Luzes do Oriente

As Luzes na Estrada


Yuan retribuiu as palmas da plateia com uma ligeira mesura, esticando suas saias de camponesa como uma autêntica dama. Assim que os aplausos cresceram, ele delicadamente cobriu com uma mão seu sorriso, em timidez ensaiada. O público de homens de meia-idade foi a delírio com aquele gesto de falsa inocência e a casa irrompeu em assobios. Agradecido, o artista fez nova vênia.

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Pavão da Noite foi o último a cessar os aplausos. Assistia ao espetáculo na primeira fila com a admiração de um fã de longa data, e recebeu um olhar enternecido de Yuan antes que ele recuasse aos bastidores.

Atravessadas as cortinas, a estrela da Yutao encontrou Dohko e Shion sentados frente a frente no chão. Estavam tão absortos em algum assunto pesado, que mal notaram a aproximação do cavalheiro. A mudança brusca de clima fez com que Yuan murchasse a alegria que sempre sentia ao descer do palco: a tensão emocional em que tropeçou era quase tangível - Dohko trazia uma postura acuada, abraçando joelhos e gaguejando qualquer coisa, enquanto Shion o espreitava, inquieto.

Então, num susto, Libra percebeu a presença do irmão. Não era preciso muito para adivinhar que tinha interrompido um momento íntimo e delicado.

— Por favor, finjam que não estou aqui! - Yuan adiantou-se, passando por eles com pressa. - Seguirei direto ao camarim para me trocar, procurem-me lá quando terminarem seus assuntos!

E teria continuado até seu destino, se não fosse uma mão de Dohko puxando um punhado do saiote da sua fantasia, mantendo-o parado exatamente entre os cavaleiros de Atena. Seu irmão mais velho fitava-o em súplica. Desta vez, não permitiria que fugisse.

Foi com um suspiro nervoso que Libra se pôs a explicar:

— Yuan, estamos de saída. Por favor, se puder nos acompanhar...

— Mas tão cedo? - Lebre da Lua não foi capaz de esconder surpresa e decepção com a notícia - Eu planejava um jantar para todos nós depois dessa última apresentação...

Um tanto deslocado na cena, Shion interveio de modo conciliador:

— Agradecemos sua hospitalidade, mas precisamos partir. Lembra-se do que conversamos mais cedo?

Yuan, com ar de cachorro abandonado, recorreu ao irmão:

— Não há tempo nem mesmo para um chá?

Dohko meneou a cabeça, evitando encará-lo. Era especialmente suscetível às manipulações do caçula, e sabia que, se lhe desse muita atenção, acabaria cedendo a seus caprichos. Com efeito, Yuan soltou um suspiro derrotado:

— OK, eu os levarei até a porta. - e apontou a peruca de tranças que usava. - Só peço um minuto para que eu possa me livrar disso. Quero me despedir de vocês como eu mesmo.

— Fique à vontade. Estaremos esperando aqui. - sinalizou Shion, forçando um sorriso.

Amuado, o jovem artista foi a passos rápidos até o camarim e permitiu que Dohko e Shion se vissem à sós outra vez.

— Não era você que estava cheio de pressa? - Libra alfinetou.

— Seu irmão está sendo muito gentil conosco. Se ele quer escolher a roupa com que vai nos despachar daqui, não vejo por que impedi-lo.

Dohko não tinha tanta certeza de que era só isso que Yuan pretendia. Mirou o teto vagamente.

— Você acredita em tudo que ele diz?

— Como assim? - Áries ergueu uma sobrancelha. - Eu não deveria?

— Yuan pode ser um cavalheiro, mas é muito honrado. Bem, é um pouco fofoqueiro. - Dohko estalou a língua, tentando disfarçar uma ansiedade crescente. Seus olhos algo aflitos pousaram sobre os do amigo. - Às vezes ele brinca demais com coisas sérias.

— Parece até alguém que eu conheço. - debochou o lemuriano, jogando o peso de seu corpo sobre uma perna.

Seu companheiro riu, nervoso, e procurou a melhor maneira de perguntar o que realmente lhe interessava. Até tentou parecer natural no processo, porém sem resultado. Ao ferreiro, coube uma desconfiança, como se pressentisse que ele buscava uma maneira de voltar à discussão que Yuan paralisara.

