Mais um dia comum

Maré de azar


Após minha palestra perfeitamente escrita e ensaiada sobre a importância da cultura e do incentivo à arte nacional, minha família permitiu que eu assistisse ao show de talentos da escola do Jota, que pode ser nosso primeiro encontro.

Não que meus pais vissem algum problema em seu filho adolescente sair com um completo estranho que conheceu no metrô. Mas minha halmoni é sempre mais cabeça-dura. Até hoje ela resiste ao fato de eu ser gay, mas é um trabalho em progresso. Embora ela não goste da minha viadagem, não hesita em mencionar como o Lucas é “maravilhoso”. Calma aí, minha velha, que não é bem assim.

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Lucas, aquele meu ex-namorado. Também aquele que, mais cedo, me enfiou a língua na garganta à força — e quase a perdeu por isso. Não posso deixar de mencionar que as pausas no meu discurso foram demoradas e inevitáveis, já que eu não parava de me preocupar com o beijo e como eu resolveria a situação.

Desabafar com a Laisa estava fora de cogitação — pra falar a verdade, eu passei a tarde ignorando as mensagens dela. Pensei bastante sobre a ideia de conversar com ela, e de tanto refletir, concluí que o melhor a fazer era deixa-la fora disso.

Eu não arriscaria nem falar com ela sobre esse tempo que num dia chove e no outro faz Sol, então chove enquanto faz Sol, uma loucura. Meu menor “oi” já denunciaria a minha aflição. A regra é clara, e não me pergunte o porquê: Laisa tudo sabe, Laisa tudo vê.

Não é preciso bola de cristal pra prever que eu acabaria em prantos nos ombros dela. Eu cancelaria meu encontro pra passarmos a noite juntos, eu desperdiçaria a madrugada reafirmando como o Lucas é babaca, nós faríamos maratona de séries para afogar as mágoas. No outro dia, seríamos dois zumbis, mortos-vivos de sono, tentando assistir aula. Já virou rotina, me acostumei.

Mas o pior é que ela acabaria preocupada com os problemas típicos do meu ex, pela quingentésima-nona vez em três anos. Ela já tem os próprios assuntos pra resolver — e resolve muito bem, o sinônimo de “bem-resolvida” é “Laisa” —, mas se sente na obrigação de resolver os meus e isso não deve fazê-la bem. Por isso, sem “Laaaa, tô mal” por hoje.

Sem falar no Jota. Ah, João Tadeu, um cara gostoso que vem ocupando meus sonhos nos últimos dias — só que nem no meu pior pesadelo ele pode descobrir o que aconteceu entre o Lucas e eu. Vai que ele me culpa, deixa de gostar de mim, ou até mesmo me serra ao meio no seu número de mágica? Eu não poderia arriscar, não agora, quando tudo está dando tão bem pra mim. Tá, quase tudo.

Quem sabe eu conte daqui a uns dez ou trinta anos, quando a poeira baixar?

...

T: Jota, aqui é o Tom! Tomás Park, o stalker do metrô!

T: Só queria confirmar que vou ao show, tô muito ansioso

J: Oi, Tom! Vai ser muito massa ter você na plateia

J: Diz aí, seria estranho se eu fosse comer um Subway de terno?

T: Depende, o terno do Subway é comestível? KKKKK, ENTENDEU?

T: Tá, parei. Eu posso te acompanhar de terno, ué

J: seria ótimo!

J: Mas olha, vou sair agora

J: Preciso organizar tudo antes de começar, nos vemos lá! Beijão

T: Beleza, beijos ~

...

Sorria e acene, e tudo ficará bem. Difícil pra caralho, com aqueles emojis zombando e encarando as profundezas da minha alma. Ele chorava de rir e eu chorava de aflição, encolhido no canto do quarto. Encarando a janela aberta, precisei me segurar para não atirar o celular — quando eu queria atirar o Lucas.

Espera, o João sabe. É claro que sabe, ele é mágico! Os emojis são só uma maneira cruel de me torturar até eu morrer afogado em culpa e desgosto. Foi uma metáfora óbvia — duas carinhas, dois carinhas, o Lucas e eu, claro!

Não, eu não estou surtando ou sendo paranoico outra vez! Mas cadê a mamãe pra me chacoalhar quando preciso? Toma controle, Tomás! Inspira, expira, não pira!

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Ufa.

Ok, talvez eu não precise me preocupar. Não é como se eu dependesse e recorresse à Laisa para resolver todos os meus problemas. É hora de encarar a vida de frente, eu já sou crescidinho e capaz de ter o comando da situação, antes mesmo que o Jota mande um Avada Kedrava, né? Né?

Tentando afastar qualquer pensamento indesejado sobre aquilo, decidi começar a me arrumar o mais rápido possível pra não perder nada do show que acabaria como uma maravilha ou como uma tragédia total. Conhecendo a minha sorte, eu já imaginava a opção mais provável.

Mas o que posso dizer? Para alguém que tem a vergonha alheia como sina, pagar mais um mico se torna rotina. Essa foi poética, acho que vou patentear!

