Eu batia o pé debaixo da mesa, inquieta e ansiosa. Ou o tempo não passava ou ele passava demais, constato fuçando as altas horas no meu celular e Iara me olha de olhos baixos. Era fim de expediente e Gui não dava as caras. Por todo o dia mal nos vimos, que dirá trocar umas palavras e agora estamos atrasados para a aula. Isso porque eu acreditava que ele não ia sem mim. Na semana passada, mesmo brigados, eu fui com ele para a aula. Não seria diferente agora, seria?

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Com um suspiro lamentoso, Iara tinha suas dúvidas:

– Já vai dar 19h, Mi, acho que ele não vai aparecer.

– Ele vai, ele não me deixaria aqui desse jeito.

– Se a gente sair agora, talvez você consiga chegar a tempo pro segundo horário.

– Ele vai aparecer.

Faltando 5 minutos para dar 19h, quando eu começava também a duvidar da promessa do Gui de não me deixar para trás e a pensar sobre as proporções que essa briga estava nos levando, ele aparece na cantina da empresa todo apressado. Nervoso pelo atraso, ele só aponta que já está de saída, passa por nós, eu e Iara na mesa atônitas, vai até o balcão de atendimento, compra um salgado rápido para viagem e como bala sai para o estacionamento, acenando para eu o seguir. Mal dou um tchau para Iara e o saio correndo junto para o carro.

Enquanto ele soca sua mochila no banco de trás, resmunga:

– Droga, a gente vai chegar já lá pro meio do segundo horário, aposto. O trânsito deve tá uma beleza.

Ajeitando meu material aos meus pés, fico na dúvida de responder. Primeiro porque ele já estava nervoso, segundo que estamos super atrasados e terceiro que ele não falava diretamente comigo faz dias, então isso podia ser apenas um pensamento alto. Ao se sentar em seu lugar e começar a manobrar o carro para sair, noto que ele está sem cinto e lembro que mais cedo o Murilo comentou sobre ter sido parado numa blitz após ter me deixado no trabalho. Abaixo um pouco o som no carro, que era o nosso silenciador de conversas, e chamo:

– Gui?

Só que ele, de teimoso que é, e ainda por cima comendo dentro do carro, aumenta o volume de volta do 12 Stones e me ignora. De birra e sem ter noção se ainda haveria uma blitz por ali, abaixo o volume de novo e torno a chamar, mais centrada:

– Hey, Gui...

Um pouco de boca cheia, ele me interrompe e replica:

– Olha, Lena, de todas as horas para conversar, essa não é uma delas. O meu dia tá uma merda, e não quero falar sobre isso.

– Eu só ia dizer que você tá sem cinto e o Murilo mencionou mais cedo que havia uma blitz por aqui, ok?

Nisso ele se atrapalha todo e, xingando baixinho, puxa o cinto, atento pelos retrovisores se tinha alguma blitz próxima ou não, só não presta atenção que sua esfirra desliza no processo e não dá tempo de alcançá-la. Ele falta urrar quando ela escapa por entre suas pernas e atinge o tapete do carro. Por fim só bate umas migalhas de sua calça, novamente xingando o mundo.

Apenas reviro os olhos e considero que talvez ele merecesse ser trollado desse jeito pelo universo. Não precisava ser rude comigo, oras! Evitando olhar para o lado dele, apenas aumento o som de volta e me volto para minha janela. Estava mais interessante observar o trânsito ao lado que o estresse do Gui.

Toda a disposição que antes tinha para conversar com ele, ou ao menos tentar um primeiro passo para nos reconciliarmos, se esvai nesse pouco tempo. Ele definitivamente não estava no humor, menos ainda no clima, o “silêncio” era o melhor, era o que diria para Iara mais tarde. Ela estava à espera de algo, por assim dizer, tem medo que Gui a deserde antes mesmo de ela poder se explicar. Eu não vejo assim, mas isso tá ficando mais que chato já. Vou dar só mais um espaço e ver como ficam as coisas antes de dar um tiro no meu amigo, é isso.

Suspiro ao pararmos numa fila enorme de carros na avenida.

Suspiro mais ainda quando o carro faz uma zoada estranha e simplesmente... morre.

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~;~

Não recomendo ter que parar o carro – mesmo que por problemas mecânicos – numa avenida em alto pique. Não recomendo também ficar cantarolando The Las Ketchup Song (o velho e original Asereje espanhol) em momentos de “silêncio”.