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— Shion...O que exatamente ele lhe contou sobre eu estar apaixonado?

Bingo.

— Não há por que se preocupar, ele não foi específico. - o lemuriano foi franco, apesar do desconforto que o assunto lhe causava. Falar de amores mal resolvidos era como remexer na frágil crosta de uma ferida. - A única coisa que fiquei sabendo...é que você gosta de alguém que se parece muito com um cavalheiro que trabalhava aqui.

O rosto do cavaleiro de Libra primeiro assumiu uma lividez atípica, então enrubesceu com violência até as orelhas. O defensor da sexta casa não tinha nada de tímido, mas aquele assunto em particular o desconsertava sobremaneira. Abriu a boca para defender-se, entretanto, uma exclamação vinda do camarim fechado interrompeu seu momento com Shion.

"Dohko, será que pode me ajudar com alguns botões?", Yuan choramingou alto.

— Depois eu explico! - o moreno balbuciou, já indo de encontro ao irmão.

Áries mordeu o lábio inferior. Era suspense demais para uma noite só - não bastava ter escrutinado todo o enigma acerca de Lebre da Lua e a casa de espetáculos, ainda havia pela frente um capítulo sensível sobre Dohko a ser decifrado.

O tempo arrastou-se impossivelmente no que deveriam ser minutos fugazes. Escutou os cochichos ininteligíveis dos irmãos à distância, mas não se atreveu a bisbilhotar. A sensação de que falavam sobre si, no entanto, era bastante desagradável.

Passada quase uma era, Yuan foi o primeiro a sair com a cara limpa e seu informal costume verde, seguido por um Dohko anormalmente sisudo. Somente pela maneira como se repeliram no corredor, Shion intuiu que haviam brigado pela indiscrição do artista sobre os assuntos amorosos de Libra.

— Até que posso ver alguma semelhança entre vocês dois, agora que Yuan está sem pintura no rosto. - Áries contornou, diplomático. Não eram nada parecidos, mas precisava trazer à tona um tema ameno.

— Você diz isso só porque sabe do nosso parentesco! - troçou o artista, entrando no jogo e disfarçando muito bem qualquer eventual dissabor com seu irmão. - A maioria das pessoas não percebe qualquer afinidade. Bem, uma vez, Pavão da Noite comentou que tínhamos o mesmo nariz e...

Bastou um único olhar de Dohko para que parassem de perder tempo.

— Acho que já os ocupei demais, não é mesmo? - desculpou-se Lebre da Lua, e tomou a frente com fingida tranquilidade. - Vamos, o caminho para a saída é por aqui.

Shion cutucou Dohko, pedindo sem palavras que fosse menos indelicado. Não deveria se intrometer em brigas de irmãos, contudo - cheio de brios como era - sentia-se em parte responsável pelo desentendimento. Em reposta, Libra concentrou-se nos próprios pés.

Seguiram mudos pelo corredor amplo, passando pela área privada da casa, onde era possível escutar cavalheiros com seus clientes no andar de cima. Ninguém ousou fazer comentário algum.

Quando passaram diante da escada que conectava o térreo aos pavimentos superiores, depararam-se com Rouxinol Vermelho subindo os degraus na companhia de um homem de meia idade digno de desprezo de tão alcoolizado. Enquanto o senhor bem vestido descompunha-se em gestos amplos e no cantarolar de versos vulgares de cabaré, o cavalheiro - por sua vez sóbrio e algo impaciente - permitia que ele passasse um braço por sua cintura. Ao notar o trio, Rouxinol Vermelho maquiou seu enfado com um olhar desejoso que lançou a Shion, juntamente com um beijo atirado no ar por cima do ombro.

Dohko apenas assistiu àquilo, sem coragem de repreender o cavalheiro; sabia que a noite não seria fácil para ele.

Caminharam adiante e perderam-no de vista. Outros cavalheiros passaram por eles, escoltados por clientes ou sozinhos, e fazendo com que o corredor se tornasse demasiado apertado e constrangedor em alguns momentos.

Então, finalmente escaparam pela ala dos empregados. Para alívio dos defensores de Atena, desembocaram na cozinha por onde Jin trouxera o ariano - um ponto neutro na casa. O lugar continuava uma verdadeira algazarra de serviçais papagaiando, panelas retinindo e água fervendo. Faltava pouco para deixarem a Yutao para trás.

