Não sei o que é pior, se quando você briga com alguém sabendo mal por que está brigando ou quando você percebe que poderia ter fuçado mais sobre isso e de repente se frustra consigo mesma por apenas ter abandonado o barco.

Bom, eu abandonei Murilo naquele estacionamento.

Ciente da então verdade e das razões que explicavam bem aquele surto dele, meu eu me beliscava para resolver logo aquela história. Já havia dito que estava disposta a consertar as coisas, assim não adiantaria nada eu ficar só de palavras, era hora de agir.

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Chego em casa, abro a porta da sala. Existe um Murilo abatido no sofá, jogado ao encosto e a cabeça pendurada ao topo do móvel. Sei que me nota e ainda assim não se mexe, não fala, só franze a testa. Testa essa que me chama e vou lá, me compadecendo com um suspiro, para dar uma amainada. Ah, Murilo, que criatura difícil você me inventa de ser...

Passo a mão por seu rosto como se tivesse retirando todas as nuvens negras e carregadas que fechavam o tempo para meu maninho – o fato de ele trabalhar em um centro meteorológico me permitia fazer dessa referência mais que uma piada, mais que uma metáfora. Só... seria cômico se não fosse trágico. Tão trágico.

Abaixo-me e deixo um beijo à testa dele, que só suspira, profundamente, cansado. Mantenho um carinho ali, que, de fato, era do que ele precisava. Branda, começo:

– Eu devia parar de detonar sua cabeça.

Murilo abre os olhos devagar, porém, não me encara. Apenas fita parte da sala a sua frente, sem, novamente, se mexer. Soa muito pesaroso, acabado.

– Me desculpe. Por aquilo no caixa e no estacionamento, eu dei uma exagerada.

– É, você deu mesmo. Mas entendi, conversei com a Aline. Ela tava bem preocupada.

Foi com ela que me encontrei após sair da casa de Daniela.

Nesse momento ele pareceu despertar da letargia, voltou seu olhar direto para mim e se mexeu, a ponto de elevar seu braço e me procurar às suas costas. Quando achou meu cotovelo, correu a mão pelo meu braço até achar a minha e me puxar, arrodeando o móvel e trazer-me para si. Me fez sentar ao seu lado, acanhada. Uma seriedade retomava e fechava sua fronte.

– Te contou sobre o que teve lá no departamento?

Pelo que Aline relatou, agora que o ex dela descobriu que ela estava num relacionamento sério com Murilo, isso depois de muitas insinuações para com ela. Coisas que preferiu não contar a meu irmão por motivos óbvios, eu acabando com o cérebro dele. Me partia o coração arruiná-lo daquele jeito, mas uma vez feito, eu tinha era que trabalhar para melhorar as coisas, afinal, ele tem seus próprios problemas, suas próprias batalhas.

Só que fofoca é daquelas coisas que é quase impossível de ignorar, seja qual for o ambiente que se esteja. E Murilo ouviu umas colegas de trabalho de Aline comentar sobre isso, sobre o cafa que estava rondando-a novamente e ninguém ali sabia se o que eles tinham, Murilo e Aline, era sério. Aline era discreta demais para sair espalhando, enquanto que Murilo, por incrível que pareça, também não dava muito na cara sobre isso. Eram poucas pessoas, como o Armando, que sabiam qual era do rolo deles. Rolo não, relacionamento mesmo.

Mas para quem já tinha muito na cabeça, isso foi mais uma bomba para estragar meu irmão. Dessa vez ele a confrontou, foi tirar a limpo a história lá do cafa, eles brigaram feio, foi cada um para um lado, não estavam se falando, e Aline soube de uma por Armando, que tinha dado um problema operacional lá no departamento e Murilo quase fez cabeças rodarem naquele setor. Ela estava com medo sobre o que mais ele poderia fazer.

Porque Murilo não tava bem.

Eu? Também estava preocupada, claro. E não só pelo estado dele, Murilo poderia ser o próximo a ser dispensado, perder o trabalho que a tanto se dedicou, por pura besteira. No ano passado mesmo foi suspenso, vai saber o que mais uma poderia lhe acontecer, ele não teria a mesma sorte. Foi por isso que Aline me ligou.

– Sim. Se já não bastasse eu, agora tem a Aline pra te detonar também.

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– Não fala desse jeito, eu não gosto.

– E não é a verdade?

Dessa vez ele admite. Mais que isso na realidade, para meu contento.

– A verdade é que eu não aguento ficar sem vocês... Eu piro.

