Liberta-me

A cura para todos os males


Desde aquele dia eu disfarço em uma pele que tenho usado
com pelo menos três mentes individuais separadas
(...)
É apenas o meu nome
É apenas a minha pele
— George Ezra

Simon se orgulhava de ser um jovem bem sucedido e que entendia das coisas, que sempre tinha noção de tudo que estava acontecendo ao seu redor. Contudo, naquele momento, vendo Isabelle segurando as rédeas dos cavalos, ele não estava entendendo nada. Mal tinha chegado à mansão e fora abordado por um pequeno comitê de boas-vindas formado por Maia, Maxwell, Isabelle, Hunter e Daylighter. Imediatamente ficou preocupado, pensando nos piores cenários possíveis que poderiam ter acontecido em sua ausência, não seria a primeira vez que tudo daria errado quando não estivesse olhando (1719, viagem à Prússia, Maia no comando... foi um período agitado no ano).

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Porém sua preocupação se esvaiu quando procurou algum sinal de estresse nos rostos de Maia e de Isabelle, encontrando apenas uma saudade genuína e talvez alguns traços de travessura nos sorrisos das mesmas. Não era como se ele não confiasse em Maia e Isabelle, mas... ele não confiava em Maia e Isabelle.

Bastou a ele trocar um único olhar com seu segurança e melhor amigo para saber que Jordan pensava o mesmo que ele. Elas tinham armado algo.

ㅡ Isabelle ㅡ ele começou ㅡ O que está acontecendo aqui?

Isabelle sorriu marotamente, deixando ainda mais claro que ela estava tramando alguma coisa.

ㅡ Nós, Lorde Montgomery, iremos dar um passeio.

Simon franziu o cenho, estranhando o título. Ele o tinha há três anos quatro, ele se corrigiu ainda assim, ele não conseguia se acostumar com as pessoas o chamando assim. Principalmente Isabelle, que finalmente estava confortável o suficiente para considerá-lo um amigo próximo.

ㅡ Um passeio? ㅡ ele repetiu.

Isabelle revirou os olhos, ato que Simon achou adorável. Maia, ao lado de Isabelle, bateu na testa com a mão.

ㅡ Apenas suba, Simon ㅡ ela apontou para Daylighter, que relinchou feliz em resposta.

Simon cumprimentou rapidamente todos da pequena comitiva, todos parecendo muito animados para se livrar dele e montou em seu cavalo, sendo seguido por Isabelle, que montou com facilidade em Hunter.

ㅡ Para onde vamos? ㅡ ele perguntou, segurando as rédeas.

ㅡ Para começar, vamos apostar uma corrida.ㅡ a informação veio acompanhada de um sorriso radiante.

E sem mais avisos ela esporou Hunter nas costelas e o cavalo partiu em disparada pela propriedade, deixando apenas rastro de folhas e as pessoas levemente assustadas. Simon não conseguiu fazer nada além de rir abertamente e fazer o mesmo com Daylighter, que não tardou a emparelhar com Isabelle.

Ela olhou para o lado rapidamente, vendo que poderia ser ultrapassada, e acelerou com Hunter, deixando Simon para trás apenas com o eco de sua risada.

Ok, estava na hora de Simon levar aquela competição sério.

Ele acelerou com Daylighter, sentindo o vento bater com mais força contra seu rosto. Ele se compadeceu por Isabelle e entendeu porque ela sempre passeava com Hunter com os cabelos presos.

Isabelle virou, saindo da estrada, e Simon entendeu na hora para onde ela queria ir. Ele não sabia como ela conhecia aquele lugar, afinal nem os moradores do vilarejo pareciam conhecê-lo, porém ele não ficou tão surpreso assim, já que Isabelle passava dias apenas passeando com Hunter pelos cantos da propriedade.

Já que ele finalmente sabia qual era o destino, ele avançou mais, emparelhando novamente com Isabelle e a ultrapassando finalmente. Ele olhou para trás rápido apenas para ver que ela parecia irritada. Ele apenas riu, ela era competitiva demais e aquilo era só mais um dos detalhes que ele adorava nela.

Eles passaram por árvores mais fechadas e por uma trilha quase esquecida no meio do mato. Quando Simon tinha uns dezessete anos ele tinha se perdido por ali com Daylighter e demorou até que achasse o caminho de volta. Ele se lembrava de que quando voltou, Rebecca e Raphael tinham quase entrado em pânico com medo de que algo tivesse acontecido com ele.

Distraído em pensamentos, ele acabou dando espaço para que Isabelle o alcançasse, então quando eles finalmente avistaram o rio, eles chegaram juntos. Era uma espécie de clareira com a grama selvagem e cercada por árvores que camuflavam o lugar; havia uma brisa fresca que beijava delicadamente o rosto deles, aliviando o calor que a corrida tinha trazido. A brisa vinha de uma queda d'água de menos de um metro e meio que formava um pequeno lago de água rodeado de pedras e flores selvagens.

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ㅡ Ganhei! ㅡ ela disse com um sorriso triunfante no rosto, descendo de Hunter, que parecia orgulhoso.

ㅡ Nada disso, eu tenho certeza de que foi um empate ㅡ ele a imitou ㅡ Nós chegamos juntos, Isabelle.

Ela o ignorou, desfazendo a trança que prendia seus cabelos. Simon achava os cabelos de Isabelle lindos. Eles eram negros, volumosos, cheios de vida e, mais que isso, eram muito cheirosos. Ele conseguia sentir o cheiro de longe.

E Isabelle ficava linda com os cabelos soltos. Ele se recordava dela no baile de apresentação, os cabelos presos em um penteado elaborado demais que parecia extremamente desconfortável e que não fazia jus ao resto de Isabelle.

ㅡ Vou deixar você achar que foi isso que aconteceu ㅡ ela zombou, jogando os cabelos para trás.