O que não se concretizou da maneira esperada.

Ali, no meio de fumaça e cheiro de especiarias, encontraram o verdadeiro dono da casa dando ordens à criadagem. Shion identificou-o como Pavão da Noite no instante em que deitou os olhos nele: era um homem alto e magro, na casa dos quarenta anos, vestindo uma distinta jaqueta azul púrpura sobre um conjunto azul escuro. Trazia a fronte raspada, à moda da era Qing, com uma trança negra salpicada de raros fios grisalhos, mais concentrados nas têmporas. Assim como Yuan, tinha uma suavidade andrógina nos traços de seu rosto. O queixo fino, os lábios generosos e os olhos vivos entre poucas rugas sugeriam essa vaga similaridade.

Yuan bem que fez menção de sair dali antes que ele os notasse, porém, não foi mais rápido que seu mestre. Pavão da Noite avistou-os em meio à bagunça e veio saudá-los a um passo da porta de saída.

— Quanta pressa, Yuan! Por que não me avisou que tínhamos convidados? - ele dispensou-lhes um cumprimento um tanto teatral.

Dohko e Shion se viram obrigados a retribuir-lhe a vênia, não sem repararem em como o homem prestava uma análise exagerada ao lemuriano. Pavão da Noite olhava-o de cima a baixo, e não com estranheza - como habitualmente as pessoas faziam ao notar os pontos em sua testa -, mas sim como se o reconhecesse de algum lugar. Shion tentou fingir não perceber a atenção do outro e entreolhou Dohko. Libra parecia sereno na presença dele - o que o ferreiro tomou como bom sinal.

— Que prazer em revê-lo, Dohko! - Pavão da Noite exclamou, sem desgrudar os olhos do estrangeiro. - E este é...?

Todo sorrisos, Yuan adiantou-se e apresentou os desconhecidos:

— Shion, quero que conheça Zhao, o diretor da nossa companhia de teatro. Zhao, este é Shion. Ele veio da Grécia com Dohko.

— Encantado! - Pavão da Noite repetiu as reverências e voltou-se para Libra com um sorriso satisfeito. - Então você finalmente nos trouxe um namorado!

Os irmãos prenderam a respiração por um segundo, tomados de exasperação súbita.

— Querido - acudiu Yuan. - você está enganado--

— Não é nada disso! - afobou-se Dohko.

— Somos apenas amigos! - corrigiu Áries, tímido e alheio ao real motivo da confusão.

Ocorre que Pavão da Noite era um homem perspicaz - e mais íntimo dos problemas amorosos de Dohko que o próprio Shion -, o suficiente para entender num breve raciocínio o que o lemuriano havia deixado passar despercebido a vida inteira.

— Que pena! Fazem um casal simpático. - o companheiro de Yuan não caçoava, mas tinha um sorriso estranho ao dizer aquilo. Antes que Dohko pudesse saltar em seu pescoço, mudou de assunto. - Aonde iam? Tenho certeza de que não encontrarão diversões maiores lá fora.

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— Shion e Dohko vão embora. - Yuan fez muxoxo. - Já tentei dissuadi-los. Ao que aparenta, seus compromissos na Grécia são muito mais apelativos do que nossos espetáculos.

Dohko rodou os olhos diante do drama de seu caçula e Pavão da Noite riu.

— Por favor, voltem em outro momento para que possamos conversar como se deve!

— Algum dia, senhor. Obrigado pela hospitalidade! - agradeceu Shion, surpreendendo Dohko e Yuan por sua sinceridade.

Em seguida, despediram-se alvoroçados e Pavão da Noite retornou ao comando de seus serviçais. Sem mais obstáculos, a trupe atravessou a porta final que levava à varanda nos fundos da casa. No entanto, nem fora da Yutao se viram livres do burburinho - homens e mulheres peregrinavam às beiras do canal em busca de divertimento, embalados em canções da noite. Era madrugada e Huqiu fervilhava.