Rio minimamente, brincando com os dedos dele que ainda não me soltaram. Ele tinha dado uma bela surtada essa tarde.

– É, eu vi...

Só que ele me faz parar de brincar, me pausa, me segura com uma leve força, daquela que chama a atenção. Assim volto-me para essa figura, que estava se rendendo talvez. Ou somente desnorteando mais uma vez. Estava tão perdido em si meu maninho, que me deu um nó, só que um nó de preocupação.

– Tô falando sério. Quando vi aquele infeliz tocando a Aline e ela de boa com isso, pensei qu... Que iria acabar. E tantas foram as vezes que já pensei que iria te perder, que eu ficava maluco, e tem essa da Denise... Não tem ódio mais que caiba em mim, Lena.

Ele se levanta num pulo, numa brusquidão.

E eu... estanco. Estanco por um segundo e outro medo me toma.

Meu mano não merecia aquilo lhe corroendo.

– Não diga mais uma coisa dessas, ok? Ódio só estraga. Não quero isso pra você.

Perambulando pela sala, ele desabafa:

– Poucas foram as vezes que já quis trucidar alguém na vida. E Denise... o que ela fez... com você, comigo, com todos... o modo... como me enganou... Acho que nunca poderia sentir tanto ódio quanto agora. É como se eu não tivesse o mínimo controle sobre o que fazer.

Ele estava se deixando dominar por aquilo, os olhos, opacos. Chamo sua atenção e ele só passa despercebido por mim. Tive que praticamente gritar para ter sua atenção voltada para mim.

– Mu, olha pra mim. MU!

– O quê?

– Apenas não, ok? Não permita que isso domine você. Se é pra sentir raiva, sinta e extravase. Só não guarde ódio, por quem quer que seja. Ele machuca, muito. E você, maninho, é muito bom para ter essa mancha ao coração.

– Mas você...

– Eu errei, Murilo! E olha onde isso me levou! O ódio não é a resposta. As pessoas dizem que ódio é um sentimento contrário ao amor, mas não é verdade. Ódio é muito mais próximo do que se pensa. É um amor machucado, enganado, traído, ele mantém sua ligação. E o que a gente precisa é se desprender disso. Lembra-se de nossas brigas? Nossas milhaaaaares de brigas?

– O que tem elas?

– Quando era que você tinha mais pavor, quando eu gritava de volta ou quando eu me mantinha calada?

Ele fica suspeito de onde quero chegar.

– Quando se mantinha calada.

– E por quê?

Cabisbaixo, ele sussurra:

– Porque... assim eu te perdia.

– Isso. Quer dizer que eu estava me desprendendo, coisa que você não queria. A indiferença é que é contrária ao amor. Hoje eu me arrependo e muito de ter usado isso, de uma maneira que você não merecia.

Ainda assim, ele se alucina mais um pouco, bate a mão ao peito e tudo:

– Mas isso não muda o fato... de como EU me sinto! De como EU quero estraçalhar essa garota e VOCÊ ainda quer me impedir!

– QUEM disse que eu quero impedir? Que ela se ferre e se ferre bonito! Só não quero que você se envolva demais a ponto de fazer uma loucura.

A vermelhidão do nervoso toma meu irmão, que retorna ao tópico de nossa última discussão com uma calma que não significa exatamente calma.

– Falar com nossos pais seria uma loucura TÃO grande assim?

Eu, por outro lado, tento amainar as coisas novamente. Já chega, chega de tanta confusão e de a gente se machucar de graça. Tomo um fôlego e expiro devagar, procuro não me exaltar e, mais tranquila, vou com uma abordagem mais branda, para que visse melhor qual era meu motivo sobre ser avessa ao “pedido” dele. Olhando bem nos seus olhos e demonstrando todo um carinho com a suavidade de minha voz, acho que obtive atenção suficiente.

– Seria. Privá-los disso não pelo simples esconder, é por consideração demais a eles. Acho que não há necessidade de pânico generalizado, é isso. Se fosse pra contar, no máximo papai, e vovô olhe lá. Talvez isso explicasse a eles muita coisa que aconteceu com a gente nesses últimos anos.

Murilo, no entanto, permanece com uma respiração agitada, mexe um pouco nos seus cabelos e fica incerto numa primeira instância. Ora franze a testa, ora parece se perder no que pensa, isso sem falar de ele remexer a boca e trincar o rosto, o que não sei bem dizer se era por se sentir desgostoso quanto ao assunto ou por se achar que estava exagerando em sua reação, sem saber como se portar por ver que minha atitude era de reconciliação e não de tempestade como foram nas últimas horas.

