Linhas Borradas

O mais pecaminoso dos Paraísos


Clove

Se tivesse uns centímetros a mais, essa imagem seria intimidadora. Agora parecidos com uma cereja, meus lábios se contorcem ao me observar. Cabelos ondulados, esse vestido preto apenas parado nas minhas coxas, eu poderia matar alguns sem sujar minhas mãos.

– Não me deixe ver a marca de batom na boca do Ludwig, sardenta – isso é Enobaria, acabando de ajeitar meus cabelos. Tem sido assim todo ano. Mas agora, a equipe de preparação clandestina da Academia já atuou em mim, me corrigindo para que você ainda não possa ver o brilho perfeito que só a Capital pode conceder. Se isso parece aceitável aqui, vão jogar reboco na minha cara lá.

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– Você não vai – respondo, cheia desse assunto. Desvio e me sento na beirada da cama que chamo de minha.

Enobaria checa as presas mais uma vez – ela jamais poderia se dar ao luxo de deixá-los manchados com o mesmo batom escarlate que pintou minha boca – e caminha para a porta.

– Eu vou esse ano com vocês.

– Legal – resmungo. Depois de um tempo de silêncio, me viro pra ela e dou de ombros pra me justificar, porque ela sabe que a equipe de preparação sugou a minha civilidade assim que começou a falar comigo. Depois de me encarar longamente por mais um tempo sacudindo a cabeça, finalmente desce as escadas.

Não ousando desabotoar os sapatos já que não poderia repô-los, me deito e encaro o teto esperando encontrar um pouco de bom humor lá mesmo. E eu até poderia, se uma voz irritante não estivesse reverberando abaixo da minha janela.

Erguendo os olhos para a janela, vejo Enobaria abrindo a porta e debochada como é, o deixando entrar sorrindo e sacudindo a cabeça. Como se não houvesse mais jeito de recuperar o jogo. Volto a me deitar.

– Clove, sua vadia.

– Grita de novo no meu ouvido e não vai ser capaz de sequer sussurrar – rujo, de olhos fechados. Se Cato voltou pra me fazer desistir, eu não estou disposta a ouvir. Não estou disposta a dizer que sinto muito ou a ver seus olhos examinando cada pequena parte do meu corpo tocada pela equipe.

Ele ri. Como sempre.

– Ah, eu posso ver essa imagem. Você. Cortando minha língua.

– O que é que você quer, Ludwig?, eu pensei que já tivesse te agradecido. Não posso retribuir os seus enormes favores no momento.

– Até que você pode.

Me levanto agora, abrindo os olhos para encontrá-lo exatamente como sabia que iria. Por baixo do terno, sua camisa um pouco aberta sugere coisas que seu topete bem cuidado não pode desmentir. Sentado à minha mesa. Olhando fixamente em minha direção, mas não pra mim.

– Não seja ridículo, Cat Cato. O que você realmente quer? Não sairia da sua casa pra vim aqui se não quisesse algo de verdade.

– Não quero nada em particular. Só vim te ver.

– Aposto que sim – rio um pouco, me levantando preguiçosamente e procurando algo interessante pra fazer, no intento de desviar seu olhar ridiculamente persistente de mim. Paro nas facas presas nos alvos. – Você treinou hoje?

Cato me olha confusamente.

– Claro que não, eu acabei de acordar. Você treinou?

– Eu não tive tempo. Aquelas abelhas apareceram assim que cheguei.

– Eles foram um pouco inconvenientes.

Durante a pausa, pego uma lâmina a esmo e a lanço.

– Você praticou outras coisas, não é, Fuhrman?

– Por quê?

– Porque você deveria ter feito isso, imbecil. Se tirarem as facas, você...

– Ninguém tira as facas. Não há Jogos Vorazes sem facas, imbecil – me viro pra ele, que voltou a rir. - E como se isso fosse da sua conta, eu pratiquei.

Eu não quero mais jogar facas. Mas eu não quero me sentar e encarar Cato. Paro na estante, analisando cada uma delas com o dedo, alisando-as como se amansam animais. Os olhos dele estão em minhas costas.