Explico melhor.

A avenida movimentada quase nos empurrou para fora dela. Gui conseguiu, depois de muitas buzinadas e uns xingamentos de volta, dar uma guinada no automóvel e manobrá-lo pra uma ruela ao lado. Sorte a nossa que estávamos na via ao lado da calçada e que o carro ao menos pegou para nos fazer sair dali. Eu não ajudei muito porque não havia muito que fazer senão xingar de volta aqueles motoristas cabreiros junto. Sua buzina não faz esse carro um helicóptero, eu dizia, coisas bestas que copiava do Murilo versão nervoso no trânsito.

Se o Gui estava aborrecido antes, depois dessa ele fica só mais um pouquinho possesso. Nada que ele se altere demais – apesar de que, enquanto colocávamos as sinaleiras, Gui tenha chutado com certa força o pneu. Logo ele abriu o capô e deu uma observada, como se pudesse identificar o problema. Eu, por outro lado, olhava pra aquelas coisas mecânicas e então para meu amigo e ficava alerta para algum momento que, sei lá, teria de puxá-lo dali se algo espocasse.

Felizmente ele saiu por si só, procurou algum número no seu celular e discou. Não demorou muito para que Gui noticiasse:

– Droga, meu mecânico não tá atendendo. Vou ter que procurar um no posto.

No posto de gasolina. Que ficava a umas 5 quadras dali.

Impaciente, Gui fechou o capô, colocou o celular no bolso, puxou a carteira, se certificou de alguma coisa lá e já foi se aprumando para sair dali. Tinha minhas dúvidas se ele seria capaz de me deixar ali.

– E eu?

– Você fica aqui.

Sem dúvidas mais.

– Aqui? Nessa rua escura?!

– Alguém tem que ficar vigiando o carro. E tem um poste bem ali.

– Ah tá, porque um poste me ajudaria muito se eu fosse assaltada. Ou coisa pior.
Tranca ele, oras. Eu não fico aqui sozinha mas neeeeem...

Revirando os olhos e mais impaciente, ele acena para que o acompanhasse após ativar a tranca do carro.

– Tá, tá, mas a gente vai ter que andar um pouco.

Diante das circunstâncias, eu não tinha muitas opções (ou objeções) mesmo.

Lá no posto de gasolina o frentista nos informou que tinha um mecânico que trabalhava ali perto sim, porém, não era garantia de que estivesse de pronto atendimento. Ele estava mudando o local de trabalho, por isso nem sempre tava por ali. Tínhamos que arriscar, e tínhamos mais umas três quadras pra andar.

E assim seguimos.

– Se você quiser, Lena, pode pegar um ônibus e ir pra aula.

Aula? Quem tava pensando em aula?

Merda, eu tinha um ensaio importante para entregar. E ele também. E o professor Sanches é terrível com essas coisas de prazo. Mas...

Andando e observando o movimento ambiente, ajeito minha bolsa ao braço, para que ficasse mais firme ao meu corpo, e respondo como quem quer nada, muito da tranquila.

– E eu lá sou de deixar soldado pra trás?

– Então para de cantar.

Cantar?

– Hum?

Ah sim, lembrete de matar a Roberta do R.H. por não ter deixado o celular no silencioso. Quando eu tava no banheiro e ela entrou, o ambiente foi tomado pelo ritmo Ragatanga. Literalmente. Aparentemente, era seu toque. E grudou na minha cabeça.

Trilha citada: Las Ketchup – Asereje

– Desde a hora que a gente saiu da empresa você fica ruminando uma música aí e isso tá me deixando louco.

Isso porque ele nem ouviu a música no original.

– Tá, parei.

Mentira, não parei. Era inconsciente, juro! Além do mais, essa “conversa” era a mais longa que tivemos nos últimos dias. Não queria que ele falasse entredentes e impaciente desse jeito, e eu podia mesmo tomar meu rumo se quisesse. Mas não queria. E não por birra. Não era dessas de largar alguém desse jeito na rua – a não ser que tivesse um bom motivo para isso. Então eu ficaria nessa até o fim, ele que me aguentasse com a Ragatanga.