Ou tudo ao mesmo tempo, era possível.

No fim de uns segundos, acho que ele compreende minha postura, Murilo se rende. Expira alto até, cansado, muito cansado. Imagino que fosse mais por exaustão do que outra coisa, afinal, ele realmente odeia quando nos encontramos nessa situação. Ele realmente pira e reage com brutalidade quando não consegue que as coisas reencontrem seu rumo. Por mais que ele estivesse tendo seus progressos, agora não era um exato momento de cobrar sanidade dele, mas sim de ajudá-lo a recobrá-la. Até porque o extremo da situação só o deixou nessa impotência, esse sentimento que muitas vezes o ataca. E não deixava de acometer novamente.

Parado atrás do sofá, Murilo tenta achar as palavras.

– Eu só... não sei mais o que fazer, como fazer.

– Mu...

Ele caminha de volta para onde estava sentado e se joga ao meu lado, o peito subindo e descendo rápido e mais suspiros de impotência saindo dele. Refaço um carinho nele, ao rosto e aos cabelos, que por uns minutos ele só aceita, e se mantém calado. Era um silêncio para ambos pensarmos e procurar uma maneira de enfrentar aquilo sem grandes alardes e sem acabar conosco.

Estava distraída quanto a isso quando ele retoma minha mão e a leva ao seu coração, órgão este que batia ainda forte e ritmado, procurando se assentar. Murilo então se força a se acalmar e lidar com aquilo. Aquilo de segunda-feira quando fugi e de ademais coisas que apareceram em seguida.

Trilha indicada: Nickelback - I’d Come For You

– Eu realmente achei que ia te perder... Entrei em pânico. Tenho ESTADO em pânico... e só foi aparecendo coisa e mais coisa até acumular aqui.

Com um sorrisinho sem graça, apertei sua mão de volta.

– Não devia ser assim.

– É assim que me sinto, maninha. Esgotado. Sem saber pra onde olhar, o que devo fazer. E aí tenho essas reações exageradas. Já estive num mundo de cabeça pra baixo, eu não quero voltar. É, infelizmente, minha primeira defesa.

Pisco rapidamente pela súbita lembrança e pontada interior que se dá por ter mencionado esse “mundo de cabeça para baixo”, uma referência ao que foi nosso afastamento brusco no ano passado por aquela história toda mal contada. Mal contada por ele e por mim.

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– Entendo. Quer dizer, entendo de verdade. A gente tá exigindo mais do que você está preparado, se estava tão acostumado a bater de frente.

– Aline também te disse...?

– Que vocês já tinham brigado por ela concordar comigo na questão de falar com nossos pais? Sim. Foi o começo do furacão, ela diz.

Novamente cabisbaixo, ele balança a cabeça.

– Por que eu sempre pareço o errado?

Seria uma pergunta retórica ou para si?

– Você não tá errado. Isso não é errado, mano. Foi só um pedido. Eu quero melhorar isso tanto quanto você, acredite. Então se é do apoio que você precisa pra se manter melhor são, eu... permito.

Ele parece não acreditar.

– Mas... e a... hã... a parede de... vidro?

– Estou quebrando eu mesma. Só que só peço, e unicamente PEÇO, que seja apenas com nosso pai e talvez vovô. Outra pessoa mais... eu não aguento.

– Mi...

Não era das melhores sensações saber que logo aquilo iria se espalhar mais. Doía em mim ainda remoer aqueles dias, imagina ter de contar para outras pessoas. Pessoas com quem temos uma relação sagrada, pessoas como meu pai, que ainda me via como sua menininha. Ele era forte, talvez mais que mamãe, mas ainda assim, eu não queria. Realmente não queria.

Eram trilhões vezes quadrilhões de vezes pior que contar que eu tinha feito algo a meu irmão, que era uma dessas coisas que fazia meu pai me olhar de cara feia. Se meu mano odiava brigar sério comigo assim, papai ficava muito mais inquieto. Era menos alucinado, claro, mas altamente cuidadoso comigo. A distância pode ter diminuído esse seu lado, mas, por óbvio, permanece lá.

