- O que foi, Lena?

- Eu, nada.

- Faz horas que você se remexe aqui na cama. Tá sentindo algo?

- Acho que sim... Não consigo dormir. Acho que preciso... que preciso vomitar...

- AI NA MINHA CAMA NÃO! Levanta, que eu te ajudo chegar ao banheiro.

- Não, não é nada disso!

- Meninas, eu tô tentando dormir. Virem e durmam.

- Bruno, ela vai VOMITAR! Rápido, liga a luz aí!

- Vish, o que tanto ela comeu?

Ai, por que eu disse “vomitar” mesmo?

Tava no auge do pensamento quando Daniela me cutucou na cama que estamos dividindo. Nem percebi que me remexia tanto... Devia estar viajando mesmo pra dizer isso, querendo conotar outra coisa. Desse alvoroço, permaneço deitada, de costas no colchão, lençol bagunçado e mão nas têmporas na tentativa de aliviar a dor de cabeça que me pegou nessa madrugada, ouvindo esses dois se mexerem no escuro. Bruno liga a luz e fecho os olhos instantaneamente sentindo a luz me cegar.

Dani inventou de fazer uma digna festa do pijama e quis porque quis fazer o outro dormir no quarto com a gente. Tia Cecília nem disse nada também, achou melhor pegar um colchonete, pois sofá sempre “quebra a coluna”. Os pais da Dani não dormiram em casa pelo menos, foi uma cantoria até altas horas.

- Levanta, Lena. Vai devagar, eu te levo lá. Bruno, pega um copo de água lá na cozinha. Vê se acha algum remédio na prateleira...

- Gente, sério. Eu não vou vomitar! Eu só disse... disse em sentido figurado.

- Como eu disse no dia que o Bruno tava aperreado? Ai, amiga porque você não me disse? Aproveitei a festinha pra te animar um pouco, mas nem assim. O que tanto te aflinge?

- Você percebeu? Ainn...

- Claro, né, até o Bruno quis saber. Ele me disse de uma hora que achou você meio... hã, desnorteada, lá na faculdade. Falou que era algo sobre sua avó. Eu disse pra esperar, que o que fosse, não poderíamos insistir. Tal como você me deu a dica naquele dia. Mas agora, diz, pode dizer. Você está precisando.

- Own, Dani, você lembrou... Mas sério, nem sei por onde começar.

- Vocês querem que eu saia? Eu posso ficar no sofá mesmo...

- Se você tiver com sono, eu deixo você ir. A Dani tá aqui.

- Nam, quando tem alguém precisando de mim nas madrugadas, sono é o de menos. Posso ficar de boa.

- Obrigada, gente. Vocês são ótimos.

Me afasto na cama pra dar espaço a ele na cama. Ficamos os três sentados, eu no meio abraçada na Dani, tentando arranjar forças e falar alguma coisa. Eu não poderia falar muito mesmo.

Será que falar da minha avó colaria? Ela ainda tá doente, apesar de estável. Ah, como eu queria estar com ela agora, no seu colo pegando um cafuné...

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Chego em casa por volta das 11h e encontro dona Bia, a nova ajudante nossa, preparando o almoço. Me arrastando vou pelo corredor e topo com Murilo. O que ele tá fazendo em casa essa hora? Ele disse que iria sair cedo.

- Já voltou?

- Nem saí. Fizeram eu acordar cedo de besta. Quando já tava na porta, meu chefe me liga dizendo que era pra eu ficar em casa. Tão fazendo uma vistoria lá no prédio e não sei porque não me deix... Hey, que machucados são esses?

- Ah, isso? Nadinha. Eu me arranhei quando fugia de um cachorro...

- Como assim, que história é essa? Conta isso direito.

Quase me arrependi de ter falado do cachorro, o negócio é que eu estava tão... molenga, que nem me importei dele saber. Que soubesse logo! Não era isso que Djane queria? Pois pronto, falei logo. Minha dor de cabeça tinha diminuído da madrugada pra cá, só não foi embora.

Me condenei novamente. Menti! Não consegui falar sobre Djane ou Vini, nem mesmo que eu citasse o caso sem lhes dar as devidas identidades... não, falei da minha avó para meus amigos. Desabafei um pouco, usando minha avó como escudo e caixa de metáforas pra tratar do que me inquietava. Olho pro meu irmão parado no corredor esperando minha resposta, não resisto e me jogo em seus braços, deixando finalmente meu choro se escorrer.