A sorte nos permitiu achar o mecânico. Ele e outro mais se aprontaram com umas caixas de ferramentas e assim que um foi ligar o carro para nos dar carona até a ruela onde Gui havia deixado o seu, o outro cara virou pra mim e disse:

– Você tá cantando Ragatanga?

O que eu podia dizer? Era inevitável!

E inevitável foi o bufar do Gui no assento ao meu lado, no banco de trás.

Acanhada com a pergunta, respondi sem jeito, com aquele na na na na na na na na na na na na girando na minha cabeça. Poxa, Roberta!

– É uma longa história.

Não era, mas era o mais sensato pra me esquivar.

Já na ruela, os moços ficaram um bom tempo analisando o estrago. E enquanto faziam, cantarolavam a droga da música chiclete. Legal, eu tava montando um grupo já. Um deles disse que a filha cantava muito a versão brasileira quando teve seu sucesso. Seria cômico se não fosse trágico, porque o Gui tava ficando danado de agonia.

Qual era o problema dele?

Sem muita resposta da parte dos caras para as perguntas que Gui lançava, a não ser por falarem coisa com coisa que eu não sacava nada, dada hora ele se afastou, também avaliando o estrago acho, sem deixar de fitar o carro. Isso até me notar bem próximo dele. Inquieto, ele nem se deu ao trabalho de virar para mim.

– Você pode ligar para alguém te buscar se quiser. Isso aqui pode demorar.

– Não sou eu que tô cantando.

– Tô falando sério.

Eu também tava, uai. Masss...

– Por que tanto quer se livrar de mim?

– Não quero me livrar de você.

– Quer sim.

Impacientando-se mais, aí sim ele vira e acho que fica claro pra mim.

– Lena, eu... Droga, eu tive um dia péssimo, ok? Eu não preciso d...

– De mim. Ok.

– Não era isso que eu ia dizer. Eu não preciso é de mais coisas me torrando o cérebro.

– Agora estou torrando seu cérebro. Beleuza.

Me sinto muito melhor agora. Só que não.

Quando penso em procurar meu celular na bolsa para ligar para o Murilo, eis que...

– Eu tô tentando te proteg...

Levanto o olhar de pronto porque... Ê palavrinha ruim da peste!

– Eu tô tentando não fazer mais merda, tá? E sinto que posso fazer mais.

Já está.

– Isso se eu permanecer?

Ele engole alguma resposta e me dá a versão razoável, sinto.

– Acho melhor você ir.

Mas ainda não quero ir. Não desse jeito.

– Hum... Não.

– Não?

– Não.

Teimosa eu? Imagina.

– Desculpa interromper o casal, mas vamos ter que levar pra oficina. Nesse caso, rebocar.

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Coçando a cabeça que nem um maluco, Gui se volta para o mecânico pai-da-menina-que-cantava-ragatanga que se materializa próximo a nós e esquece um segundo da minha birra – sim, agora era birra.

– Merda! Tá tão ruim assim?

Por um momento me perguntei “a nossa imagem de casal ou o carro?”.

– Sinto muito, senhor, mas sim. Já falei com um parceiro nosso de uma oficina e já estão mandando o reboque vir.

A resposta de Gui foi um enorme bufar e um facepalm que lhe cobriu o rosto. Ali, mesmo mal iluminado, sussurrei umas desculpas aos caras pelo estresse do meu amigo e já o empurrava para o carro dos mecânicos.

A noite prometia demorar.

~;~

Na minha, sentada num banquinho da recepção da oficina, eu mandava um e-mail para Flávia e mais uma mensagem de texto de aviso que em anexo ia meu ensaio para ela imprimir na faculdade e entregar para o professor. Fico na reserva de perguntar ao Gui se ele teria salvo o seu trabalho na rede para repassar a alguém. Dava tempo acho.

– Dá pra parar com essa música idiota?

– Eu não tô cantando mais. Isso é seu cérebro torrando sozinho.

Jogado num assento próximo ao meu, Gui pareceu apertar a própria cabeça. Se ele não me dissesse o que acontecia, eu não poderia fazer nada. Já havia ligado para o Murilo, que me avisou que iria demorar um pouco para me buscar, assim de uma maneira ou de outra eu teria que esperar ali.

– Mandei meu ensaio por e-mail para a Flávia. Por que não manda também?

Chutando o ar e se afundando mais no assento – sério, ele tava todo esparramado – Gui xinga baixinho e aquela revolta vem acompanhando-o.