No Natal mesmo ele quis dar um jeito de nos apaziguar só por ter sentido nossa vibe. Não sei se os dois chegaram a conversar algo, se Murilo deixou algo escapar, papai chega a ser mais discreto. Meu mano fez foi puxar meu avô, e esse era outro que eu não conseguiria fitar sem ter os olhos brilhando. As três gerações de homens da minha família se rebolaram e se rebolam até hoje pra cuidar de mim. Imagino que choque deve bater quando descobrirem que em todos esses esforços não puderam impedir – e de certa forma até impulsionaram – o que aconteceu com Denise.

Inspiro e me levanto, deixando Murilo para trás. Ele, no entanto, não permite que eu vá longe, me puxa de novo, me faz cair sentada ao local que estava antes e me puxa novamente, dessa vez para si, me abraça e sinto que seu instinto protetor ainda é muito forte. É quase uma necessidade.

Sei que não devia alimentar esse seu “vício”, porém, diante das circunstâncias, não o impeço. De certa forma, gosto quando estamos assim, por nos reconfortar. Não é todo mundo que tem essa ligação como temos, é difícil de achar, muito mais de manter. Ficamos mais uns minutos assim, eu deitada ao seu ombro, ele também calado, até que, sem mesmo quebrar esse momento, ele toma o primeiro passo:

– Quando tudo vai ficar bem?

– Espero que logo. Eu não aguento mais nada disso.

Ele beija o topo de minha cabeça, mais seguro.

– Quero que passe essa onda ruim. Não suporto essas coisas.

Acompanhando um pouco mais de sua respiração, dessa vez mais calma e ritmada, sinto que é essa a minha chance. De bater a real para que não fique dependente das entrelinhas e que isso possa gerar mais desconforto e preocupação a meu mano. Quero que fiquemos às claras. Assim tomo coragem mais uma vez, só não o bastante de comunicar-lhe olho no olho.

– Tenho muito para te contar, você sabe. Mas não consigo pronunciá-las se a qualquer hora você pode surtar ou querer colocar na próxima edição do jornal, e não discutirmos assim, como duas pessoas maduras, sobre essas coisas. Tenho muito na cabeça do que guardei e espero, de verdade, poder extraí-las de mim, Mu. Vou te contar aos poucos, confie. Dessa vez confie.

Aperto-o mais contra mim e quis que esse seu senso protetor agisse do modo certo ao tempo que era necessário. Agora era necessário.

Continuo:

– Mas também preciso de provas de que não vai fazer nada de cabeça quente, precipitado. Pode me repreender, pode até me xingar, eu só preciso saber... quando estará pronto para isso. Eu te espero. Só não faça nada imprudente de novo, ok?

Sinto sua tensão e como titubeia antes de me responder. Ele lutava contra a fera que tinha dentro de si, como se a civilizasse e a acalmasse. Quando assente e me dá um beijo, dessa vez à testa com um “ok”, quero acabar de vez com esse clima ruim. Parto então para outra abordagem.

Me desvencilho dele e dou as novas coordenadas. Só que ele me olha e sorri, um sorriso um tanto grato e bobo, e quero saber se é por essa minha atitude.

– Agora vai ligar pra Aline que essa cara de cachorro chutado já deu. Vai pedir desculpas e vai fazer um discurso lindo. Anda. Quê... que foi?

– Acho que não tive tanto orgulho de ti quanto agora.

Finjo que isso não me encheu o peito e sorrio acanhada de volta. Mais aliviada, levanto e ando para a cozinha enquanto vou declarando – ou melhor, tirando o meu da reta:

– Já tô vendo o que vai ser na minha formatura. Quando começar a arrumação, tô nem aí, tu e papai que vão se resolver pra definir quem vai ser meu padrinho. Façam suas apostas, tirem na moeda, que seja.

– Poxa! Ele já foi teu padrinho na formatura do ensino médio.

– Pai é pai, tu devia deixar isso pra ele. Se quer tanto privilégio assim, que se arranje com a Aline e tenham uma filha, pronto.

Quando me volto para a bancada da cozinha, já com um copo de água na mão, meu mano tava lá, escorado na parede, sorrindo o sorriso mais besta e lindo de todos, como se nada daquilo de minutos atrás fosse importante mais, ainda que percebesse um pouco de seus traços rijos ao se encontrar de braços cruzados.

– E se for menino?

– Sei lá, até lá a gente resolve...

Bobo que é, se faz de inteligente:

– Acho que você aprendeu no final das contas a ser séria quando deve e ser palhaça quando pode.

– E acho que você ainda não sacou que comigo não se brinca.

– Devo gostar de me arriscar, é isso.

– É, tô vendo.

~;~

– Como assim ninguém me chama?