Ela se virou, a saia florida que usava rodando levemente com o ato. Foi aí que ele viu o que estava acontecendo ali. O pano vermelho no chão a beira do rio tinha por cima uma variedade de pães, frutas, um bolo simples e alguns sucos bem dispostos por toda sua extensão.

Um piquenique. Isabelle tinha feito um piquenique.

Simon não conseguia se lembrar qual a última vez que tinha estado em um piquenique. Ele apenas riu incrédulo.

ㅡ Isabelle, o que é tudo isso?

ㅡ Apenas algo para celebrarmos sua chegada. Eu mesma fiz os pães e o bolo e arrumei tudo antes de sua chegada mais cedo. Confesso que estava com medo de algum animal comer algo, mas tudo está exatamente como deixei. ㅡ Isabelle o encarou com seus olhos negros e sorriu delicadamente, parecia bem mais nova quando o olhava assim e Simon se perguntou se como alguém poderia algum dia ter negado algo a ela. ㅡ Gostou?

Simon não sabia o que dizer. Uma parte dele quis perguntar por que os outros não estavam participando já que era algo para sua chegada, por que apenas os dois estavam ali. A outra parte, a parte dominante para ser sincero, não sabia fazer nada além de ficar extremamente grato com Isabelle.

Simon odiava ter que passar o aniversário em sua propriedade. Todos lá sabiam que ele detestava comemorar e era um dia em que todos ficavam pisando em ovos com ele, com medo que ele tivesse alguma reação negativa de qualquer modo. Isabelle, sabendo ou não da data de hoje, apenas queria ter o dia livre com ele, ela até cozinhara para ele. A Lightwood só podia ser algum tipo de anjo em sua vida.

ㅡ Está tudo perfeito, Isabelle ㅡ ele tomou cuidado para deixar bem explícito em sua voz o quão grato ele estava. ㅡ Obrigado.

Ela apenas sorriu e, de alguma maneira, aquilo valeu o dia inteiro.

ㅡ Vamos comer!

Bom, a aparência estava melhor que o gosto, isso Simon podia afirmar. Um dos pães estava duro demais, ele quase perdeu um dos dentes. Quando Isabelle perguntou como estava o gosto, ele mentiu e disse que estava delicioso. Outro pão, o doce, estava cru por dentro e ele sabia que passaria mal depois com aquilo, mas mentiu novamente dizendo que era o segundo melhor pão doce do mundo (o melhor sempre seria o de Madame Dorothea, uma velhinha esquisita do vilarejo).

O bolo estava solado e com o fundo queimado e os sucos estavam aguados, no entanto, Simon não tinha a coragem de dizer para Isabelle que aquilo estava ruim, ainda mais quando ela tinha preparado tudo sozinha e tinha um sorriso lindo enquanto comia o bolo e dizia que era muito bom para uma primeira vez. Não era, nunca seria, porém algumas coisas são melhores se não forem ditas nunca.

Fora que tinha tanto amor posto naquelas comidas que ele quase sentia um sabor próximo a aceitável. Algumas pessoas apenas não tinham nascido para cozinhar, Isabelle tinha outros talentos, mesmo que não fossem os que a sociedade usava para calcular seu valor como futura esposa: ela era uma amazona excelente, era surpreendentemente uma guerreira nata (Simon assistia da janela de seu escritório Isabelle treinando com Jordan); ela era uma ótima jardineira, se estivessem procurando por alguma característica mais doméstica.

Fora que quando ela realmente se interessava por algo, ela era extremamente apaixonada por aquilo e Simon adorava essa qualidade: ela bordava cada vez melhor. Ela amava sua família (seus irmãos) com todas as forças, ela era carinhosa, inteligente, direta, divertida e dedicada e aprendia extremamente rápido.

Simon e Isabelle não tinham exatamente interesses em comum, mas um completava a rotina do outro muito bem. Simon introduzira mais livros na vida de Isabelle, que ela costumava ler avidamente e depois resmungar do destino dos personagens ou da falta deles; ela tinha feito Simon ficar mais ativo, saindo para caminhadas e cavalgadas pela propriedade. A única exceção era a música, que sempre trazia os dois juntos todas as noites.

Simon, à noite, já não sentia mais a mesma animação para tocar o violoncelo se Isabelle não estivesse presente. Ela não era o motivo pelo qual ele tocava, mas a jovem mostrava a ele que ele não estava sozinho. Quando ele viajava, as noites eram as piores e nem suas músicas mais fortes conseguiam fazer com que Simon tivesse um sono tranquilo.

Isabelle também tinha feito Simon se lembrar do que era ter uma família perto o tempo inteiro. Ele quase não conseguia manter contato com Rebecca, que sempre estava em um lugar diferente e ter Maxwell ali com eles trazia uma sensação que ele não sentia há anos. Era um sentimento bom.

ㅡ Vamos ㅡ Isabelle disse enquanto colocava os pratos no pano e se levantava. Simon agradeceu mentalmente que não tinha mais que comer aquilo e a imitou ㅡ A comida estava ótima, mas os Sol está perfeito para um mergulho no rio.

ㅡ Mas não trouxemos roupas de banho ㅡ Simon respondeu confuso. Já não era apropriado os dois estarem ali sozinhos, era ainda mais estranho nadarem com suas roupas diárias.

Voltar para casa seria muito desconfortável com seus trajes molhados.

ㅡ Ora, Simon ㅡ ela deu um sorriso sugestivo enquanto suas mãos alcançavam os botões do colete que vestia, soltando os primeiros. Simon sentiu o rosto ruborizar na hora. ㅡ Viva um pouco.

Ela continuou desabotoando o colete, deixando a blusa branca de mangas compridas livres, retirando-a logo em seguida. As alças das roupas íntimas dela surgiram e Simon sentiu um impulso de virar as costas e dar mais privacidade para a moça. Isabelle pareceu não perceber que Simon já estava mais vermelho do que as rosas de seu jardim e continuou a soltar os laços que prendiam sua saia verde escura simples, deixando o tecido empilhar aos seus pés e seguindo para as suas botas.