Aquilo que Cato fez ontem - aquilo que ele vem tentando a fazer há muito tempo e quase deu certo ontem -. É perigoso. De um jeito que eu não sei lidar. De um jeito que não teria mais volta. Esse é um jogo antigo e se você segura coisas por muito tempo e abre só uma pequena brecha, a pressão então te jogaria pra trás.

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Isso parece insensatez, mas eu não vou me envolver mais com o Ludwig. Não teria volta.

– Algum problema? – pergunto tranquilamente me voltando para ele, cansada de senti-lo me analisando.

– Você é maravilhosa se fingindo de idiota. Mas para.

– Não fique irritado só porque eu faço isso melhor que você – digo, sorrindo. – Já tomou café?

Cato vai ficar aqui até a hora da Colheita. Seus pais estão doentes de obsessão agora mesmo, certamente pondo seus irmãos em filas militares para os últimos gritos. Ele não ficaria lá.

Observo sua expressão mudar antes de me responder. A analiso cautelosamente. Mas não é ódio. É um pouco pior. Dor?

– Cato? – então minha voz já está baixa. Quando ele olha pra mim, sorrio. – Está com fome?

– Não. Eu já comi – ele passa mais um tempo como se tentasse se livrar do que havia pensado antes. Parece conseguir, porque logo está sorrindo de novo. – Mas obrigado, querida.

– Ah, por nada. Disponha, querido.

Então nós só ficamos aqui no meu quarto, às vezes calados, às vezes falando sobre nada. Às vezes brigando. Até o gongo soar.

Eu estou de pé no segundo seguinte, mas me desequilibro e estou prestes a cair sentada novamente. Ludwig me segura.

– Clove. O que é que você tem? – ele pergunta agarrado ao meu braço, eu diria que rigidamente.

– Tenho saltos nos pés.

Por alguma razão, nos encaramos longamente antes de começarmos a andar, meu rosto curvado para visualizá-lo. Então ele ri. Eu sorrio e sacudo a cabeça.

– Pronta, Clovely?

– Eu estou pronta desde que disse sim para o Brutus naquele dia.

– Aposto que está – Cato fala, erguendo uma sobrancelha. – Primeiro as damas.

Ele é ridículo, mas vou na frente. Enobaria está parada no saguão.

– Vou na frente. Não demorem.

– Não se atreva a encostar em mim – sibilo quando ela fecha a porta, descendo as escadas apoiada ao corrimão. Ele só ri, então passo os olhos pela casa e me despeço. Só um “até breve”.

Assim que saio, ouço os gritos fervorosos das pessoas. Todas elas, clamando os Jogos. Nós não contamos as aberrações; todos aqui queriam ser eu, sentir o gosto da glória, ser recebida de volta com orgulho em forma de aplauso.

Aspiro longamente o ar. Dias de Colheita me fazem bem.

Cato é orgulhoso como sempre, mas hoje está calado. Ele vai só receber os olhares hipnotizados das garotas e sentir a honra.

Eu estou me sentindo tão bem, é como se Aaron nunca mais fosse poder me encontrar. As pessoas estão surpresas com a minha aparência, os futuros tributos vão ofegar com a ameaça. Eu nasci pra isso.

Assim que me inscrevo, virada para me encaminhar para a minha fileira, Ludwig me acha. Ele agarra meu braço e me puxa para um canto, se projeta sobre mim como se não quisesse que ninguém nos visse.

– Não se esqueça do que combinamos. Você fica perto o tempo todo.

Ele não é o líder. Não há nada que o determine como tal, então ele deveria parar de falar comigo desse jeito. Eu estou prestes a lhe dizer tudo isso quando Ludwig faz a maior estupidez de todos os tempos. Sério, quase dignamente, ele me beija.

Isso é rápido, curto, é quase só um tocar de lábios, mas eu sei que Cato acaba de tentar destruir minha vida.

– Eu não tolero desperdícios, Clovely – fala, sorrindo e se afastando.