– Mal saio dos ciúmes do Murilo e topo com os seus, Flávia? Qualé!

Ela tava ralhando comigo por não ter a chamado para passar a tarde na casa de Dani. Sendo que ambas sabíamos que ela não podia, havia prometido para a mãe que a ajudaria numa arrumação lá das tias dela. É só você entrar de férias que todo mundo acha que pode te explorar, porque você “está de bobeira”.

– Eu tenho plenos direitos de melhor amiga!

Flávia me veria revirando os olhos se não estivéssemos falando ao celular – uma benção de bônus havia caído na minha conta por causa do meu plano interurbano.

– Tá, bonitinha, queria que eu te ligasse só para tu me responder “não, Lena, não vou poder ir”, era?

– Era!

A safada ainda ri da minha cara.

Logo eu, que separei uma coisa tão especial para ela...

– Olha, eu ia te fazer uma surpresa, mas já que você tá tão revoltada e ciumenta, vamos deixar par...

– Nananinanão, ajoelhou, agora reza a missa inteira. Que história é essa?

Ah, agora ela tá interessada? Me divirto com sua curiosidade e teimosia. Ah, e claro, chantagem emocional. Por que todo mundo de repente tava dando uma “murilada” comigo hoje? Combinaram, foi?

– Bom, já que minha melhor amiga quer tanto chamar atenção... tenho um job para ela.

Job? Eu aqui tentando arrancar uns chocolates de ti e eu ganho job? Isso é exploração.

– Calma, bonitinha, ainda nem cheguei na proposta. Sabe aquele casamento que tenho para ir?

– Mais ou menos. É de quem mesmo?

– Lembra que comentei daquele enfermeiro boniiiiiiito que vivia pelo hospital quando Vinícius tava internado?

Nisso, adivinha quem passa na porta do meu quarto e ouve esse EXATO trecho da conversa? E resmunga?

– Eu ouvi isso e vou contar.

Murilo assobia e eu tenho meu facepalm. Flávia chega a ouvir esse comentário de meu irmão, pois retruca:

– Já estão assim, é? Acabaram finalmente os rounds?

– Acabar ainda não acabaram, nem sei quando chegará esse dia que não haverão mais rounds, mas sim, a gente se resolveu.

– Até que enfim, viu. Embora todos saibamos que tu é uma encrenqueira e rounds mesmo nunca acabam.

Ok, tiraram o dia para me sacanear ou o quê?

– Tá, para de graça que eu quero contar. O casamento é desse enfermeiro com uma médica, eles são conhecidos da suposta ex do Vini, a Becca. Eu meio que apoiei o Diogo, o enfermeiro, numas paradas relacionadas a esse casamento, e aí ele me convidou. Quer dizer, a mim e ao Murilo. Meu mano o conheceu também no hospital.

– Ah, tá, sei da história agora. Tu nem pra me mandar uma foto desse cara, ver quão gato é.

– Ele tá casando, Flávia.

– Olhar não tira pedaço e eu não sou cega.

Porque ela pode, né? Deixa o Gui tentar se arrumar com esse argumento para ele ver o que acontece.

– Ok, senhorita tô-louca-por-esse-enfermeiro-que-nem-conheço, a proposta é para comprar vestido comigo. Na verdade, a Aline vai também, afinal, é o par do meu irmão.

– Você bem que poderia dispensar o Vini e me levar, né?

– Vamos apenas dizer que você pensou alto demais, que eu ouvi e vou fazer que nem o Murilo, vou contar pro Vini que você quer se aproveitar da senha dele.

– Tem problema não, posso dizer na cara dura.

Oi? Da onde saiu tamanho atrevimento, Senhor? O que deram para essa menina beber hoje? Minha melhor amiga sob o efeito de montanha russa emocional pode ser meio maluca – e raivosa ou muito chorona – mas tem dia que me surpreende. Só não invente de deixá-la no limite, ela pode ser bem casqueira. Flávia é calminha e tal, até ela descobrir se você levou ou não chocolate. Leve. Sempre. Pra garantir.

– Tô brincando, Lena! Qual o job?

– Hum, sei. Nos ajudar a escolher os vestidos, claro.

– É, isso pode te salvar de te deserdar.

Ela fala do Gui, mas faz que nem ele. Que amigos eu fui inventar de arranjar.

– Mas também quero chocolates.

– Eu só compro pra ti, porque né, se eu não compro, quem sofre sou eu depois.