Simon, naquela hora, acreditava que seria possível morrer de embaraço.

ㅡ Hm, Isabelle... ㅡ ela arqueou as sobrancelhas para ele e ele engoliu em seco, tentando formular as palavras ㅡ Não acho que seja...

Simon sabia como eram as roupas íntimas de uma mulher, mas o conhecimento não aliviou a nova onda de rubor que se espalhou em seu rosto ao ver as curvas do corpo de Isabelle bem a sua frente. Tentou absorver as imagem aos poucos, pés delicados, panturrilhas torneadas, as ceroulas tinham as bordas rendadas, cobrindo tudo a partir dos joelhos e terminando com um laço na cintura. Inspirando, ele ousou olhar para o torço da jovem, coberto por uma blusa justa e sem mangas, a quantidade de pele exposta causou um disparo no batimento cardíaco dele que rapidamente focou o olhar no rosto dela.

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ㅡ Menos conversa, Simon, não temos o dia todo ㅡ e, sem avisos, pulou na água, submergindo e emergindo logo em seguida. ㅡ Venha logo, meu lorde, a água está ótima.

De onde estava, Simon conseguia ver bem as cicatrizes de Isabelle, grossas linhas de pele rosada por toda a extensão de seu braço direito. Ele sabia que nas costas havia mais e algumas em seu braço esquerdo. Simon não era uma pessoa que gostava de sentir coisas negativas por outros, mas, quando olhava para aquelas cicatrizes em Isabelle, tinha vontade de ir até a terra dos Lightwood e causar um estrago pior em Robert por ter feito aquilo com ela.

Ele odiava Robert Lightwood com todas as suas forças e não conseguia entender como duas pessoas maravilhosas como Isabelle e Maxwell tinham o mesmo sangue que ele.

A questão é que Simon também tinha cicatrizes e, mesmo que não quisesse transformar aquilo em uma competição para ver quem tinha as marcas mais feias na pele, ele tinha que admitir que seu corpo era uma aberração. Ele tinha todo o braço esquerdo queimado, parte de suas costas e peitoral e braço direito e não queria que ninguém tivesse que olhar para aquilo. Por Deus, ele não queria que Isabelle tivesse que olhar para aquilo.

Era grotesco, mas não doía mais. Não por fora, pelo menos.

Isabelle, no entanto, o inspirava. Ela ostentava suas cicatrizes com orgulho naquela hora, sem se importar com a carga emocional que ela trazia. Suas cicatrizes eram só uma parte de seu corpo, algo com o que ela convivia e aceitava.

Ela era linda.

Se Isabelle conseguia, ele também. Respirando fundo, ele começou a desabotoar o seu colete preto. Um passo de cada vez. Ele conseguiria. Os dedos se enrolavam às vezes, na pressa de terminar logo com aquilo e ir se esconder sob a água. O colete atingiu o chão e Simon continuou olhando para Isabelle, ele precisava da inspiração que ela lhe dava, os laços que prendiam a camisa foram soltos e a camisa seguiu o mesmo caminho do colete. Um rubor subiu pelas bochechas da moça, que escondeu metade do seu rosto afundando na água do lago.

Fechando os olhos e respirando fundo ele partiu para o cinto, não queria ver a reação de Isabelle ainda, não sabia se estava pronto para o mesmo olhar de pena que recebeu de seus médicos durante o tratamento ou o olhar de choque que Maia tinha em seu rosto quando o pegou desprevenido e viu até onde se estendiam as cicatrizes do “pequeno acidente” que tinha inventado para ela não se preocupar com aquilo.

Tirou suas botas olhando para o chão e fez pouco caso de estar tirando as calças na frente de Isabelle, seguindo com a tarefa rapidamente.

Estava finalmente pronto para ver a reação da jovem, que por um segundo pareceu ler a insegurança dele como se estivesse estampada em sua testa. Ele podia sentir seu coração tentando fugir de seu peito e o nó na boca do estômago se apertando cada vez mais.

Ela emergiu da água, abrindo um sorriso para ele.

ㅡ Venha! Ou o grande Lorde Montgomery tem medo de água gelada? ㅡ o sorriso dela ficou levemente maldoso, desafiando-o.

Esse foi o impulso final que ele precisava e sem se importar com o fato de estar só com de ceroulas, que cobriam tudo no pequeno espaço entre seu umbigo e seus joelhos, entrou na água fresca, mergulhando o mais fundo que podia e assustando Isabelle quando surgiu perto dela espirrando água para todos os lados.

Ela revidou jogando água nele e ele, como o homem maduro e responsável que era, revidou jogando mais água ainda. A jovem então tentou contra atacar, porém seu adversário era rápido e nadou para longe. Esse foi o começo de uma perseguição acirrada demais para o pequeno lago que logo ficou sem espaço para tantas manobras e os dois partiram para uma guerra de espirros, chegando perto um do outro.

Isabelle dificilmente ria abertamente e agora a risada dela era um dos sons favoritos de Simon. Ele chegou para mais perto dela, aproveitando para espirrar mais água em seu rosto. Simon não se divertia assim em muito tempo e aproveitou para rir sem preocupações. Eram apenas duas pessoas se divertindo em um dia ensolarado.

De repente, Isabelle estava perto demais. Simon achava que nunca estivera tão perto assim dela antes. Daquela distância, ele conseguia ver que os olhos dela não eram negros como obsidianas como ele acreditava, mas um tom intenso de castanho escuro que se passava por preto; eles também tinham pequenos pontos dourados, como estrelas em uma noite sem fim.

Seus cabelos longos e pretos estavam grudados ao lado do seu rosto molhados por conta dos mergulhos. Simon não resistiu e colocou uma mecha para trás de sua orelha. Isabelle fechou os olhos, parecendo apreciar o gesto. Ela parecia frágil e vulnerável, mas ao mesmo tempo confiante e decidida.

Ela nunca estivera tão bonita.