O trio aproximou-se do pequeno cais sobre as águas do canal em passos cada vez menos ansiosos. Durante o curto percurso, Shion foi inundado por um misto de alívio e angústia diante da possibilidade de nunca mais ver Yuan. Se por um lado, os melindres do artista o incomodavam, por outro, sua extravagância incitava curiosidade e seu carisma tornava impossível não sentir sua ausência. Somava-se àquela pontada de angústia o medo de perder a oportunidade de desbravar os segredos de Dohko. Ao deixar Yuan, perderia a única ajuda existente para terminar seu complicado quebra-cabeças.

Subiram no deque e encontraram o barco de Jin boiando mansamente, esperando apenas as últimas despedidas para levar embora os visitantes. Shion notou que Jin havia esquecido nele a mochila com a armadura de Áries - ou não conseguira tirá-la dali, o que era mais provável. A lembrança trouxe de súbito um desejo de despedir-se do garoto, mas não sabia onde ele havia se metido; provavelmente estava atribulado com as atividades na casa de espetáculos.

Enquanto isso, os irmãos revezaram-se em suspiros pesarosos. Todo a desavença pelos desencontros daquela noite ajoelhava-se diante do amor fraterno e das saudades antecipadas, soberanas entre eles.

— É aqui que nos separamos. - declarou Dohko, melancólico. - Irmão, me desculpe pelos inconvenientes e...

Yuan trazia os olhos brilhantes.

— Não foram inconvenientes. - a voz dele falhou. - Gostei muito de hoje, de conhecer Shion... - e sorriu entristecido para Áries. - Apenas sinto muito que precisem partir. Quase não pudemos ficar juntos, Dohko!

— É, não tivemos sorte este ano. - lamentou-se Libra, forjando também um sorriso. - Mas me esforçarei para compensar nas próximas férias! Você vai ter que me implorar para voltar para a Grécia!

— Eu duvido muito. Mal posso esperar!

Yuan abraçou Dohko com entusiasmo e longamente, numa cena que encheu o peito de Shion de ternura.

— Façam boa viagem! Irmão, você me escreverá quando chegar? - pediu Lebre da Lua, e então tomou as mãos de Áries nas suas para fazer uma última gracinha. - Você também, Shion! Por favor, me escreva!

O lemuriano estava tão contente em ver que os irmãos haviam se reconciliado, que ignorou a zombaria.

— Cuide-se, Yuan. - respondeu, desejando aquilo de todo coração.

— Vocês também, cuidem de si mesmos e um do outro. - os olhos cheios de saudades do artista passearam pelos dois, pousando em seu irmão mais velho. Foi para ele que dirigiu uma última recomendação. - Confie no destino. Espero você no próximo verão.

.

Dohko acabou descartando a travessia de barco - calculou ser mais oportuno seguir por outro caminho ermo, onde pudessem usar precocemente a velocidade da luz. As lanternas coloridas de Huqiu ficaram para trás, assim como Yuan na margem do canal e seus acenos esperançosos por um reencontro.

Os dois cavaleiros de Atena avançaram velozes até as imediações da floresta na periferia de Suzhou, que minguava com o passar dos anos. Dada a última oportunidade antes de se lançarem à velocidade da luz rumo ao Santuário, Dohko interrompeu a jornada com suas necessidades.

Pediu licença, afastou-se mata adentro e aprumou-se, também aproveitando aqueles momentos para respirar longe do silêncio massacrante que havia dominado o espaço entre Shion e ele. Seu amigo evitava trazer quaisquer assuntos à tona pelo que acreditava ser uma mistura de respeito e ressentimento, enquanto Libra sabia que ele tinha ganas de reclamar as explicações pendentes. O tigre, por sua vez, matutava sobre a melhor e mais discreta maneira de suavizar o tema, já que se esquivar dele para sempre não era uma opção viável.

Ao que desfez os laços da calça, distraído, olhou para baixo. Qual não foi sua surpresa ao ver, na relva alta, um coelho malhado o encarando com a cabeça inclinada e o nariz inquieto. O animal piscou seus olhos vermelhos e então seguiu seu caminho, correndo por entre suas pernas e através da noite. Dohko tropeçou ao tentar virar-se e, estatelado, acompanhou o trajeto do coelho até que ele sumisse.

Teria sido uma cena ridícula para qualquer um, entretanto, para Dohko, foi um sinal divino. O coelho, mensageiro das boas novas, surgia num momento de angústia e dúvida.