- Mi! O que foi?

- E-eu...eu acho que fiz uma besteira!

- O quê? O que você fez?

- Eu briguei com Djane... porque eu... eu... ah, sei lá, é tudo muito confuso.

- Ela te tratou mal, foi isso? Porque se foi, eu vou lá falar com essa mulher.

- NÃO! NÃO... A culpa não é dela, é minha. Nem fui ontem ao hospital, aconteceu na faculdade mesmo... Não faz nada, me deixa ficar aqui, assim.

- Ô minha pequena, chora não. Vai se resolver.

- Eu na-ã-ão sei co-o-o-mo resolver.

Me grudei tanto nele que eu falar saía tudo abafado, até meus leves soluços. Ele não me impediu, não saiu do lugar e não me recriminou. Crime? Quer dizer, nem crime foi. Mas do jeito que me sinto, se eu tivesse assaltando alguém na rua era capaz de eu estar me sentindo melhor que agora, coração apertado. Sentia minha avó no carinho que meu irmão me dava.

- Calma. Já tentou pedir desculpas?

- Não, não ti-i-i-ve tempo. Não falei com e-e-e-la desde o ocorrido. Queria dar um tempo...

- Faz assim, toma um banho, vamos almoçar e depois damos um jeito nisso. Juro, se acalme. Não gosto de ver você assim. Olha, vou procurar algum vídeo-game legal pra a gente jogar.

- Eu num posso. Tenho trabalho pra fazer.

- É pra quando?

- Segunda.

- Ah, tem muito tempo ainda. Vai lá que eu te espero na mesa.

- Mas ele é um pouco gran...

- Sem mais, vai logo, antes que eu te carregue.

- Nam, eu vou, eu vou...

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- Você acha que eu deva ir lá? Dar uma olhada no território?

- Sim, você vai se sentir melhor estando lá. Larga esse trabalho e vai lá.

- Pera, me deixa ver se entendi: você tá tentando me convencer de deixar os estudos pra que eu vá ao hospital? Nam... prefiro ligar primeiro.

- Lena, você tá acovardando, é isso? Cadê tua determinação? Se você quer uma coisa, você vai atrás, não fica se remoendo aí com trabalhinho... eu sei que você num tá se concentrando. Toda hora você levanta os olhos desse livro. Você fala da Djane, mas tá fazendo a mesma coisa.

- Aiin, Murilo. Deixa passar mais um tempo, vai. Eu ligo daqui a pouco pra ela.

- Quer saber? Deixa que eu ligo. AGORA.

Pulo da cadeira, onde eu, sem concentração mesmo tentando digitar a pesquisa, pra alcançar o meu celular. Não adiantou. Tento capturar dele, mas ele me afasta e... Putz meu! Ele tá ligando... Tento mais vezes puxar de sua mão, até que ele diz:

- Só chama, até cair.

- Viu, te disse. Precisa de mais tempo.

- Negativo. Te arruma aí que vamos pro hospital agora.

- O QUÊ? Nam... nem vem. Vou é voltar para meu trabalho.

- Quer que eu desconfigure tudo de novo? Ou vai comigo ou vai comigo. Sem discussão. Nem que seja de pijama.

E sai atrás das chaves do carro.

Meu Deus, o que deu nesse menino? Por que eu sôo como a errada? Não devia eu estar me aplicando nos estudos? Ouço ele voltar com as chaves e corro pro quarto pra trocar de roupa. Por mais receosa que eu esteja, querendo pular fora desse encontro, tem uma parte de mim que quer saber como tudo está. Deve ser ela que me deixou colocar algo decente para ir ao hospital. E nas pressas, sempre um vestido.

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- Pelo menos um sonho realizado já temos. Você agora pode me ver toda molhada. Sabia que ia chover, né? Digo, torrencial.

- Sabia, mas nem me toquei disso na hora de sair de casa. Também estou molhado só por isso. Como eu estou mais molhado que você?

Na entrada do hospital estávamos os dois, como cachorros molhados, ajeitando nossas roupas pra poder entrar decentemente no recinto. Começou com uma chuvinha pouca pra se tornar num torrencial que atrapalhou avenidas e avenidas. Murilo que saiu cortando por uns bairros pra fugir dos engarrafamentos. Quando chegamos ao estacionamento ainda esperamos uns 15 minutos antes de sair correndo e nada da chuva baixar. O gênio também não contribuiu, esqueceu as capas de chuva em casa. Eu? Eu tinha outras coisas na cabeça pra pensar nisso... como o fato de Djane não ter retornado a ligação. Não tentei depois de Murilo também.

