Samantha

— Eu odeio esse jogo idiota! — Adam reclamou jogando suas cartas em cima da mesa. — Eu não faço ideia do que são copas e do que são espadas. Coisa irritante.

— Você precisa aprender a blefar. Esse é o segredo — pisquei e ele revirou os olhos. Jared e Ian riram na mesa atrás de nós.

— Se você me ensinasse a jogar eu agradeceria. Você é uma péssima irmã.

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— E você é muito mal agradecido, sabia? Não é culpa minha se o seu parceiro é um fracasso nas cartas. Da próxima vez, arrume alguém melhor se quiser vencer — eu disse dando tapinhas nas costas de Jamie, que se embaralhava com as cartas ao meu lado. Ele e Adam já haviam perdido umas cinco vezes. Kyle, que formou dupla comigo para o jogo, recolheu o baralho e se preparou para uma nova rodada quando fomos interrompidos.

Crianças, deem espaço para um jogo de verdade. Esses amadores são uma piada — Nate esfregou as mãos e expulsou Adam do seu lugar.

— Soberba faz mal a saúde, Nate — Jared disse tomando o meu lugar à mesa. — Vou te mostrar algo no estilo Vegas.

Ian acompanhou Kyle e os quatro iniciaram um jogo que divertia a todos, mas não fiquei para ver quem iria ganhar, pois apesar de mais acostumada com as pessoas a super lotação ainda me deixava incomodada. Procurei algum lugar onde pudesse respirar e pensar sozinha e escolhi o vazio da sala de jogos. Deitei-me no chão e o lugar calmo e quase sem luz me trouxe serenidade para pensar e colocar minha cabeça de volta no lugar. Fiquei mais ou menos uma hora esquecida ali quando Jamie e Adam irromperam salão adentro conversando em voz alta.

— Será que não posso ter um único minuto de paz? — resmunguei.

— Você precisa parar de se excluir, Sam — Jamie rebateu, sentando ao meu lado. — A companhia dos outros não poder ser algo tão ruim assim. Não sei como você consegue ser tão antissocial.

— Não acredito no que estou ouvindo! — respondi, escondendo dele que na verdade eu queria rir. Jamie era um garoto maravilhoso e muito inteligente. — Parece que agora eu ganhei mais um irmão para pegar no meu pé.

— Bom, se você quiser posso ser seu mais novo irmão. É inevitável viver por aqui sem formar uma família — Jamie falou com convicção.

— O que você quer dizer com isso?

— Bom — ele começou a explicar —, Melanie é minha irmã, mas junto com Jared agem como se fossem meus pais. Peg também é minha irmã agora e com isso Ian é uma espécie de cunhado. E no pacote vem Kyle acompanhado de Sunny, tio Jeb que cuida de todos, Nate que é quase um pai... Enfim, somos uma grande família. E se você quiser poderá se encaixar nela. Se quiser.

Não consegui evitar uma gargalhada sonora, o garoto era um completo sonhador. Observei bem os dois meninos a minha frente e senti a força que vinha dos dois. Adam e Jamie eram tão jovens e mesmo assim tão cheios de esperança, sabiam lidar melhor com a situação em que se encontravam do que qualquer adulto. Eles eram o tipo de pessoa que não mereciam esse destino tão cruel.

— Eu e Adam nos encaixaríamos onde nessa maluquice toda aí? — perguntei só por curiosidade.

— Adam é meu amigo, mas funciona mais como um irmão também — ele respondeu e Adam que estava do meu outro lado sorriu. — E você pode ser...

— Uma tia velha e mal humorada — Kyle interrompeu a fala de Jamie. Atrás dele chegavam Sunny, Lily e Cal, que carregava uma caixa com barras de cereais e uma bola já surrada.

— Vai se ferrar, O’Shea — segurei a língua para não xingá-lo como queria e ele apenas riu da minha cara. — Definitivamente hoje não terei sossego.

— Eu não tenho culpa de nada, você que escolheu o lugar errado — Kyle falou sentando também no chão e colocando Sunny a sua frente, entre suas pernas. Ele a beijava no rosto e acariciava seus cabelos, me fazendo pensar em como ele conseguia gostar dela mesmo depois de tudo o que havia feito com ele. Sunny havia suprimido sua Jodi e mesmo assim ainda conseguia sentir por ela algo que se assemelhava ao amor, isso se não já a amasse mesmo. A imagem dos dois juntos me trouxe lembranças boas, de um tempo sem medo e sem dor.

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—Vamos? — Lily começou a se aquecer cheia de alegria e me lançou um sorriso doce.

— Não, obrigada. Hoje estou mais a fim de alimentar o ócio — respondi bocejando.

— Então faremos assim — Adam sugeriu — eu, Jamie e Cal contra Kyle, Lily e Sunny. Que tal?

