“Talvez eu até me lembre do dia em que nasci, mesmo que esteja tudo ainda confuso. Mas eu lembro do dia em que senti o calor do sol pela primeira vez tocando meus pelos, claro que não era tão gostoso quanto ficar aninhado com meus irmãos perto da mamãe.

Eu ouvia miados finos e decidia acompanhar, era tudo borrado e não dava para abrir os olhos. Mesmo assim a gente reconhecia os doces miados de nossa mãe quando ela nos acolhia enquanto procurávamos desesperados por leite.

E quando eu abri os olhos pela primeira vez foi que eu me encantei pela gata mais linda desse mundo. Nossa mãe era toda branca, com olhos grandes e claros e seu pelo era muito macio. Talvez ela foi a melhor mãe do mundo.

Percebi que vivíamos em um beco, cheio de latas de lixos e caixas de papelão... era como um parque de diversão completo.

E meus irmãos, como poderia me esquecer, eram tão bagunceiros como eu. Éramos em quatro e todos nós éramos manchados em preto e branco, olhos claros iguais os da mamãe, apenas a minha única irmã que era quase branca inteira e tinha o focinho rosado. E todas as manhãs corríamos pelo beco, caçando bichinhos e lutando entre nós enquanto nossa mãe saia para buscar comida. E ela sempre voltava correndo e ofegante, com alguma coisa na boca que ela sempre dividia a maior parte com a gente e insistia em ficar com a menor por parte. Ela dizia que nós precisamos ficar fortes para a vida lá fora e que não poderíamos viver naquele beco pelo resto de nossas sete vidas.

Até que éramos felizes, porém eu devo ter sido o único a perceber a tristeza que se guardava nos olhos da minha mãe. Principalmente quando ela nos contava as historias sobre nosso pai, todas as noite antes de irmos dormir. Contava como ele era corajoso e bom para todos os gatos de rua que encontrava. Ela dizia que era um herói.

Em uma noite fria e que garoava um pouco, eu acordei e sai do emaranhado de gatos que fazíamos para dormir e vi minha mãe parada sobre um muro olhando para o nada. A luz do poste batia contra os pelos molhados dela e isso fazia ela parecer uma estatua.

- Mãe?

- Sim querido... – ela estremeceu e me olhou assustada.

- Você está triste? – Eu subi no muro com dificuldade e parei ao seu lado, encolhendo minha cabeça no peito dela.

- E como eu posso mentir para você meu amor? – Ela sorriu bem rápido e depois perdeu aquele brilho. – Vocês estão crescendo rápido e você já o mais responsável de todos. Acho que já pode saber... – Ela me afastou um pouco com a pata e sentou-se virada de frente pra mim. – Muitas coisas aconteceram antes de vocês nascerem e a mamãe já esta ficando velha, isso significa que nossa “vida feliz” não irá durar para sempre meu bebe.

- O que quer dizer com isso mamãe? – Era horrível ver ela daquele jeito.

- Significa que as coisas acabam meu amor. Seres vivos vem e vão o tempo todo, isso é lei e infelizmente não podemos mudar. E por mais que doa, você e seus irmãos terão que ser fortes para sobreviver nesse mundo... sem a mamãe, entendeu?

- Mas mãe... – Eu levantei e fui até seu colo mais uma vez. – Você disse que seriamos felizes e que o papai iria voltar...

- Seu pai não vai mais voltar meu filho. Eu menti para poupar vocês da dor, pois ele foi morto logo antes de vocês terem nascido.

- Morto? – Lembro-me que meu coração queria sair pela boca ao ouvir aquilo.

- Sim. É que é uma historia tão longa meu amor, irei resumir para você poder entender. – Ela respirou bem fundo. – Eu era uma gata caseira, eu vivia com os humanos, mas nunca fui feliz, pois eu não podia ser livre. Eu era tratada como uma rainha, banhos aromáticos, veterinários caros e todo o luxo que uma gata poderia querer. Porém que nunca recebia carinho e era exibida como um objeto de valor.

Então um dia eu fugi de casa, passei a viver perdida nas ruas e estava em decadência por não saber me virar sozinha. Até que conheci o seu pai. Ele era o gato mais lindo que eu já tinha visto, pelos negros e olhos verdes escuro, justo e completamente doce.

Ficamos juntos e ele sempre foi fiel a mim e ao nosso bando, nunca me trocou por qualquer outra gata, mesmo quando eu estava prenha de vocês... – Ela se levantou e fez sinal para que eu a seguisse. – Ele estava muito feliz. Mas... Meus antigos donos encontraram nosso bando e mandou alguns “monstros” matarem todos nós a pauladas. Eles tinham raiva no coração meu pequeno, um ódio cruel e sem motivo para nos destruir. Lutavam apenas por um propósito sujo, o qual eles chamam de “dinheiro”. E o seu corajoso pai se sacrificou para nos proteger.

- Mamãe...

- Deixe-me terminar. – Ela passou a sussurrar por estarmos próximo a caixa onde meus irmãos dormiam. – Seu pai nos escondeu dentro de um carro velho e correu em direção aos homens para atrai-los para outro lugar. E ai o pior aconteceu...

- Eu... eu não sabia mam...

- Bom, você já sabe o final dessa historia e sabe que eu estou doente a cada dia mais. E eu só quero uma coisa de você meu amor. Proteja seus irmãos quando eu não estiver mais aqui... por favor? – Ela lambeu a ponta do meu focinho e passou uma pata sobre mim, me apertando num abraço.

- Isso será uma promessa mamãe. Serei um gato forte e corajoso, assim como papai foi.

E eu realmente estava decidido a ser como meu grande pai. Mas algo ruim em meu peito tinha nascido naquela noite e mesmo sendo um filhote eu já havia aprendido o que é sentir ódio. “