Simon sentiu um toque em sua mão, sua mão destruída, e hesitou, tentando puxá-la e sendo impedido por Isabelle, que a segurou firmemente.

ㅡ Deixe-me ㅡ ela disse, a voz baixa não passava de um sussurro. Se eles não estivessem tão perto, Simon tinha certeza que não teria escutado ㅡ Eu quero senti-la, deixe-me te tocar.

E ele deixou.

Era um toque firme, mas delicado e carinhoso, quase da maneira com que Simon tocava seu violoncelo: como se fosse uma peça frágil que precisasse de cuidado máximo.

O toque foi subindo calmamente, passando sutilmente e devagar pelo seu antebraço, arrepiando o corpo inteiro de Simon.

Ele estava dividido em dois. Era extremamente difícil para ele deixar Isabelle tocá-lo, aquelas marcas eram a prova de suas falhas, sua maior vergonha, ele mesmo não gostava de senti-las. Contudo, tê-la tão perto, acariciando-lhe, fazia-o sentir coisas estranhas, coisas boas. Aceitação era uma delas.

Ela passou pelo braço, acariciando e olhando para a pele dilacerada, destruída pelo fogo. Não havia nojo ali, talvez dúvida e mais alguma coisa que ele não soube identificar. Quando Isabelle passava os dedos por sua pele, parecia como o fogo, porém sem machucá-lo. Ela estava o curando.

Ela o encarou, e ele a encarou de volta. Os dois olhares presos um ao outro como se não houvesse mais nada ao redor. Eles estavam tão mais próximos que antes distância que nenhum dos dois percebeu que preencheram – que Simon sentia suas respirações se misturando, os dois respirando o mesmo ar.

Foi nessa hora que tudo mudou.

Simon sempre teve certeza de seu amor por Clarissa e ele não fazia muito para esconder isso, tampouco queria. Ele a viu pela primeira vez quando tinham seis anos e ele se lembrava de pensar que ela era a menina mais linda do mundo. Simon nunca se importou com o fato de que ela não sentia o mesmo, nem mesmo quando ela avisou do nada que estava apaixonada e iria se casar. Clarissa era sua rocha, a maior parte de sua vida, um ponto de segurança em meio ao caos que ela era. Ela era divertida, inteligente e até então a garota mais bela que Simon tinha posto os olhos.

Até ele conhecer Isabelle.

Agora, olhando para Isabelle, ele sentia algo totalmente diferente do que ele sentia por Clarissa, mas também diferente do que ele sentia inicialmente pela Lightwood. Os sentimentos recém descobertos por Isabelle tinham explodido de uma maneira que Simon quase ofegou. Pelo anjo, ele gostava dela.

A parte boa era que eles já estavam noivos. A parte ruim era que ela não retribuía os sentimentos e eles não iriam se casar. Simon não tinha muita sorte na vida mesmo.

Ele olhou para os lábios dela e de volta para os olhos escuros, inseguro de como agir. As bochechas de Isabelle estavam pegando fogo e seus lábios estavam entreabertos, o que Simon assimilou como um convite.

Nesse exato momento um relinchar muito alto quebrou o silêncio no lago. Aparentemente, Hunter não se achava digno de um castigo tão cruel como ficar amarrado numa árvore perto de uma companhia tão simplória quanto a de Daylighter por horas.

O som foi tão inesperado que fez os dois se separarem em um pulo, cada um indo parar quase em um canto do lago. Simon cogitou a hipótese de mergulhar e se afogar porque ele tinha certeza que nunca mais conseguiria encarar Isabelle em sua vida. Ele iria beijá-la. Ela provavelmente colocaria toda sua habilidade de luta em prática e Simon perderia os dentes.

Pior que os dentes, ele poderia perder a amizade de Isabelle, que tinha sido tão difícil de conquistar. Eles eram amigos e pronto, era assim que tinha que continuar.

Porém isso não impedia o sabor amargo do arrependimento por não ter agido mais rápido o atingir.

Isabelle pigarreou alto, chamando a atenção para ela. Ela também estava muito ruborizada, mas parecia mais recomposta do que ele.

ㅡ Acho melhor voltarmos para casa. ㅡ ela disse ㅡ Logo escurecerá e ficará ruim para vermos o caminho na trilha.

Ele concordou, ignorando o fato de que ele sabia que faltava um bom tempo até o Sol se pôr. Era melhor mesmo que voltassem. Em casa, ele sabia que aquela situação esquisita logo se resolveria.

Eles saíram da água e esperaram um pouco para que suas roupas se secassem um pouco e vestiram-se em silêncio, ambos constrangidos demais para dizer qualquer coisa.

ㅡ Quando voltarmos podemos passar no vilarejo, sobrou bastante comida, podemos dar para alguém. ㅡ ela comentou.

ㅡ Vamos direto para casa, lá pedirei para alguém fazer isso ㅡ ele disse, tentando fazer com que sua voz soasse firme. Ela assentiu ㅡ Está ficando tarde, afinal.

A verdade era que ninguém no vilarejo merecia comer aquela comida. Simon faria questão de usar aqueles restos como bom adubo e provir algumas famílias por um tempo.

Eles soltaram os cavalos, Hunter parecendo muito contente com o fato de estar indo embora. Simon ficou muito grato por Daylighter ser um cavalo dócil e fácil de lidar. Simon e Isabelle voltaram cavalgando em silêncio, sem a diversão da corrida dessa vez. Não tardaram para que chegassem em casa.

Era tudo muito esquisito. Parar com os cavalos foi muito estranho, Eric olhando parados dois suspeitamente, quase que esperando que algo acontecesse. Simon sabia que seus funcionários e amigos tinham feito alguma aposta para ver quando os dois se acertariam (eles jamais contariam aquilo para ele, mas, novamente, Simon sempre sabia o que acontecia dentro de suas propriedades) e Jordan não o deixaria em paz pela próxima semana. Como se olhar para Isabelle já não fosse desconfortável o suficiente agora.