Tu-Er-Shen reaparecera aos homens no dia após seu assassinato na forma de um coelho jovem, para anunciar sua deificação. Perante o oficial que amara - e que, ironicamente, o havia condenado por sua escandalosa afeição - apareceu envolto em halo bondoso e divino. Assegurou que sua morte fora injusta e que a partir de então trabalharia para proteger todos os que se apaixonassem por seus iguais em gênero.*

O auspício de cruzar o caminho de um coelho, na situação e fé de Dohko, era muito claro. Libra soube o que devia fazer no instante seguinte.

Só precisava iluminar a mente e traçar uma estratégia.

.

Dois riscos dourados cortaram as montanhas de leste a oeste, misturando-se por vezes com as estrelas cadentes no léu. À custa de uma energia sobre-humana, atravessaram milhares de quilômetros e fusos horários no espaço de minutos. Retrocederam várias horas e chegaram ao Peloponeso ainda no pôr do sol.

Era como se a noite em Suzhou nunca tivesse existido. Todavia, ela existira - o ressabio entre Libra e Áries era o atestado maior dos aborrecimentos que viveram no oriente.

Teriam permanecido em quietude a viagem toda, se há alguns quilômetros do Santuário Dohko não sugerisse outra pausa. À esta altura, situavam-se nos campos de ruínas que se avizinhavam de Rodório, banhados de um tom alaranjado que os tornava mais interessantes. Shion logo estranhou a escolha do lugar, praticamente às portas do Santuário. Imaginou ser algo muito urgente e acatou o pedido.

Caminharam lado a lado até um jardim selvagem enraizado na arquitetura decadente de colunas amputadas e tombadas aqui e acolá. Não era uma paisagem de todo cativante - aquela havia sido a primeira edificação oficial do Santuário, devastada após uma sucessão de guerras santas. No passado, fora uma espécie de memorial aos cavaleiros capitulados, mas, com o avançar dos séculos e do esquecimento desses guerreiros, o espaço para orações foi abandonado e tomado por uma relva de flores exuberantes. Na atualidade, era um refúgio para as travessuras dos aprendizes e as reflexões dos cavaleiros mais velhos.

Shion alisou nervosamente as pétalas de uma orquídea que crescia em torno de uma coluna, enquanto Dohko se afastava um pouco de si, hesitante e mirando o sol que mergulhava nas rochas. Ele inspirou fundo, buscando mais coragem do que ar.

— Eu quero conversar, Shion...sobre o assunto de antes...

Áries soltou um suspiro trêmulo. A verdade é que pensara exaustivamente sobre tal e chegara a uma conclusão particular:

— Eu decidi que não vou te forçar a falar nada. Não é justo. Sem brigas, sem intimidações...Só me conte o que realmente quiser me contar.

O que Shion não sabia é que durante toda a viagem Dohko havia se preparado justamente para fazê-lo da maneira mais aberta e completa possível. Libra era cronicamente indeciso e contemplativo até o ponto crítico em que alcançava uma definição. A partir desse momento, agarrava-se com unhas e dentes à sua ideia, ainda que ela fosse considerada um suicídio por muitos. E apesar de conhecer bem seu amigo, Áries jamais poderia prever o tamanho da onda prestes a arrebentar sobre si.

— Você quer saber tudo, eu vou contar tudo. - anunciou o cavaleiro da sétima casa, sem rodeios. - Sobre a pessoa quem eu amo...Diga-me, Yuan descreveu o tal cavalheiro com quem andei?

Quê?

— O cavalheiro por quem me interessei e que se parece com a pessoa que eu amo. - insistiu Dohko, com uma determinação que pareceu estranha aos olhos de Shion. Não entendia aonde o outro queria chegar; ou entendia e não se sentia totalmente seguro em adentrar território tão delicado.

— Você tem certeza de que quer falar sobre isso agora? - o lemuriano despedaçava a flor sem perceber, sentindo as palmas das mãos suadas.

— Agora é melhor que depois, suponho.

Shion franziu a testa.

— Bem...Yuan o descreveu "como um anjo": cabelos claros, olhos cor de avelã e...Ei, você não precisa fazer isso. De verdade. - Áries recuaria de bom grado se o outro sinalizasse desistência.