— Eu não gosto de jogar, tenho medo de me machucar — Sunny rejeitou. Fiz uma careta ao constatar a enorme burrice humana por perder para uma espécie de criaturas que tinham medo de arranhões. Mas talvez essa fosse sua arma letal: delicadeza.

— Mas o time ficará ímpar e um terá que sobrar! — Jamie insistiu.

— Eu jogo depois — Cal ofereceu seu lugar e sentou ao meu lado. — Não me importo de esperar.

Adam e Lily foram para um lado e Kyle e Jamie seguiram para o outro para iniciar a partida. Deitei no chão e fiquei fitando o teto.

— Você prefere qual? — Cal me ofereceu algumas barras de sabores diferentes.

— Qualquer uma.

— Então, parece que há algo te perturbando, Sam — ele afirmou me entregando o doce. — Você está inquieta.

— É tão perceptível assim? — questionei.

— Só para aqueles que prestam atenção — Cal respondeu e imediatamente ficou sem graça. — Não que eu preste atenção em você. Quer dizer, eu presto porque você é minha amiga. Bom eu a considero, mas ...

— Tudo bem, eu entendi — cortei e não consegui evitar rir. — Acho que somos amigos, afinal você é única pessoa além de Adam com a qual eu consigo manter uma conversa por mais de cinco minutos — disse e só depois me toquei da gravidade dos fatos.

Eu acabara de admitir ser amiga de uma alma.

Que porcaria de mundo estranho era esse?

Sim, por mais estranho que parecesse nas últimas semanas eu havia desenvolvido algo próximo a uma amizade com ele. Começou timidamente, depois do episódio em que eu me desculpei após ele me salvar e o incidente constrangedor com Aaron no corredor. Por algum motivo que não identifiquei, Jeb nos promoveu a dupla “faz tudo” e quase sempre tínhamos que fazer tarefas juntos, tanto na cozinha quanto nas plantações. Com isso foi inevitável não falar com ele, pois além de Adam ele era a pessoa com a qual eu passava mais tempo durante o dia inteiro. No início só ele falava, perguntava como foi o meu dia e se eu havia dormido bem. Depois, ele começou a me contar velhas histórias sobre como havia se aliado a Nate, a descrever o seu antigo planeta e eu me limitava apenas a ouvi-lo. Por fim, me dei por vencida e acabei contando coisas de minha própria vida para ele.

É claro que apenas uma ínfima parte. Mas ainda sim me permiti lembrar dos momentos bons.

— São só algumas coisas que aconteceram comigo esses dias, Cal. Nada preocupante — respondi depois de ponderar todas as coisas.

— Se eu puder ajudar.

— Peg se dispôs a me devolver Grace — soltei de uma vez e me senti aliviada. Eu não havia conversado sobre isso nem com Adam, no entanto senti que poderia falar disso com Cal.

— Quem é Grace? — ele perguntou e só então lembrei que nós tínhamos mantido isso em segredo desde que havíamos chegado, para evitar olhares tortos e perguntas dolorosas dos outros. Fechei os olhos antes de responder.

— A dona do corpo que ela agora usa.

Ele ficou boquiaberto e com uma expressão assustada ao saber sobre a minha delicada situação. Cal fez uma cara de quem pergunta: “é verdade mesmo?” e eu apenas balancei a cabeça afirmativamente, contando em seguida para ele tudo o que acontecera com ela.

— Nossa... — ele fez uma pausa longa depois que terminei. — O que você resolveu?

— Eu disse que não. Depois de pensar melhor achei que isso não seria justo. Não seria justo com ela, com Jamie e principalmente com Ian e Adam. Os dois teriam que ver duas pessoas que amam morrer, mesmo que elas tecnicamente sejam o mesmo corpo. É tão confuso que preferi deixar tudo como está. E Grace já morreu há anos, não posso fazer mais nada quanto a isso. Só aceitar e... aceitar — desabafei e Cal me olhou longamente com seus olhos prateados. Ele tocou no meu ombro como se estivesse me dando força pela decisão e me senti aliviada pela primeira vez desde que havia chegado ali.

O observei de volta e percebi quão paradoxal era a criatura na minha frente. Eu via um homem bonito e generoso, forte e com um físico desenvolvido pela dura vida que levávamos no deserto. Nesse quesito ele se parecia com Ian ou Jared, no entanto sua personalidade era mais parecida com a de Jamie ou Adam. Cal era puro, bom e compreensivo e sempre tentava ver o nosso lado, mesmo quando sentíamos raiva e dizíamos palavras duras a ele. E o mais interessante, ele corava sempre que falávamos algo impróprio perto dele, o que era muito engraçado levando em conta o seu tamanho. Eu nunca havia conhecido alguém assim e isso me encantou.

— Isso é surpreendente — Cal falou para mim e só então me dei conta de que estava fitando-o.