- Só porque eu lido com números, não quer dizer que eu sei física bem. Quem devia saber era você, senhor eu-sei-das-chuvas-e-não-aviso-ninguém.

Vejo alguém em capa de chuva se aproximar de nós, correndo da chuva, e o reconheço quando para a nossa frente. Diogo. Será que ele sabe de alguma coisa? Me seguro pra não perguntar na lata.

- Hey! Gente, resolveram sair pra tomar banho, foi? O tempo não tá dos melhores.

- Acredite, esse aqui insistiu pra sairmos nesse torrencial. Parece que não vai parar tão cedo. Pelo menos não tem trovões. Odeio demais.

- Eu tenho uma camisa, Murilo, se você quiser. Posso conseguir uma roupa pra você também, Milena, ficar de roupa molhada não é bom, ainda mais nesse clima frio.

- Tô aceitando, cara. Quando a gente inventa de sair pra fazer a boa ação do dia, parece que querem nos derrubar, que coisa.

- Então faz assim, me espera lá na recepção do terceiro nível que eu tenho que ver umas coisas com sua irmã. No bom sentido, claro.

Deixando meu irmão pegar um elevador pra ir até o terceiro andar, Diogo me puxa pra outro elevador e aperta o botão do 4º andar. Hein? Olho pra ele pedindo uma resposta e ele não entende a pergunta telepática... Então me manifesto:

- Por que quarto andar?

- Porque... porque... bom, lá eu conheço umas meninas que podem te emprestar uma roupa seca. Melhor do que ficar com essa aí.

- Tô tão horrível assim? Foi só uma chuva. Nem me molhei tanto assim, só meu cabelo que tá pingando mesmo...

- Que tipo de profissional da enfermagem seria eu se permitisse você ficar nessas condições? Tenho compromisso com a saúde, tenho que prezar pelos pacientes e amigos. Falando nisso, de onde saíram esses arranhões e olheiras?

Ele permanece perto da porta a minha frente, em posição reta, e bem despreocupado. Tira a capa de chuva, ajeita sua mochila e fica de lado para conversar comigo. Encosto-me devagar no fundo do elevador, segurando meu cabelo pingando para não molhar o chão. Ainda bem que trouxe uma bolsa impermeável, não ia pra faculdade mesmo. Ainda não acredito que meu irmão praticamente me sequestrou pra vir e nem comentou o fato de eu faltar aula. Tenho que ligar pra Flávia e pra Daniela depois, avisar que hoje não vou.

- Ah, subi numa árvore e sabe como troncos são ásperos, fácil de se arranhar neles... e as olheiras, hã, é da faculdade mesmo. Sou monitora da professora Djane, quando ela passou a semana aqui no hospital logo que o Vini acordou... bom, o diretor ficou encarregado com meu grupo. E mesmo depois que ela voltou à programação normal, ele ainda tem pegado no meu pé, mas isso envolve outras questões.

- O que você fazia subindo numa árvore?

- Hã... se eu disser que estava fugindo de um cachorro, você acreditaria?

- Ele te atacou?!

- Quase. Consegui fugir... Mas me diz, você viu Djane de ontem pra hoje?

- Não. Estive fora, minha folga acabou agora. Pegar no batente. Por quê? Aconteceu alguma coisa?

- Nam... só queria saber mesmo. É que... meio que brigamos ontem na faculdade e não nos falamos desde então. Mas tá tudo sobre controle... espero.

Seguimos para o vestiário do quarto andar, encontramos umas enfermeiras na porta do vestiário feminino e Diogo conversa com elas sobre minha... situação. Uma delas me reconhece das visitas ao hospital e cede um vestido. Ficou um pouco grande, mas aceitei de bom grado, deixei o meu secando no varal improvisado da área das meninas. Melhor que nada. Saio do vestiário e encontro Diogo me esperando na porta. Nos encaminhamos para o elevador.

- Viu, te falei que ia conseguir.

- Isso é mensagem subliminar pra eu te agradecer com gelatinas?

- Seu irmão tem razão, você tem mania de perseguição. Mas aceitaria de boa.

- Ah pra você eu compro, sem problemas.