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Os dois entraram em casa juntos, mas com uma distância bem considerável entre eles, quase como se um deles tivesse alguma doença contagiosa. Maia e Jordan estavam no hall de entrada, aguardando os dois com um sorriso no rosto, não parecendo perceber o clima tenso instalado entre eles. Simon se perguntou o que teria acontecido enquanto ele estava com Isabelle.

ㅡ O passeio foi divertido? ㅡ Maia perguntou. Jordan olhou para Simon como se lesse sua alma e reparou na situação. Simon podia ver pela maneira que Kyle estava mordendo o lábio que ele queria rir do que estava acontecendo.

Simon precisava de amigos novos.

ㅡ Tenho tudo para crer que foi ótimo, Maia ㅡ Jordan falou primeiro.

Simon e Isabelle fulminaram Jordan com o olhar e depois olharam um para o outro, não aguentando e sorrindo. Um inimigo em comum sempre fazia as pessoas se entenderem. Simon e Isabelle eram amigos afinal de contas, uma situação constrangedora não iria ser o fim do mundo. Eles já tinham passado por coisa demais juntos para isso.

ㅡ Jordan está certo ㅡ Isabelle confirmou enquanto olhava para Simon ㅡ Foi muito divertido.

Simon concordou, tinha sido realmente tranquilo e divertido o dia, mas uma vozinha no fundo de sua cabeça se questionava se tinha algo por trás das palavras de Isabelle.

ㅡ Onde Max está? ㅡ Simon perguntou, mudando de assunto.

ㅡ Acho que aquele pestinha está na biblioteca ㅡ Jordan resmungou.

ㅡ Olhe como fala de meu irmão ㅡ Isabelle respondeu duramente e Jordan estendeu as mãos em rendição.

ㅡ Ele nunca vai superar o chute ㅡ Maia comentou e todos menos Jordan riram.

Simon adorava aquele clima familiar e divertido que sua casa agora tinha. Antes, ele tinha que assistir dolorosamente Maia e Jordan flertando e se apaixonando e não fazendo nada sobre o assunto, pisando em ovos sempre. Agora os dois estavam muito próximos e abertos um para o outro e tudo graças a Isabelle.

ㅡ Simon, suba e se lave. Depois nos encontre no salão de jantares formais ㅡ Isabelle ordenou.

Simon olhou para os três com a testa franzida, sabendo que algo duvidoso estava acontecendo, mas concordou mesmo assim, subindo para seu quarto. Lá, a banheira já estava pronta com água o esperando.

Foi só no momento em que fechou a porta do quarto que reparou que Isabelle tinha lhe dado uma ordem, sem nem mesmo titubear. Ele riu sozinho, estava orgulhoso com a evolução na confiança de Isabelle.

Tentou manter a mente vazia enquanto desabotoava o colete, mas dois assuntos rodopiavam pela sua cabeça e não conseguia parar de pensar no pivô desses assuntos: Isabelle.

Tirou o colete caro, revivendo a corrida, o lado competitivo da jovem que ele mesmo desconhecia, a liberdade que ela representava ali, sorrindo enquanto ultrapassava a ele e Daylighter. Desatou os laços da camisa de linho e eles estavam entrando no lago, o roçar do tecido contra sua pele se tornou o toque cálido de Isabelle. Mal percebeu que já tinha se despido, distraído pensando nos olhares que recebeu da jovem apenas horas antes, e entrou na banheira e começou a se ensaboar, decidindo que não pensaria mais no que aconteceu no lago até a hora de dormir.

Falhou miseravelmente.

Na realidade, sua decisão durou menos de um minuto, era sua ordem mais falha na história de sua vida, ele decidiu e voltou a repetir o momento em que eles quase se beijaram.

Simon sacudiu a cabeça, pensar em Isabelle enquanto ele tomava banho era uma péssima ideia, ele resolveu focar em seus negócios. Ele tinha que mandar trazer novos sais para o banho e tinha que conferir se seus navios já tinham chegado à América em segurança; Jonathan estava sendo extremamente desagradável para que ele comprasse mangas de sua plantação caseira e Lucian não queria vender mais livros para Simon porque “é inumano conseguir ler tantos livros, meu lorde”.

Sinceramente ele tinha tantos problemas que pensar em Isabelle lhe dava menos dor de cabeça.

Simon suspirou, saindo da banheira e pegando uma toalha para se secar, com cuidado para não molhar seu quarto inteiro e levar uma bronca depois. Ele apenas colocou uma túnica vermelha com uma calça preta junto com os sapatos e foi até o salão. Ele se lembrava de que quando comprou aquela propriedade ele costumava se perder nos corredores até encontrar o cômodo certo, porém atualmente ele conhecia sua casa com a palma da mão.

E pensar que ele só comprou porque Raphael insistira muito que um homem de poder tinha que ter um lar a altura. Ele riu sozinho enquanto seus dedos deslizavam pelas paredes, Raphael sempre teve ideias estranhas em relação à títulos de nobreza.

Simon finalmente entrou na sala, apenas para encontrar Isabelle, Maxwell, Maia, Jordan e todos os outros funcionários da casa perto de um bolo torto com uma pequena vela em cima, que se apagou quando Maxwell gritou muito perto.

ㅡ Surpresa! ㅡ eles gritaram. O sorriso nos lábios dele estavam um pouco murcho, porque eles sabiam que Simon odiava seu aniversário.

Contudo, Isabelle e Maxwell estavam muito felizes com o que fizeram e Simon não conseguiria decepcioná-los, então ele forçou um sorriso e caminhou até o grupo.

ㅡ Nossa, vocês me pegaram desprevenido ㅡ ele mentiu.

ㅡ Não seja cínico, Simon ㅡ disse Maia.

ㅡ Você gostou, Simon? ㅡ Maxwell perguntou ㅡ Nós tivemos o maior trabalhão para pedir segredo de todo mundo. E para tirar Bridget da cozinha, ela parece que não para.