— Por quê? Você pensou que eu mesma ia retirá-la?

— Sim — ele respondeu bem direto.

— Eu também pensava assim. Culpa sua.

— Como assim?

— Quando te confundi com um buscador, assim que cheguei — toquei na ferida e ele recuou um pouco —, pensei que no outro dia você sairia correndo e nos delataria ou então que me odiaria pra sempre. No entanto você meio que me apoiou mesmo eu estando errada. E depois quase morreu para me salvar... nenhum humano seria capaz disso. Com isso não tive outra alternativa a não ser aceitar.

— Obrigado pela consideração, Sam. E quanto a Peg, isso foi um ato de bondade extrema.

— Pois é, pra você ver que eu não sou esse monstro que todos pintam por aí — rebati.

— Eu sempre soube disso, Sam. Apesar de todas as circunstâncias.

— Obrigada — agradeci, aliviada por saber que pelo menos alguém ali parecia gostar um pouco de mim. No entanto, quando me toquei que esse alguém em questão era uma alma, a mesma que eu havia tentado matar, minha mente ficou ainda mais confusa. O olhei no fundo dos olhos procurando uma mentira, mas só encontrei bondade e compreensão. Ele então colocou uma mecha do meu cabelo solto atrás da minha orelha e senti meu corpo aquecer instantaneamente. Fiquei bastante acanhada, o que era muito raro já que poucas coisas tinham o poder de mexer assim comigo.

— Cal, quantos anos você tem? — perguntei a primeira coisa idiota que veio a minha cabeça só para desviar o foco do que acabara de acontecer. Eu não devia estar sentindo esse tipo de coisa.

— Hum, não sei. Acho que uns três mil anos — ele respondeu.

— Nossa! — exclamei. — Isso é muito tempo. Mas eu não estou falando de você. Estou falando de... você — indiquei seu corpo com a mão e ele pareceu entender que na verdade eu queria saber sua idade humana.

— Dependendo do que você quer saber eu tenho duas idades. Estou aqui na terra há apenas oito anos, porém meu corpo tem cerca de vinte e cinco.

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Fiquei pensando nisso e me pareceu completamente surreal. Quando Cal nasceu as diversas civilizações humanas ainda estavam em formação, no entanto ele era tão inocente quanto uma criança pequena. E o pior de tudo, preso no belo corpo de um homem feito. Nós ainda nos fitávamos em silêncio quando Adam praticamente se jogou todo suado em cima de mim.

— Sai de cima de mim, credo! — reclamei enquanto ele tentava me abraçar à força. Cal riu e eu senti vontade de matar os dois.

— Vamos jogar, Sam! Tira essa bunda do chão — Kyle disse, ofegando.

— Na próxima.

— Amanhã todos vão jogar, por isso viemos aquecer.

— Tudo bem, amanhã eu jogo — disse só para ser deixada em paz. Kyle sorriu e voltou para os braços de Sunny. Eu sorri também.

— Estou morto — meu irmão disse depois que acertei um soco leve em seu peito. — É sua vez — ele apontou para Cal que imediatamente se levantou e tomou o seu lugar no jogo.

— Vocês parecem bem próximos — Adam falou minutos depois com a boca cheia de cereais.

— Impressão sua.

— Se é o que diz. — ele deu de ombros. — Sam, você acredita em destino?

— Você sabe que não.

— Pois devia.

— Por que eu deveria acreditar em destino, Adam?

— Porque você estava no lugar exato e na hora exata para ajudá-los naquele dia na floresta. Porque de tantas almas e pessoas no mundo você encontrou a alma que habita exatamente o corpo de Grace. E depois viemos parar aqui. Sabe, acho que o destino estava te preparando para o que está por vir. Ele queria que de algum modo você perdoasse as almas. Acho que há algo em seu futuro que você ainda não enxergou.

— E aonde você quer chegar com isso? Só porque eu estava conversando com Cal isso não significa que perdoei as almas — disse e ele ficou sem resposta.

— Você tem medo de que, Sam? — Adam perguntou depois de um tempo.

— Medo? Como assim medo? — devolvi a pergunta já sem gostar do rumo da conversa.

— Que talvez a vida seja bem maior do que tudo o que você acredita. Pense nisso — ele respondeu e saiu para longe. Adam herdara a mesma mania do papai, dizer algo que julgava profundo e depois sumir, e essa lembrança me deixou melancólica.

Fiquei meditando em suas palavras sem entender nenhuma das suas suposições e o que ele realmente queria dizer com todas aquelas metáforas esquisitas. Sai de fininho e procurei um outro lugar quieto para ficar, eu não estava muito boa para filosofias. Mas uma coisa ficou martelando em minha cabeça.

O que poderia ter em meu futuro que eu ainda não havia enxergado?