Carregando o conjunto favorito do meu pai — terno e calça azul-escuros de um tecido suave, com listras verticais mais claras e sem muito destaque — eu entrei de fininho no banheiro e tranquei a porta, pra não ser descoberto com a obra-prima têxtil nas mãos. Talvez pareça um pedaço de pano, mas representa mais.

Tenho certeza de que se o papai fosse obrigado a escolher entre mim e o terno, ele escolheria o terno. Não posso culpa-lo, eu faria o mesmo. Talvez eu o manchasse com molhos do Subway em um primeiro encontro incomum, mas era a vestimenta perfeita para a ocasião, e a ocasião perfeita para a vestimenta, um chamado que eu não podia ignorar.

É algo que eu sempre admirei e quis pra mim, pois exala imponência e estilo. Esteja onde estiver, este terno te torna a pessoa mais admirada e controlada. É exatamente disso que um adolescente desajeitado, muito culpado e sutilmente pirado precisa. Ei, olha só quanto tempo eu passei sem pensar no beij... Droga!

Só uma coisa poderia me desligar dos intrusos na minha cabeça, a música! Peguei o celular e busquei pelo player de música, passando a tela com o polegar até encontrar alguma música que me relaxasse.

“This Kiss”. “Beija Eu”. “Kiss Me”. “Me Beija Agora”... Por que eu tenho Calypso no celular?! No final, achei melhor colocar “aleatório”, descansar o celular no balcão e ver no que dá.

Quando eu me afogava na água da pia, um ritmo familiar destruiu o meu tímpano direito, já que eu deixei o volume no máximo pra não pensar em... Bom, era o começo da música “Thought Bubbles”.

Indo de leve, viver é uma maravilha
Nada dá errado quando o Sol brilha
Me faz lembrar que reprovei no curso de salva-vidas
Por isso aquela criança quase morreu naquele dia...

Esse é um pensamento ruim! Não gostei!

Um cara cantando sobre não conseguir lidar com os pensamentos invadindo sua cabeça sem que ele queira. Entendo perfeitamente! Seria a trilha sonora do momento se a minha vida fosse um musical, em vez da ópera trágica que é — todos tentando sair vivos e gritando coisas que ninguém entende.

Quando chegou o último segundo, eu já estava arrumado em grande estilo e submisso ao pânico que a música me causou. Sem saber mais sobre o que pirar — roupa, lanchonete, encontro, beijo... Não, já sei. É o meu cabelo, ficou muito espetado! Eu deveria usar gel, mas gel me deixa horrível. Mas talvez o João curta o gel, vai ser com gel... Ou não?

...

Desci as escadas, com cuidado pra não fazer barulho. A carteira em um dos bolsos macios da calça, e um pequeno pote de gel que convenientemente coube no outro. Ter permissão pra sair é uma coisa, mas sair com o conjunto azul-escuro do papai são outros quinhentos.

— Bonito, hein? — gritou minha avó, me pegando no flagra sem parecer surpresa ao sair da cozinha, como se estivesse me vigiando — Que cena mais linda, será que eu estou atrapalhando o rapazinho aí?

Claro que eu me assustei com aquela a entidade coreana saindo das trevas de surpresa, e eu cairia escada abaixo se não agarrasse o corrimão a tempo, o que não evitou que eu tropeçasse na própria perna e caísse de bunda num degrau... Ai! Tentei me encolher pra dentro das roupas que me cobriam, mas na hora faziam com que eu me sentisse pelado e envergonhado.

— Halmoni, não é o que parece!

— É exatamente o que parece — cantarolou com a feição de alguém com intenções malignas. Ela franziu a testa enrugada, dando um sorriso intimidador como um Coringa da terceira idade, e leu minhas ações em poucos segundos.

— Vovó, eu posso... — em pânico eu tentei me defender, mas ela logo me interrompeu.

— Você quer sair para farrear com o terno do seu pai, que pegou escondido... Divirta-se e não volte muito tarde, viu?

Espera, sério? Ela me ajudou a levantar do degrau, que me causou uma dor duradoura no traseiro. Já o meu rosto, que ganhou um doce beijinho dela, só expressava confusão enquanto ela me empurrava em direção à porta. Os aliens trocaram a minha vó, ou ela mudou de lugar com uma gêmea boa que ninguém sabia da existência?

Eu achei inesperado, até desmascarar o plano enquanto caminhava pela rua ao meu destino: a vovó não simpatiza muito com o papai. Com isso, eu quero dizer que a alegria da vida da halmoni é o sofrimento do meu pai — e se houvesse algum problema com o terno, ele sofreria pela eternidade. Como se eu fosse deixar algo de ruim acontecer...

Pena que eu não posso falar pelo pombo que cagou no meu ombro, no meio do caminho. Mas eu cheguei muito longe pra desistir — o encontro vai acontecer de qualquer maneira, mesmo tendo que enfrentar essa maré de azar em que o Lucas me fez mergulhar.

...Eu não posso ficar só com meus pensamentos.