Eu estou com raiva agora. Esbarrando em cada idiota parado na minha frente, encontro meu lugar e forço as outras a me deixarem na ponta.

O ritual desnecessário acontece e minha irritação só cresce. Esses olhares enciumados pelo motivo errado, a provocação clara do motivo sorrindo diretamente pra mim à minha direita. Com satisfação inicio uma conversa sussurrada com Dafne.

– Onde é que vocês estavam?

– Na fila. A gente se atrasou – ninguém vai saber o porquê. Vou fazer com que quem saiba esqueça.

– Vocês são loucos. Vocês não vão conseguir vencer.

Viro meu rosto. Não há nada que vá me fazer desistir. Vou vencer o Ludwig de uma vez. Ele vai pagar.

– Clove. Pelo amor de Deus, o Cato não vai te matar – sua irmã continua falando ardorosamente, quase uma súplica. – Você sabe que ele não pode. E você também não.

– Nós somos hábeis. Eu não tenho outra opção – respondo a contra gosto, sacudindo a cabeça.

– Você tem. Espera com a gente. Você pode morar lá em casa, o ano que vem é seu.

– Não. Sinto muito – sussurro ainda mais baixo.

– Por favor, Clove. Vocês dois vão morrer naquele lugar!

Me volto pra ela agora, perplexa com suas palavras. A representante da Capital, um ser de saia de balão e com um laço do tamanho da cabeça nos cabelos, já está se apresentando. É quase a minha hora.

– Vocês não vão voltar vivos se forem juntos.

Eu observo um movimento da sua mão. Buscando meu braço.

– Não se atreva.

– Algum voluntário?

– Por favor, Clove. Espera. Vai ficar tudo bem.

– Você está ficando louca, porra? Me larga.

Dafne tem meu braço preso discretamente, sua força impossível me machucando. A mão da mulher está pairando sobre os papéis. Cato me encara, Enobaria me procura com os olhos, a multidão me observa.

Mas eu ainda tenho tempo. Tento me desvencilhar.

– Por favor – ela clama.

– Não!

– Clove Fuhrman!

Eu sou a tributo sorteada. Do jeito errado, estou nos Jogos Vorazes.

Dafne desaba ao meu lado. Finalmente me solta. Abalada com os acontecimentos recentes, mal me lembro de sorrir enquanto caminho para o palco. Minha face deve se parecer mais com uma espécie de “eu avisei”.

Melhoro minha expressão de perigo quando encontro Enobaria.

– Mas que senhorita deslumbrante! Vamos aplaudir a sua tributo nos Jogos Vorazes, Distrito 2! Clove Fuhrman!

Os aplausos são ferozes. A multidão é doente e tão febril. Eu poderia ficar aqui pra sempre. Dafne me assustou. Mas o caminho estava decidido. E ele brilha tanto agora.

– Um rapaz forte e corajoso para ser o parceiro de Clove, agora. Algum voluntário?

Cato sorri pra mim ainda mais agora. O observando de longe, não posso evitar sorrir de volta. Se esse é o caminho da ruína, eu não sabia que ele parecia tão bom.

– Eu me voluntario!

Sorrindo para as câmeras, para a multidão, para mim, Cato chega até o palco.

– Eu aposto que essa vai ser uma equipe e tanto – a mulher guincha, certamente se sentindo atraída por Cato. – Qual é o seu nome, querido?

– Cato. Cato Ludwig.

– Ah, mas essa edição vai ficar na memória! Distrito 2, lhe apresento os seus tributos: Clove Fuhrman e Cato Ludwig!

Meu braço é erguido por ela, os flashes iluminam meu rosto. A multidão ruge meu nome doentiamente. Deus, isso tudo é doentiamente bom. Cato parece três vezes mais atraente agora e eu estou anestesiada com a beleza impossível, rindo enquanto acaricio sua mão enorme.

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Há algo errado nesses sorrisos, nos olhares, nas pessoas, em nós. Essa é a estrada pra ruína. E andar sobre ela é a melhor sensação da minha vida.