– Droga! Esqueci COMPLETAMENTE disso!

– Não tem nem uma cópia online?

– Não!

Depois dessa acho melhor deixá-lo com seus neurônios. Busco meus fones de ouvido na bolsa e permaneço quieta na minha, já que ele claramente não queria conversar e eu que não forçaria. Já havia forçado a minha presença, acho que era demais.

Dado um tempo, que ficamos observando o pouco movimento da oficina, que eu tamborilava e mexia os pés conforme as músicas aleatórias que meu fone tocava, ouvi uma voz baixa perto e notei que ele falava... comigo?

– Hum?

Num suspiro não muito calmo, mas frustrado dele, puxei o fone de uma orelha. Entre o ambiente quieto que estávamos e a Ana Johnson me transportando para o filme do Homem-Aranha 2 (sério, sempre que ouvia, podia ver a Mary Jane pirando na cena que tudo treme na lanchonete que ela tá com o Peter e aí são atacados pelo vilão), eu ouvi:

Trilha citada: Ana Johnsson – We Are

(cena em 2:44)

– Eu disse que foi aqui... aqui que eu... que eu briguei com o Sávio.

Isso explicava o comportamento de resistência dele ao ter descido do carro dos mecânicos e encarado a oficina. Um dos caras do local parece ter até o reconhecido, mas ninguém disse nada.

Mas o que Gui queria de verdade me contando isso?

Antes que pudesse dizer algo, ele continua, sem deixar de olhar para a parede da pequena recepção em que nos encontramos. Pelo tom, pelo jeito que se portava, ele parecia... além dali.

– Eu perdi o apartamento. De vez agora.

O quê?

– Também briguei com meu pai.

Wow, mano, vamos com calma aí.

– Te disse que tive uma droga de dia. Não estava brincando.

– Mas...

– Estou apenas cansado.

– Quer... conversar a respeito?

Sem se mexer da posição jogada dele, Gui só vira o rosto pra mim numa expressão que não consigo decifrar. Sua mandíbula parecia tensa, porém seus olhos, também cansados, me lançavam um fitar intenso.

O que devia estar passando em sua cabeça?

Intrigada, quero compreender mais, apesar de não querer forçar. A gente tem ficado tanto em silêncio esses dias que um silêncio confortável enfim seria um melhor que nada. Pelo menos do meu ponto de vista.

Não demora muito e Gui desvia, voltando-se de novo para a parede a nossa frente, enquanto lá na oficina, os caras ainda averiguavam o carro. Ele disse aos mecânicos que tinha sentido um funcionamento estranho desde sexta-feira passada, mas não imaginava que ficaria tenso desse jeito a ponto de parar o carro por completo. Acho que eu tava tão alheia hoje que nem notei nada errado no carro. A não ser quando ficou bem óbvio pra toda a avenida.

– Acho melhor não. Não quero pensar nisso mais do que já penso.

– Tudo bem. Mas quando quiser conversar...

Inclinando-me um pouco para alcançá-lo – havia só um assento vazio entre nós de um conjunto de três banquinhos – eu consigo capturar a mão de meu amigo e a aperto, a fim de dar meu apoio, mesmo ante nossas circunstâncias. Eu não esqueceria quem ele é só por um comportamento ruim. Seus bons créditos não sumiriam apenas por uma ou duas falhas.

Gui retribui o aperto, e fecha os olhos, no que parece ser um alívio pessoal. Um alívio que não dura muito, já que uma careta segue-se após um pedido de desculpa.

– Obrigado. E me desculpe. Ando sendo um estúpido, não?

Sim.

Masssss...

– Há mais coisas acontecendo do que eu possa imaginar, então não te julgo. Pelo menos não por isso.

– E pelo quê me julga?

É a minha vez de inspirar e inspirar fundo. Faço um carinho em sua mão que ainda agarra a minha, folgo meu aperto e a solto logo depois. Ajeito-me no banquinho, puxo de vez meus fones, guardo-os de volta na bolsa e sei que sou observada. Gui também se apronta no assento, de maneira que fique mais ereto e concentrado. Se tenho a atenção dele, quero saber aproveitá-la.

– Você sabe que é meu melhor amigo, não sabe?

– Sei.

