Mais Do Que Você Imagina

Bendita seja a Caolha


— Ela não vai se chamar Caolha! — Essa deve ser a vigésima vez que digo essa frase. Em vão. Quando o sinal anunciou o intervalo, fiz de mim a pessoa mais feliz da face terrestre. Mas então começou a discussão. E depois os olhares, que agora se tornaram escassos. Nossos amigos conversam entre si, um pouco afastados de nós dois, nos ignorando deliberadamente.

— Eu sou o pai, e o único que levantou a bunda da cadeira para resgatá-la daquela situação precária na qual...

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— Cala a boca! — Digo, prevendo um longo e maçante discurso sobre algo desnecessário.

— Ei! O que a pobre Caolha vai pensar ao ver seus pais discutindo? — Ele faz aquela pergunta como se a “Caolha” realmente fosse se importar.

— Que a nossa “relação” é apimentada.

— Ah, estamos em uma relação agora, é? — Ele pergunta com a voz rouca, mexendo as sobrancelhas de um jeito engraçado, enquanto piscava com suas enormes pestanas. — Ai gente! Que emoção! — Eric imitou a voz de uma menininha nessa parte.

Argh.

— Vamos fazer um trato? Ela pode se chamar Caolha, desde que você mantenha essa boca fechada.

Ele finge pensar um pouco, enquanto ajeita Caolha — argh, nome horrível — em seu colo. Sério, ou ele é louco, ou não faço ideia de qual seja a outra opção, porque ele trata a boneca como se fosse um bebê de verdade.

— Negativo.

— Hã? — Pergunto brilhantemente, tentando relembrar-me do que estávamos falando. Ah, o trato.

— Por quê?!

— Porque eu gosto de ouvir minha linda voz. Mas, — Eric se aproxima — eu não objetaria se ao invés de eu manter a fechada, você a mantivesse ocupada. Que tal? — E complementa com uma piscadinha.

— Sonha colega. — E faço um gesto de descaso com a mão.

— E aí, entraram em um acordo? — Calli grita do meio da rodinha que se formou; meus caros amigos e a gangue do Eric.

— Não! — Grito.

— Ok, mamãe satânica. Qual nome então você quer dar a ela?

Pego “nossa filha” de seus braços, e ele diz um “cuidado!”, que logo rebato com uma adaga em forma de olhar. Ergo a cria acima da minha cabeça, enquanto de lábios crispados, tento encontrar um nome que combine.

Mas minha mente entra em um lapso de inatividade. Não consigo pensar em nada. Só...

Caolha.

Arghhhhhhh.

— Ok, bendita seja a Caolha. — Digo com um humor dos infernos.

— Eu sabia que você ia acabar amando! — E bate palminhas, com alguns pulinhos animados.

— Há! Amando! Até o último fio de cabelo do Lord Voldemort! — E cruzo os braços para dar ênfase em todo o meu “amor”.

— Ufa, já estava pensando que você ia acabar pedindo o divórcio.

— Eric, — dou uma pausa para que assimile que estou falando com ele — nós não somos casados.

— Doçura, não vamos discutir a relação na frente da nossa filhinha.

Deus, não me dá paciência não. Só me amarra, amordaça, cobre meus olhos, e tapa meus ouvidos. Porque senão, EU MATO ELE!

Dou pequenos passos lentos em sua direção, e coloco ambas as mãos em seus ombros, fantasiando sobre elas chegarem até seu pescoço, e esganá-lo. Eric engole em seco, e parece estranhamente nervoso.

— Eric. Você. Está. Levando. Muito. A. Sério. O. Trabalho. De. Português. É só um trabalho.

E dou um tapinha em seu braço direito, para sei lá, por não ter o que fazer mesmo.

— Hnm, certo, hnm, licença. — E sai de lá, me deixando confusa. A pobre Caolha parece prestes a cair do seu colo. Eric pega o celular do bolso de seu casaco, enquanto se dirige para os banheiros sem olhar para trás. Com muito esforço ignoro.

— E aí? — Pergunto enquanto me aproximo do pessoal.

— E aí o que? — Calli pergunta enquanto fica revirando seu “filho".

— O que você está procurando? — Aponto agora para o que parece ser a bunda dele.

— Ah, só estava verificando se era mesmo um garoto. — E vira o bebê do lado certo. Rio dela.

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— E aí, é um garoto mesmo?

Ela coça a cabeça, e faz aquela cara que eu acho muito fofa, quando está concentrada em algo. Crispa o nariz igual a um coelhinho, ergue a sobrancelha esquerda, e puxa o canto da boca para cima.

— Sei lá, isso está parecendo um travesti.

Começo a rir, e preciso segurar minha barriga, que começa a doer por causa das gargalhadas.

— Mas e aí, como vai a Caolha? — Ela pergunta em um tom malicioso. De repente todo mundo, que antes estava alheio a nossa conversa, agora parecem estar prestando atenção no que vou dizer.

— Ah, fora o olho faltando, ela está bem de boa.

— E o papai? Do jeito que ele saiu, parecia que você tinha ameaçado trancá-lo em um quarto escuro infestado de morcegos. — Pois é, a criatura tinha pavor de morcegos. Mas era super fã do Batman. Sério, que mundo é esse?

— Não sei o que deu nele. Num instante estava sendo tão Eric, e no outro, tão não-Eric.

— Hnm. — É tudo o que diz. Vejo Bruno e Jaques, dois de seus amigos, trocando um olhar, e logo após Bruno ir em direção aos banheiros também. Bea olha melancólica ele se afastar de nós.