ㅡ Bom, se eu parar você fica sem seus doces favoritos, seu ingrato ㅡ Bridget resmungou e Simon ficou genuinamente surpreso de vê-la ali. Ele achava que a cozinheira estava ligada à cozinha por alguma força divina.

ㅡ Vamos comer o bolo? ㅡ ele fingiu animação.

Uma onda de resmungos correu entre as pessoas e Isabelle cerrou os olhos, empinando o nariz.

ㅡ Isabelle quem fez o bolo ㅡ Maxwell sussurrou para Simon ㅡ Ninguém está muito confiante sobre o gosto.

Isabelle deu um tapa fraco na nuca de Maxwell.

ㅡ Eu posso ouvi-lo, sabia?

ㅡ Eu tenho certeza que estará delicioso ㅡ Simon garantiu, não tão seguro quanto aparentava.

Ele pegou uma fatia, mordendo o pedaço hesitantemente.

A ânsia de vômito o atingiu de supetão, uma pressão intensa na garganta, mas se havia algo que Simon era bom, era em ocultar seu desconforto depois de anos lidando com o humor duvidoso de seu tio. Simon tentou ao máximo esconder a careta ao mastigar a fatia que estava inexplicavelmente queimada e crua ao mesmo tempo. Engoliu tudo num impulso só, tentando ignorar o gosto óbvio de ovo cru, e sorriu. Ou tentou.

Uau! Vocês têm que provar esse bolo! Vamos, não se intimidem! Maia, ajude a servir todos. Não se esqueça de pegar uma fatia para si.

Ele sabia que era uma péssima maneira de agir, mas não era mentir pra Isabelle se as exatas palavras não saíssem de sua boca e nenhum momento ele disse que o bolo estava bom. Certo?

Infelizmente, nem todo mundo era inocente como Isabelle e Maxwell logo notou a estratégia de Simon, sorrindo malicioso e acenando com a cabeça, como se dissesse “boa jogada, Simon”.

ㅡ Simon está certo! ㅡ Isabelle exclamou, pegando uma fatia e comendo e parecendo gostar muito do trabalho que fizera ㅡ Está delicioso, não se intimidem. Aqui, Bridget, deixe-me servi-la.

Bridget pegou a fatia como se fosse tóxica e agradeceu em um aceno. Simon ignorou quando sua cozinheira jogou fora o bolo em uma planta quando Isabelle se virou para servir outra pessoa.

O bolo de Isabelle foi um ótimo quebrador de gelo. Todos tinham encontrado um ponto de paz e conforto e parecia realmente uma pequena festa. Jon tinha um violão e tocava animadamente enquanto Isabelle brincava com Maxwell e Jordan flertava miseravelmente com Maia. Alguns outros funcionários conversavam entre si, inserindo-o no assunto quando adequado. Ele ainda era o chefe afinal de contas. Simon podia jurar que Bridget estava rezando, talvez numa tentativa falha de exorcizar o bolo infame.

Olhar a cena como um todo causou um estranhamento em Simon, que não se sentiu mais como parte da comemoração, de repente era como uma festa de outros e ele não fora convidado e ele estava muito incomodado com a situação. O jovem lorde sabia que estava se movendo, mas só se deu conta da direção quando já estava no portal que se abria para o pequeno salão, entrando cada vez mais no corredor. Ele conhecia essa sensação muito bem, uma estranha dissociação que o afastava de certas cenas, colocando tudo em segundo plano, ele precisava sair dali, das luzes e vozes. Seguiu para o único lugar onde ninguém o acharia.

O porão estava frio e empoeirado, como sempre, porém algo estava diferente. Talvez pelo fato de que ele quase podia sentir a presença de Isabelle pelo chicote onde antes tinha apenas suas memórias amargas. Simon odiava ir aquele porão, sempre o deixava arrasado.

Os restos dos móveis que sobraram da antiga propriedade estavam pretos e carbonizados e Simon quase podia sentir o cheiro de queimado neles, mesmo passando tantos anos do que aconteceu. Ele sempre era levado de volta aquele dia, todo ano a mesma coisa. No fundo ele sabia que só tinha mantido os móveis para se punir mais um pouco, como se todas as marcas físicas e mentais não fossem o suficiente.

ㅡ É falta de educação ir embora da própria festa de aniversário, Simon ㅡ ele ouviu a voz de Isabelle e se virou para encontrá-la aos pés da escada do porão, segurando uma fatia de bolo com uma pequena vela acesa.

ㅡ Eu... eu...

ㅡ Não precisa se explicar ㅡ ela disse docemente ㅡ Você não fez um pedido.

Ela estendeu o bolo para ele, incentivando que ele assoprasse. O que pedir? Ele tinha tudo que o dinheiro podia comprar e até mais. Ele podia pedir para ver mais sua irmã, ou para ter seu tio de volta, ou até mesmo para Raphael parar de mandar aquelas cartas irritantes sobre como ele tinha que comandar seus negócios, mas ele sabia que as coisas não funcionavam a base dos pedidos. Nem mesmo pedir para que Isabelle gostasse dele de volta resolveria seus problemas, então para que fazer pedidos vazios?

Ele assoprou as velas, desejando apenas que aquele dia acabasse logo. Era algo que ele sabia que seria concedido em algumas poucas horas.

ㅡ O que você pediu? ㅡ Isabelle perguntou.

ㅡ Achei que desse azar contar os pedidos ㅡ ele rebateu e ela sorriu.

ㅡ Tem razão ㅡ o sorriso dela morreu e ela pareceu preocupada ㅡ Você não está bem.

Não era uma pergunta, ele e Isabelle já estavam conectados a ponto de que um entendia os nuances da personalidade um do outro.

ㅡ Estou ótimo ㅡ ele pegou o bolo, na tentativa de mudar o assunto, mas ela tomou o bolo da mão dele e colocou na mesa chamuscada.

Amém, ele pensou.

ㅡ Não, está. ㅡ ela bateu o pé, quase mandona demais ㅡ Simon, você esteve estranho o dia todo e todos me falaram que o dia de hoje era péssimo para você. O que está acontecendo? Quero ajudar!