Com mais um suspiro, começo:

– Ok, provavelmente mereço todas essas... todas as dúvidas e desconfianças que tive (ou tenho) por parte de meus amigos. Só que de você, Gui... Eu esperava um pouco mais, cara.

Isso o desnorteia momentaneamente. Não foi a melhor hora para tocar no assunto, mas já que havia iniciado, eu iria até o fim.

– Não me tenha por mal, mas esse seu comportamento de protetor não combina com você. Não que fosse pra combinar, digo, e só que...

Espio meu amigo ao lado e vejo que ele está com um vinco na testa e olhando para o chão. Ou para suas mãos, não sei dizer bem. Apesar de convicta, fico incerta sobre meus sentimentos a respeito disso.

– Fiz por merecer, eu sei. Magoei muito a todos, e por isso mesmo não vou aceitar isso e abaixar a cabeça. Não nadei também para ser puxada por essa corrente de novo. Você tá tomando para si o que eu mais odiava no Murilo. Um terrível protetor.

Virando-se de repente para mim, ele tenta começar:

– Lena, eu n...

– Desculpa, de verdade, se te fiz sentir que falhou comigo, também falhei e claro, vou pagar muito por isso ainda. Só que essa proteção... Essa proteção não, Gui. Já parou a graça.

Meneando a cabeça, ele passa a entender meu ponto.

– Não era para ser engraçado, Mi. Nem bonitinho. Eu só...

– Justamente. E isso tá piorando. Eu ignorei com o Murilo e olha onde foi parar. Eu te prezo muito, cara, pra deixar isso acontecer, entende? Não tá sendo fácil bater de frente, nem te dar esse chega-pra-lá, mas tô aqui, fazendo um esforço, porque acho necessário.

Ok, nessa hora confesso que me encolhi um pouco e foi mais por receio de sua resposta do que outra coisa. E tão logo esclareci meu ponto, Gui mostra-se agitado.

– O que quer que eu faça então? Ignore meus instintos? Falhe de novo? Não esteja por você?

Suspiro e continuo na minha, branda em minha abordagem.

– Você não falhou, Gui. Não por exato. E esse comportamento desenfreado não é estar por mim, Iara, ou por quem quer que seja. É estar por você para não se sentir mal. Cara, vai por mim, isso não é bom.

Ele toma uns cinco, seis segundos para si, desviando seu olhar de mim e, na verdade, perde um pouco do foco. Acho que fica a ponderar consigo em silêncio. Até que...

– Eu... não sei o que dizer.

– Seja meu amigo, apenas isso. Quem me apoia. Que nos apoia.

– E deixo de cuidar?

– Não. Cuida; só não se estraga no processo. Eu não quero que briguemos. Pelo menos não mais e não por isso.

Mais uma vez ele fica quieto, porém, um pouco envergonhado, sinto, sem me olhar diretamente. Eu, contudo, o observava, esperançosa de que algo lhe desse o clic necessário.

– Sem mais muriladas?

Ele não responde. Até porque um mecânico da equipe da oficina aparece e procura algo na mesa dali da recepção e logo mais entra e sai do escritório. Antes que pudéssemos voltar a acrescentar algo, o cara que nos atendia retorna e chama o Gui para explicar a situação do carro.

Não demora muito e recebo uma mensagem do Murilo avisando que estava próximo e que era para eu aparecer na porta da oficina. Mais tranquila pelo pequeno desabafo que fiz e pelo pequeno “passo” que dei com Gui essa noite, ajeito minha bolsa, pego meu material e ponho-me de pé. Assim que atravesso a oficina para a portaria, que aceno para o Gui para avisar que já ia embora, assisto ele dizer algo ao mecânico que o atendia, e vir ao meu encontro.

Sem jeito, Aguinaldo coça um pouco seu pescoço e me olha de rabo de olho, sem conseguir me encarar novamente. Algo nele havia mudado em poucos minutos, pois, à minha frente, ele se apresenta esse... ansioso? Havia um toque de seriedade nele, no entanto.

– Obrigado por ter ficado comigo, mesmo com isso do carro.

– Tudo bem.

– E... só pra constar, eu pedi desculpas. Sobre meu comportamento.

Eu podia ter dito nada, eu podia ter... confirmado, mas o que tive de ímpeto e liberei, também séria, foi:

– O Murilo também pedia e não resolvia nada. Na verdade... As desculpas me machucavam.