Esperou ansiosamente que Dohko voltasse atrás, como ele de quando em quando fazia diante de decisões espinhosas. Viu o pomo de Adão dele dançando nas alturas do pescoço e afinal a resposta veio reticente.

— Sabe, não deu certo porque ele não tinha marcas de nascença na testa. - e tocou a fronte de Shion com o indicador.

Um olhar comprido, tímido. Silêncio. Mais silêncio.

Shion soltou a respiração - que nem lembrava haver interrompido - e deixou que seu corpo inteiro formigasse de surpresa, indignação, alegria ou o que quer que prevalecesse em seu coração no momento. Recuou dois passos, embasbacado, e sentou-se sobre uma coluna caída.

— Dohko, isso é possível? - mal acreditava em tamanha reviravolta. Não era tolo, nem inocente, mas jamais teria apostado que o grande motivador de tantas repressões e segredos fosse si próprio.

Já Libra estava às vésperas de explodir de tanta ansiedade; sentia a pulsação até nos ouvidos. Lutava contra uma maré de medo e arrependimento que ameaçava arrastar sua coragem para longe, muito embora compreendesse que era hora de trazer suas verdades escondidas à luz. Precisava ser sincero, devia isso ao seu melhor amigo. Mesmo que Shion não o quisesse, não podia viver a enganá-lo sobre a natureza dos sentimentos que alimentava por ele.

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— Eu pensava ser impossível também. Mas é a realidade. Você é a pessoa mais incrível deste mundo, Shion!— Dohko confessava com um ardor inesperado. Estava ali, estampada por toda parte dele, uma paixão inequívoca e torturada. Todo o amor que Áries desconhecia, mas desejava. - Acho que o amo desde sempre, me desculpe por isso!

O cavaleiro da sétima casa quis aproximar-se, no entanto, o receio o impediu. Por sua vez, Shion, mergulhado em lusco-fusco, abriu um sorriso de pura felicidade. Acabou por contagiar seu amado e inundá-lo de bem-vinda esperança.

— Por que está se desculpando? - disse com vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. - Só faz sentido se for pelo tempo que perdemos...

Então, Dohko ouviu Shion finalmente confessar sua paixão antiga e retraída por ele, o que os levou a rir da ignorância compartilhada. Os dois eram um misto de assombro e gratidão.

Algo tímidos, sentaram-se lado a lado na coluna e renderam-se ao primeiro de vários beijos. A mais doce euforia os ritmava. Adoraram-se até que a noite viesse, e desta vez da maneira certa.

As obrigações dos cavaleiros se apequenavam momentaneamente diante da grandeza de seus sentimentos, porém, não seriam esquecidas. Retornaram ao Santuário cheios de planos sobre o futuro - logo eles, cavaleiros de Atena.

Já subindo as primeiras escadarias das doze casas, Dohko rezava em voz baixa, agradecendo às benção recebidas, e Shion divagava.

O quão cego e inseguro fora? O bastante para acreditar que a bondade e o carinho de Libra para consigo se justificavam por amizade especial - muito especial, contudo, apenas amizade. Também não ligara as pistas sobre a aparência do amado de Dohko com a sua figura; sabia ser bonito, mas daí a ser comparado com um anjo julgava um exagero. Todavia, como envaideceu-se ao descobrir que ele pensava em si de tal maneira! Dohko, a pessoa mais incrível do mundo, o punha em igual pedestal. Era como sonhar acordado.

O fato de ele nunca ter empreitado avanços consigo no sentido amoroso espelhava-se nos seus próprios medos: importavam-se imensamente um com o outro para colocar tudo que tinham aos escombros.

De repente, o caminho até o ponto de convergência fez sentido para Shion, como numa sequência de dominós em queda. Até mesmo os desencontros e os percalços se mostraram necessários para aquele desfecho.

Via com clareza a tangência entre destino e acaso. Eram cobrados centenas de renascimentos para que duas pessoas se sentassem no mesmo barco e milhares de eras para levá-las a partilhar o mesmo travesseiro.

E talvez um empurrão de uma terceira pessoa. Precisava agradecer a Yuan a qualquer hora.

A partir daquele instante tinha todo o tempo e o universo a seu favor.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.