ㅡ Mas você não pode Isabelle! ㅡ ele não percebera que tinha gritado até ver a expressão machucada no rosto da menina. Ele suspirou, massageando a têmpora ㅡ Sinto muito, Isabelle, não era minha intenção gritar.

Estava fazendo tudo errado, era para estar agradecendo a moça pela festa e ser educado. Cobriu o rosto e soltou lentamente o ar que estava prendendo. Como ele perdera tão rápido o controle? Era só uma comemoração.

Mãos quentes seguraram as frias do rapaz.

Logo, o rosto preocupado de Isabelle apareceu a sua frente, ela ainda segurava suas mãos com força entre os dois.

ㅡ Simon ㅡ ela sussurrou em desespero. Apenas os pequenos pontos dourados de seus olhos refletiam na pouca luz do porão e procuravam quaisquer sinais ou pistas no rosto dele. ㅡ Eu não sou boa nisso como você, então você precisa me ajudar. O que você está sentindo?

E por um momento ele tinha quinze anos de novo e o médico o perguntava “O que você está sentindo, Simon?” enquanto tratava seu braço esquerdo, os sons finalmente voltando a alcançar seus ouvidos, os odores o seu nariz o cheiro de madeira, papel e carne queimadas permitindo toda dor a fluir intensamente, se tornando insuportável, Rebecca tinha a mão direita dele no colo, acariciando seu cabelo e pedindo, implorando que ele respondesse, qualquer coisa, pelo amor do anjo.

Isabelle, que pareceu ver que Simon não estava ali, mas anos atrás na frente de uma casa destruída por um incêndio, o puxou para se sentarem em um sofá meio queimado, um de frente para o outro.

De todos os idiomas que o jovem conhecia, nenhum parecia ter palavras para descrever a dor excruciante que ele sentira naquela manhã, por fora e por dentro. Um grito desesperado brotou em seu peito e saiu pela boca quando ousou olhar para sua mão esquerda. Desviando o olhar o máximo que podia, encontrou consolo no ombro da irmã, onde chorou como nunca tinha antes.

Podia sentir o calor de um ombro sob sua testa, enquanto ele chorava impiedosamente, soluçando como uma criança indefesa, coisa que ele não era há muito tempo. Ele pensava que estava com Rebecca, contudo, notou pelo cheiro de baunilha que era Isabelle ali, consolando-o. Ele se agarrou ao decote do vestido da noiva, se permitindo chorar tudo o que não chorava há anos.

Ele podia ouvir Isabelle dizendo coisas que ele não entendia muito bem e um leve toque em suas costas, quase como uma carícia.

Aos poucos ele se acalmava, chorando cada vez menos, até que ele só estava apoiado em Isabelle, usando-a como um alento. Em nenhum momento ela parara de fazer carinho nele, deixando claro que ela estava ali para ele. Simon nunca se sentiu tão grato.

ㅡ Eu estou bem ㅡ ele murmurou, se separando de Isabelle e fungando, limpando as lágrimas.

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ㅡ Tem certeza? ㅡ a voz dela estava carregada de preocupação, assim como seus olhos.

ㅡ Sim, você merece saber o que está acontecendo. ㅡ ele respirou fundo, passando levemente a mão direita na esquerda. ㅡ É uma história muito comprida e confusa, mas começa com a morte dos meus pais quando eu tinha oito anos. Eu e Rebecca fomos levados para morar com um tio distante nosso, George. Ele nos tomou e mudou nossos nomes, de Lewis para Lovelace. Ele era conhecido como Lorde Montgomery.

Simon então contou para Isabelle como foi aterrorizante ainda menino ter que mudar para um casarão velho e enorme de um homem desconhecido porque seus pais tinham morrido de tuberculose. Ele narrou detalhadamente como foi conhecer aquele homem, que parecia péssimo, mas que na verdade era tudo que ele precisava. Um amigo, um confidente, um pai. George o ensinou tudo que ele sabia e o educou para ser um jovem nobre, mas ao mesmo tempo uma pessoa boa e caridosa, que respeitava o próximo.

Ele e Rebecca, que era dois anos mais velha, foram educados para assumir o posto dele como lorde e prolongar o domínio dele pela Europa.

ㅡ Ele era maravilhoso, Isabelle. Você adoraria conhecê-lo ㅡ ele murmurou e riu brevemente ㅡ George costumava dar nomes aos ratos que apareciam pela casa e cortejar todas as mulheres possíveis, sem nunca ter sucesso.

Isabelle sorriu, mordendo o lábio e observando o Simon jovem que poucos tinham a chance de conhecer. Simon entendia, dificilmente as pessoa sabiam desse lado dele. Todos que o conheciam, sabiam apenas do homem de negócios que ele tinha que ser a maior parte do tempo.

ㅡ Ah, Isabelle, ele provavelmente tentaria cortejá-la também, diria que um jovem inexperiente como eu não saberia o que fazer com uma mulher tão bela e forte como você. Não que eu saiba. ㅡ ele ria baixinho enquanto lágrimas escorriam por suas bochechas. Sempre olhando para baixo e evitando que a jovem vissem seu rosto molhado e vermelho. Ele não viu o rosto da moça corar com os elogios.

ㅡ Ele soa detestável, Simon ㅡ ele riu em meio às lágrimas.

ㅡ Não, George só era muito excêntrico.

ㅡ Suponho que ele seja o homem daquela pintura ㅡ ela apontou para a pintura rasgada, onde mal dava para ver o rosto do homem loiro junto com as crianças.

Simon se lembrava do dia em que ela tinha sido feita, ele tinha reclamado por horas por ter que ficar em pé ao lado de Rebecca, que estava passando mal naquele dia.

ㅡ Sim, eu rasguei aquela pintura no meu aniversário de dezesseis anos.

ㅡ É o motivo pelo qual não gosta de comemorar seus aniversários?