Acho que nunca revelei isso tão alto e claro, nem pra mim mesma. Normalmente eu ficava tão tão tão chateada com o Murilo que o mal de suas desculpas só jogavam mais areia pra minha raiva. Mas para Gui, isso sim se revela um golpe de surpresa, pois vejo como se de repente tivesse batido nele ou algo do tipo, pois de pronto ele se trinca todo e parece ter perdido um pouco de ar. Ele abaixa a cabeça e, mais uma vez envergonhado, torcendo uma mão na outra, questiona:

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– Eu... Tô te machucando?

Avisto o carro do Murilo encostando na calçada a alguns metros dali e ouço sua buzina. Aguinaldo segue meu olhar e entende que tenho que ir, mas ele quer sua resposta. Tanto quer que ele me segura o braço, sem força, claro, discreto, e dessa vez me olha, para que eu enfim dissesse algo. Inevitavelmente isso me enche um pouco os olhos, pela lembrança triste que implicava todas as proteções de meu irmão e pelo lembrete que eu mantinha de me deixar alerta sobre essa história se repetir, de Gui virar o extremo protetor que um dia Murilo foi.

– Mi?

Minha semente estava plantada, agora precisava ser regada. Isso não era uma reconciliação, era uma pré-conversa para que lhe desse o que pensar. E meu amigo já começava a refletir sobre seus atos. Era uma realidade que mais cedo ou mais tarde iria bater sua porta.

Engulo a seco e tomo coragem de fitá-lo nos olhos também.

– De certa forma... sim. Com o Murilo foram milhares de desculpas e perdões até... A-até eu não aguentar mais. Eu não quero te perder nisso, Gui, juro... juro que n-não quero.

De imediato ele me solta e sinto que sua mão me alcança o rosto, ele ampara minhas emoções, mostrando-se um pouco forte e determinado. Eu quem era a cética e a medrosa da vez, coberta por esse sentimento de perda inevitável.

– Você não vai me perder.

– Se você continuar com isso, posso ver que sim.

Então ele me dá um beijo na testa. Era como uma silenciosa promessa de “eu vou tentar”, a qual eu assinto. Já me sinto melhor por ter aberto o jogo.

– Vou te deixar pensar sobre isso, ok? Me avise quando estiver pronto para conversar.

Com um aceno de sua confirmação, volto a caminhar até a portaria. Quando estou a uns três passos de abrir a porta do carro de Murilo, eis que ouço Aguinaldo me chamar e ele soa um pouco exasperado por isso.

– Lena, espera!

Num segundo ele está de volta a um passo de distância de mim. Ali do lado de fora havia o movimento da rua, dos pontos comerciais da área, mas tê-lo tão próximo me fez sentir estar numa bolha de novo com ele. E nela, uma expectativa tremenda veio.

– Mi...

– Oi?

– Isso realmente te machuca? Minhas desculpas? Seja sincera.

Não nego, aquilo mexia com tanta mágoa antiga minha. Contudo, havia uma voz dentro de mim que pulava quando esses obstáculos se levantavam de novo, uma voz que dizia que eu seria melhor e precisava ser essa pessoa íntegra. A verdade podia machucar, mas a mentira... ela poderia rasgar. Não importava mais se iria doer, era preciso botar essa resposta para fora e assim eu faço.

– Me machuca ter que desculpar sempre e por coisas que sei que vai fazer de novo.

– Eu nunca quis te machucar. Mas eu machuquei. Prometo que vou dar um jeito nisso, prometo, Lena.

– Tudo b...

– Não, não tudo bem. Isso não tá bem. Eu não me sinto bem. E eu quero mudar isso. Mereci esse chega-pra-lá.

Murilo buzina de novo.

– Tenho que ir, Gui. Sinto muito pelo apê e por seu pai.

No seu sorrisinho sem muito o que dizer, ele entende que eu sentia muito mesmo. Quando dessa vez ele responde “obrigado”, vejo em seus olhos que não era pelo apartamento ou por seu pai. Era por tudo.

Em mim, aquela sementinha começava a brilhar por esperança. E o que vejo nele, enquanto novamente me despeço e sigo caminho com meu irmão, a sementinha brilhava por um pouco de confiança.

Mas eu ainda iria matar a Roberta por aquela droga de música que não me saía do pensamento!