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– Lena! Se compadeça de minha situação. Senão eu arrumo outra melhor amiga.

Tiro o celular do ouvido e coloco no viva-voz para poder mexer melhor no notebook que apoio na almofada às minhas pernas. Checava umas redes sociais e consultava meu e-mail. Isso se a internet colaborasse um pouquinho, tinha meu sono começando a apontar.

– Como se você pudesse arranjar outra que te aguentasse com esse drama todo.

– A suja falando da mal lavada.

– Hey, eu não nego minha arte dramática. Mas falando em drama, agora é sério... tenho uma coisa para te perguntar.

– O que?

– Espera, vou fechar a porta.

Levanto-me com calma e a passos silenciosos verifico se meu mano tá na área. Ele conseguiu falar com a Aline depois daquela nossa conversa, daria uma saída rápida para vê-la. Tinha caprichado, viu. O rastro de perfume dele ficou pelo corredor todo. Como se perfume pudesse fazer as ideias da Aline dançar e os dois se reconciliarem. Era preciso mais que isso... Mas se tratando de meu irmão e aquela carinha dele, se ela não é vacinada, é possível cair. Ainda mais se esse tapado tá sendo verdadeiro e... ok, ele merece um voto de confiança, mesmo fazendo de suas burradas.

Ele tá aprendendo, poxa. Até eu tô dando crédito para ele!

De qualquer forma, fechei a porta do meu quarto, para garantir que Murilo não pudesse ouvir o que eu viria a tomar como tópico na conversa com Flávia. Muito embora o assunto não competir em nada com ele, não queria colocá-lo em uma má situação, por ser muito amigo do Vinícius e... Que seja, bastava eu nessa situação estranha.

– Teve uma hora que a Dani me puxou para um canto e me perguntou... sobre o Sávio. Se eu tinha notado algo de diferente ou estranho com ele esses dias.

– E você notou?

Deitada de volta na minha cama, me cubro com o lençol e quero brigar com o universo por ter deixado esses dias tão nublados que impediram alguns pijamas meus de secarem. Me restou apenas os pijamas curtos, que não me esquentavam por completo nessa noite fria de chuviscos. Ao que parecia, a temporada de chuvas só se pronunciava.

Se não bastasse a falta que sentia de meu Vini, por não tê-lo visto nos últimos dois dias, tinha essa questão de Sávio maquinando na cabeça. Era uma forma infeliz de me distrair de todos os problemas que ainda me competiam. Problema era o que não me faltava, mas lá estava eu, me refugiando em algo que continuava como uma grande interrogação.

Suspiro profundamente e sei que Flávia tanto ouve essa reação voluntária quanto espera por uma resposta minha.

– Notar, notei, acho. Só que o Sávio... ele tem se fechado tanto agora. Faz parte de meus limites, ok, só que... tem certamente algo. Ele mesmo já me afirmou isso.

– Como a Dani sacou?

– Eles se encontraram na terça por acaso. Acho que não é só comigo que ele fica de meias palavras.

– Não é mesmo. Apesar de ele ter me ajudado muito e muitas dessas vezes se resumirem a fugas, tem coisas que ele fala, tipo, super desconexas, que, nem sei... não o entendo. E como ele se presta a esse papel, sabe? Ao mesmo tempo em que ele parece muito certo, tem algo muito errado com ele.

Disse o próprio certa vez que não era nenhum santo, que “gentileza era outra coisa”. Enquanto ele nos respeitava em muitas coisas, noutras, pode-se dizer que ele pecava. Por maioria, não se deixava abrir; agora deu para falar coisas sem sentido. Suas explicações estavam ficando piores que seus “atos”. Ele me confundia!

Como se tivesse uma peça-chave que poderia solucionar fácil o caso.

Mas como ter acesso a ela se eu mesma não permitia acesso a mim?

Pensava em realmente dar uma nova chance, só para ver no que daria, ou ao menos entender o que é esse mistério todo que o envolve. Esse seu acanhamento por todo o deixa com péssima imagem, pois parece que não confia em ninguém o suficiente.

De alguma forma, porém, eu queria acreditar nele. Não admito fácil, mas sentia sua falta. Como Aguinaldo ou mesmo Bruno, Sávio havia se tornado um grande amigo, daqueles que não precisava falar muita coisa, só estar lá por você. E mesmo com nossas intrigas, Sávio sempre esteve “lá” por mim.