Aperto o botão do elevador e esperamos abrir. As pessoas passam por nós e vejo o diretor que cuida do caso do Vini próximo de nós, atrás de Diogo que está a minha frente. Me pergunto quando vai sair sua alta quando vejo dentre as pessoas um segurança. Isso me faz lembrar uma coisa...

- Queria te perguntar outra coisa, já que estamos aqui. Você sabe se eu posso conseguir algum vídeo de segurança daqui? Tipo, de um dia específico?

- Hum. Tem que fazer uma solicitação se não me engano. Se não tiver um mandado, vai ter que depender desse requerimento e da aprovação do diretor... Pode demorar um pouco. Que vídeo você quer?

- Poxa. Era um do meu irmão, quando ele estava na emergência naquele dia. Desse jeito só nunca, né?

Esperança é a última que morre.

- Eu posso falar com um dos caras da segurança. Tenho uns amigos por lá, posso procurar saber... quem sabe eles ajudam.

Minha esperança se torna forte.

- Estaria ajudando muito, acredite! Obrigada, de verdade.

- De nada, amor.

- Hum.

PERA, O QUÊ?

Por que ele tá me abraçando mesmo? Quer dizer, não que eu esteja negando e ele seja muito bonito, mesmo, e... Hein? Abraço-o de volta, sem nada dizer. Quando me solta, a porta do elevador abre e ele olha pra trás. Pra trás? Entramos no elevador, ele de boa não percebendo minha expressão de perdida. Tinha duas senhoras e uma médica lá pra descer. Uma senhora deve ser paciente e a outra acompanhante pelo que aparentavam. Cutuco ele de leve e pergunto baixinho querendo esclarecer suas últimas palavras:

- Amor?

- Ah, hã... eu chamo minhas amigas de “amor”, é... costume. Se você num gosta, eu não chamo. Apresento mais dois amores, dona Margarida e dona Erica. Dona Margarida é uma das minhas melhores pacientes.

- Paquerando as meninas de novo, menino Diogo? Viu doutora, tem que tomar cuidado com esse garoto.

- Ah dona Margarida, a senhora sabe que sou apaixonado por vocês. Sem preferências, viu. Mas conto um segredinho, guardei um nebulizador para a senhora. Vamos lá para sua ala que lhe mostro.

Chegamos ao terceiro andar e Diogo sai com sua paciente e acompanhante. Não antes de me entregar a camisa que eu devia passar pro meu irmão... Putz! Ele deve estar na recepção até agora esperando. A doutora que estava no elevador abafava um risinho olhando Diogo com as senhoras; permanece no elevador pra descer.

Caminho para a recepção encontrar meu irmão e... ele não está mais. Cadê esse marmanjo? Parece que me ouviu por telepatia, porque The Lazy Song começa a tocar na bolsa. Atendo e continuo andando, agora em direção ao quarto do Vinícius.

- Ei, onde você está? Tô com a camisa na mão.

- Meu chefe me ligou ainda pouco pedindo pra ir lá resolver uns pepinos. Esse negócio de fiscalização atrapalha todo mundo. Já estou no estacionamento, faz tempo que tento te ligar, mas o sinal daí é péssimo. Pode devolver a camisa. Ainda bem que troquei de roupa antes de sair de casa, porque do jeito que o trânsito deve tá essa hora, não vai dá pra passar em casa de jeito nenhum.

- Hum. Vou ver se encontro Diogo agora então.

- Você tem como voltar pra casa? Não sei quanto tempo posso me demorar lá no trabalho. Grande hora pra me chamarem... eu já ia procurar pela Mônica.

- Desiste, Murilo, ela te enganou. Mas pode deixar, eu dou um jeito de voltar pra casa. Pego um ônibus se preciso. Te aviso qualquer imprevisto. Tchau.

Chego, distraída pela ligação, no corredor do dito quarto e, um pouco de longe ainda, vejo um homem saindo de lá, fechando a porta. Me aproximo rapidamente para perguntar:

- Oi? Você estava falando com o paciente Vinícius?

- Ele não está no quarto, foi fazer um exame que faltou. Quem é você, é enfermeira?

- Não, sou amiga dele. Milena.

- Ah, então você é a garota que me mandou a mensagem. Prazer, sou Filipe, tio do Vinícius.

Paraliso.

Co-o-mo assim? Mas... mas... ele não estava viajando? Já chegou, tão cedo? Como que ele chegou tão rápido? Fala alguma coisa, fala Milena, ficar de boca aberta olhando pro cara só te faz ficar com cara de boba. Mas o que eu falo?