— Então, vocês ouviram as boas? — Daniel pergunta, enquanto mastiga o canudinho de sua Coca.

— Conta! — Bea implora com os olhos brilhantes.

— Sexta-feira à noite vai ter uma festa na casa da Dafne. Uma festa do pijama.

— Tá, e daí? — Bea pergunta um pouco decepcionada.

— E daí que tooodo mundo está convidado, isso é, do 3º ano. Mas só entra quem estiver de pijama.

— Que coisa mais tosca. — Digo desinteressada.

— Pode até ser tosca, mas você — Daniel me cutuca com um dedo — vai. Ou vai ter que arranjar outra pessoa para explicar a matéria de matemática.

— Isso é chantagem emocional! — Digo ultrajada.

— Isso é chantagem. Não fica colocando palavra onde não tem. Mas você vai, certo?

Suspiro derrotada.

— Certo! Mas vão ter que aturar meu mau humor ocasionado pelo sono.

— Me cita algum, qualquer, momento em que você não está de mau humor.

Viro-me e vejo Eric, com sua pose elegante, segurando Caolha com um só braço. Aquele lapso de comportamento pareceu desvanecer, e me sinto aliviada. O mundo não parecia certo com um Eric abatido.

— Todo dia 30 de fevereiro. É um ótimo dia para me ver de bom humor.

— Tenho certeza que sim. — O meio sorriso habitual aparece, mas parece um pouco apático dessa vez. — A propósito, é a sua vez de cuidar da Caolha. — Ele estende a boneca, e a pego.

Tento fingir que é um bebê de verdade, e a aconchego em meu colo. Olho para sua roupa velha, e então me lembro dos meus brinquedos guardados no sótão. Eu já tive uma boneca assim, e ainda tenho muitas roupinhas.

— Eric! Eu tenho algumas roupas de boneca guardadas no sótão, de tarde você me ajuda a pegá-las?

— Claro. — Coloca as mãos nos bolsos enquanto dá de ombros.

Tão rápido quanto veio, o intervalo se finaliza. Vamos para a aula de artes agora. Passa rápido, enquanto temos que desenhar aquilo que mais desejamos. O nosso tal sonho. Desenho uma câmara fotográfica, que não fica tão ruim assim. Quando a professora passa pela mesa do Eric, ela sorri e aperta seu ombro. Claro, além de todo mundo — menos eu — amar ele pela sua “carisma” extraordinária e ordinária e ele ser um ótimo ator, a peste também tinha um dom para o desenho. Os dele eram sempre os melhores.

Quando a aula se encerra, fico feliz, e meu estômago também. Caminho apressada até o ônibus e subo nele. Sento no assento habitual, e espero por Jimmy. Ele parece sem fôlego e levemente corado. Para na entrada, e me procura, como faz tipo, desde sempre. Apesar de eu sempre sentar no mesmo banco. Certos hábitos, por mais inúteis que sejam, fazem a vida valer ainda mais a pena.

— E aí, Jimmy, como foi sua manhã?

— Improdutiva. E eu acertei uma bolada na cara da Bianca, na aula de Educação Física. Mas juro que mirei no Lucas!

— Ok, sem pânico. Tem algo que eu preciso te contar sobre ela. — Seus olhos brilham daquela forma que só uma criança é capaz. Não que ele seja uma, mas sua alma é de uma. E isso não é algo para se envergonhar, muito pelo contrário. Eu daria tudo para ser como ele, sempre tão alegre e esperançoso. Como se o mundo fosse um lugar bom. Esse é o problema, algum dia ele também vai ser como todos outros. Todos são corrompidos pela realidade algum dia. Não resistem. — Bianca fez um voto de castidade e não pensa em namorar ou coisas do tipo. – Digo rápido. Dizem que se arrancar um curativo rápido, dói menos. Mas no fundo, sei que é mentira. Vai doer nele, e dói muito mais se arrancar rápido.

Jimmy fica me encarando sério, e não diz nada. Então vira o rosto para a janela, e fica assim a volta toda. Quando estamos perto de casa, ele levanta antes de mim. Eric chega bem pertinho do meu pescoço, e tenho ignorar aquele aroma que emana dele em ondas.

— Contou?

Assinto. Ele suspira, e passa a mão em seus cabelos negros.

Nós três descemos em nosso ponto, e Jimmy está andando rápido em direção à nossa casa, mas Eric o alcança, e põe a mão em seu ombro, o fazendo parar. Inclina-se sobre Jimmy, e sussurra algumas coisas. Por fim, se afasta, e então Jimmy sorri o mais singelo dos sorrisos, quase inexistente, mas eu vi. Foi real. Então volta a caminhar para casa, mas agora parece mais tranquilo.

Chego perto de Eric.

— Obrigada, seja lá o que você disse. Vai me contar?

— Talvez, algum dia. — Diz isso um sorrisinho enigmático. Apenas rolo os olhos, mas deixo um sorriso escapar.

— Então, você vem de tarde?

— Claro, Piradinha. Você sabe o quanto eu A-M-O sótãos. Cuide bem da Caolha, e ah, se você for amamentá-la, não se esquece de me chamar!

Ele sai correndo, provavelmente prevendo o tapa que eu daria se ele ainda estivesse aqui. Rolo os olhos enquanto atravesso o jardim da minha casa com a mais nova integrante da família em meus braços.

Esse Eric não muda mais.