Agora não sei se foi uma coisa boa eu ter me afastado demais dele. Em tempos difíceis ele se provou, mas me deixava nessas dúvidas. Não iria lidar com aquilo por hora, mas... sabe? Fica aquela coisa na cabeça, que vira e mexe, acabo voltando a isso.

Bom, entre ficar pensando em Denise e Sávio, eu prefiro mil vezes Sávio.

– Desse jeito mesmo. Aquela história toda do beijo, da viagem, eu evito pensar, mas uma hora vou ter que lidar com ele. E não sei se quero. Com tudo estourando de uma vez, não me surpreenderia se isso também ficasse exposto. Mas aí penso no Vinícius e em como... vai magoá-lo.

– Você não tinha contado sobre a viagem?

– Contar, contei, só não disse quem foi. Era essa a minha questão pra você.

– Como assim?

– Era só pra ter certeza, se... Quando você falou aquelas coisas todas para o Vini, sobre a história de Denise e tal... Você não falou ou rondou nada sobre o Sávio não, né?

Quase posso ouvi-la dando um pulo. O que de certa forma era um alívio.

– Nãaaao, claro que não. Primeiro que não competia ao momento e segundo que não competia a mim para contar. Isso é com vocês. Por quê? Ele mencionou ou deu a entender algo?

– Não. Eu só... acho que só tenho muito guardado mesmo. Vini faria alguma besteira se soubesse... que foi Sávio. Quer dizer, ele tem lá suas suspeitas. Imagina o que seria confirmá-las. Já tem tanto acontecendo, Flá. Você tira pelo meu irmão.

– Ninguém mandou sair escondendo essa bomba de neve, dona Milena.

Porque “bola de neve” era pouco para o que se acumulava em minha cabeça.

– Eu sei, eu sei, acredite. Eu sei! Só que não consigo evitar. Já chega de dormir e acordar com os nervos aos frangalhos. Tem hora que me sinto fraca e nem sei mais se é do emocional, do corpo ou da alma. É apenas... muito.

– Você precisa se cuidar, é isso. E dos outros também. E de mim, claro.

Rio e reviro os olhos pelo estado mimoso de Flávia. Estava numa época difícil também, não tão complicada como a minha, mas a la difícil aos seus padrões, entendo como e por quê assim se sente. Ela tem seus direitos – assim como a vaca desgraceira da mãe do Gui tinha o dever de largar do pé dos dois.

Só que não deixo de aporrinhá-la, claro. Quem seria eu se não fizesse isso com as pessoas que gosto?

– Já disse que você tá parecendo o Murilo hoje? Sua boba, claro que cuido de ti. Eu realmente não sei o que faria se não fosse por você.

Eu me declaro e o que ela faz? Reclama comigo, “meiga” como se encontra.

– Poxa, Mi, para de me fazer chorar, cara! Se já não me bastam as cólicas, a vontade compulsiva por chocolate, eu ter chorado assistindo “A Era do Gelo”, ter brigado com minha tia, e essa falta infinita do Gui, acho que tu devia rever o que tu tá fazendo comigo e vir comer sorvete aqui também.

– Aiiin, Flá. Prometo que levo amanhã... Precisa de mais apoio moral? Posso chamar as meninas.

– Não sei, não quero deixá-las tristes.

– A gente te alegra.

Aí ela suspira, lamentosa, se referindo ao seu relacionamento. Quer dizer, ao relacionamento que quer resgatar e se vê sem como fazer isso.

– Eu só queria uma alegria...

– Como vocês estão?

– Nível apenas se falando por mensagens. Às vezes nem isso. Sonhei com ele essa noite e, mesmo já não me lembrando do que foi, me apertou o peito o fato de... Ele também era meu melhor amigo. Sinto muito, muito, muito a falta dele.

– Já pensou sobre aquela proposta?

– Já. Às vezes eu quero ceder e aí volto àquele dia. Vira e mexe a gente se encontra e ainda teve as paradas com o Vinícius. Ele me ajudou tanto, Mi. Enquanto eu morria de medo, ele me aconselhou, me acolheu. A gente fez que nos esquecemos da nossa situação para lidar e tal, mas ora e outra tínhamos aqueles... momentos... Eu não sei o que fazer. Quero ele de volta, claro, mas... o que me garante que...

– Que os pais dele não separem vocês?

– Também. Eu não peço aceitação por parte deles, mas também que não me maltratem. E conhecendo-os como conheço... acho difícil. Então é mais difícil ainda voltar para um relacionamento que... pode se acabar a qualquer momento de novo. A intervenção deles é muito pesada.

