou silencioso. Mauro oscilava, um cheiro forte de queimado. Caiu como uma árvore em cima de Cássio, que o segurou por muito pouco. Estava muito quente, mas respirava, e o deitou atrás de si. Puxou a faca e olhou a garota cauteloso, mas agora a respiração parecia mais suave, e aquele cinza sinistro parecia ceder um pouco. Fred ainda estava estranho, mas vivo.

Mauro tinha salvo a droga do dia mais uma vez. Pousou a faca e se preparou pra mais uma noite em claro. Ouviu o ranger das rodas anunciando Luca. Ele parou antes de puxar a cortina que os separava.

Esperando.

— Estamos todos vivos mais essa noite, Odin. Se puder, traga um cobertor e um travesseiro pro Mauro, ele apagou. — O rangido se afastou. Quando o ruído se aproximou de novo, ouviu um “Obrigado” numa voz rouca que o fez imaginar o que Luca estivera fazendo no escuro. Saiu, encontrou apenas um travesseiro e um cobertor dobrados em cima do colchonete gasto. Deu um pouco de trabalho puxar Mauro pra cima do colchonete, mas conseguiu. Sentou-se ao lado dele, e desejou ter um pouco de café pra ajudar a passar o sono. Podia ouvir o amigo enrolado nos cobertores, ressonando tranquilo.

— Você conseguiu de novo, Mau. Parabéns.