Era de fato complicado. A proposta de Gui era uma boa, mas também não era das mais promissoras. Que garantias Flávia poderia ter? Já tinham tentado tanta coisa, eles quase não se viam. Os pais dele e Flá, digo. Aquele dia foi por ter sido um jantar importante e Gui quis mostrar que estava comprometido – ele me confessou essa com muito custo. Não se orgulhava desse feitio, na verdade se envergonhava e se lamentava. Queria mostrar para os pais e para aquela “sociedade” que ele já tinha alguém, assim talvez parassem de ficar empurrando garotas para ele. Deu no que deu.

Por outro lado, assim eles cediam aos pais de Gui, davam o gosto da vitória por terem os separado. E não falo isso por birra, é que acho mesmo que com jeito Flá e Gui podem contornar isso. O plano era um tanto fraco, e pelas circunstâncias... por que não tentar? Lutar? Buscar novas alternativas?

Foi brutal, claro, não tem como esquecer o que foi aquela humilhação toda. O que quero dizer é que essa foi uma intervenção indigna e não é ela quem deve vencer. O que os dois têm é muito bonito para se deixar abater assim.

– E se... vocês testassem? Como um recomeço, sei lá? Vocês não podem desistir assim. Quer dizer, ele tem tentado. Não desiste dele de novo, Flá.

– Eu... eu sinceramente não sei. Tenho muito o que considerar ainda. Repensar mais sobre isso. Não quero parecer leviana, além de me deixar levar mesmo fácil por causa do que sinto por ele. Amor pode ser uma droga às vezes.

– Não acho que seria leviana. Nem que deveria pensar tão racionalmente quando se trata de seu coração. Amor não é muito pra fazer sentido, sabe. Nem pra ser tratado de tal maneira, como eles fizeram. De qualquer forma, repense.

– Vou fazer isso. Acho que estou precisando mesmo de uma dose de meninas. Você também, já chega de se detonar por detonar os outros. Você tá mais que consciente, isso já é alguma coisa.

– E devo me preparar para...

– Para...?

Ao passo que ela me instiga a continuar, ouço um bocejo do lado dela da ligação. Verifico as horas no meu relógio do canto da tela do notebook, quase meia-noite, e só aí respondo a ela. Mudo de assunto logo, claro, Flávia tinha acordado cedo, merecia era descansar, não eu ficar lhe enchendo os ouvidos.

– Para...?

– Para não esquecer teus chocolates amanhã.

Afinal, teríamos bastante tempo para conversar no dia seguinte.

– Ainda bem que tu tem noção que são MEUS chocolates.

– Ok, dona esclarecedora de domínio de chocol... Ai, caramba.

Depois de apagar muitos spams e ver outras mensagens, verifico um e-mail do meu ex-chefe na caixa de entrada. O título mencionava uma reunião. Por um momento eu só encaro a tela e fico decidindo se clicava ou não. Nesse meio tempo, Flávia quer saber do que se trata:

– Quê, que foi?

– Te conto amanhã.

– Não, diz logo.

– Não é nada.

– Diz logo, Milena!

Mandona nada ela.

– É um e-mail do meu ex-chefe. Acho que tô sem coragem de abrir.

– Até parece que não ficou com um relatório ótimo, né.

Acho que posso vê-la revirar os olhos por isso. E reviro os meus em consequência. Pode-se dizer que minha experiência na empresa Muniz foi um tanto... conturbada.

– Até parece que nem aprontei naquela empresa, Flávia. Quer dizer, não aprontei, só estive envolvida em confusões.

– Você vive de confusões.

– E você acaba de perder seus chocolates.

– Não me convenceu, abre logo.

– Abro amanhã.

– Não te recebo até abrir esse e-mail.

– Mas tu tá chata hoje, hein!

– Sabe como é, não dá pra ser um algodão doce o tempo todo. Além do mais, chocolate amargo também tem seu charme.

– Tô vendo esse charme todo...

– Tô vendo é tu me enrolar, bonitinha. Abre. Agora.

– Tá, tô abrindo...

– E o que diz?

– Que eu vou desligar, você não disse nada sobre o conteúdo, só sobre o fato de eu abrir. Pois eu abri e agora vai ficar na curiosidade até amanhã.

– Eu vou te mat...!

Desligo sorrindo e rezando para que no dia seguinte ela estivesse um algodão doce comigo. Só desejava que o fim de semana corresse logo para saber qual seria o resultado dessa reunião, eu poderia esperar tudo dela.