Simon negou, sentindo sua pele deformada formigar. Ele estava se sentindo um rato encurralado, de certa maneira, mas feliz por estar finalmente compartilhando aquilo com outra pessoa além de Rebecca e Raphael.

ㅡ Quando eu fiz quinze anos, George resolveu dar uma festa. O certo era dar uma festa para Rebecca, porém ela não quis e nosso tio nunca faria nada que ela não quisesse. Eu nunca me importei muito, então o deixei ser extravagante. Como sempre. Tudo correu muito bem e no final apenas algumas pessoas ficaram para passar a noite, parentes próximos ou negociantes fiéis.

Ele não contou como ele fora dormir com o pressentimento de que algo ruim aconteceria. Ele culpou a bebida que seu tio insistiu que ele já podia tomar, pois já era um homem. Ele não contou que ele quis abraçar seu tio como se não houvesse amanhã e que George só julgou que ele estivesse bêbado. Simon sabia que Isabelle entenderia que certas coisas foram feitas para serem guardadas para si.

ㅡ Todos achavam que tínhamos apagado todas as lamparinas e terminado de queimar a lenha da lareira. Não tínhamos ideia do quanto estávamos errados.

Simon narrou com cuidado sobre como ele tinha sentido o leve cheiro de fumaça enquanto se remexia nos lençóis e que ele jurava que estava imaginando coisas pelo excesso de bebida e cansaço. Que foi Rebecca que o puxou correndo, gritando que a casa estava pegando fogo e que eles precisavam sair de lá.

Que quando ele chegou na frente da casa, com todas as pessoas do lado de fora esperando o fogo apagar, Simon notou que George não estava lá.

ㅡ Ah, não... ㅡ Isabelle murmurou, quase pressentindo o que viria.

ㅡ Eu voltei, não tinha como não voltar pelo homem que me criou, corri o mais rápido que pude, tanto que não vi que o fogo se concentrava nos cômodos perto do escritório do meu tio.

Ele se lembrava do tapete fumegando sob seus pés descalços, não os queimando, mas causando um grande desconforto que ele tinha que ignorar; da fumaça entrando em seus pulmões, intoxicando-os rapidamente e de chamar loucamente por seu tio. Finalmente o encontrara no canto mais afastado do escritório, caído no chão, a mão estendida sobre a pasta de documento, onde guardava os título e posses, o diário de viagem apertado sob o peito. Desespero tomou Simon, que tentou de todas as maneiras acordar seu tio, sem sucesso.

Lembrava-se de ter gritado e implorado para ele se levantar, que ele tinha que sair dali, ainda tinha tanto para ensinar e tantas moças para perturbar. Ele tinha que sair dali com Simon, mas ele não reagia e, quando o garoto tentou puxar o tio desacordado, a estante que ficava atrás da mesa desabou, caindo sobre o braço esquerdo do jovem, que ainda tentava em vão sair dali com o tio, mas o mundo se apagou para Simon.

Tudo o que ele lembrava depois disso era estar sentado nos degraus de pedra na frente do casarão queimado. Rebecca a sua direita, o médico a sua frente e uma pasta e um diário a sua esquerda.

ㅡ Rebecca me contou que eu saí de lá andando normalmente, que de algum jeito eu consegui me soltar da estante com a mão direita e ir embora da casa como se nada tivesse acontecido. Que eu dizia que George não iria querer que alguém além dele morresse. E que dei ordens aos empregados como se não tivesse nenhum arranhão, quem dirá um braço inteiro em carne viva. ㅡ ele balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos ㅡ Sinto muito que esteja te contando algo tão horrível assim.

ㅡ Já vivi coisas tão perturbadoras quanto, Simon. Eu que sinto muito que você tenha que ter passado por algo tão doloroso quanto isso. Você é uma pessoa que não merecia nada além do melhor.

Simon secou uma lágrima, tentado a discordar de Isabelle. Ele tinha deixado o tio morto no escritório, não houve um corpo para ser enterrado, porque nem isso ele tivera a capacidade de fazer. Ele simplesmente fora embora.

ㅡ Depois disso Rebecca assumiu o título. Ela odiava ter que mandar em tudo e calhou de ela conhecer um bom homem que a amava de volta. Eles se casaram e eles foram embora. Raphael, esse amigo próximo de meu tio, me ajudou a entender como o mundo dos negócios funcionava ㅡ sem perceber, ele já estava deitado no colo de Isabelle enquanto ela lhe acariciava os cabelos. Simon estava exausto ㅡ A fama de Lorde Montgomery vem dele, que tomava decisões que eu não necessariamente concordava, mas criou uma lenda.

ㅡ Uma fama muito ruim ㅡ Isabelle comentou e ambos riram levemente.

ㅡ Quando eu fiz dezesseis, eu surtei e rasguei a pintura. Eu me arrependo um pouco disso, mas doía tanto, Isabelle, doía tanto lembrar daquele dia e da dor que eu sentia no braço. Demorou dois anos para que tudo cicatrizasse. Quando fiz dezessete, eu me mudei para essa casa e tentei recomeçar. Dispensei Raphael dos serviços dele e venho fazendo o que acho justo com o título de meu tio. Venho tentado fazer meu melhor.

ㅡ E você conseguiu ㅡ a voz de Isabelle soava distante ㅡ Ajuda todas essas pessoas do vilarejo, é bem sucedido. Salvou Maia de um destino horrível, você me salvou de um destino horrível. Serei mais grata a você do que jamais poderei expressar, Simon.

ㅡ Estamos perdendo a festa ㅡ ele comentou, já distante da realidade, sua mente vagava entre a inconsciência e as mãos de Isabelle em seu cabelo.

ㅡ Eles irão superar ㅡ Isabelle disse ㅡ Agora, durma. Você merece uma boa noite de sono.

ㅡ Acho que você tem razão ㅡ ele fechou os olhos, já respirando pesadamente ㅡ Toco violoncelo todas as noites porque não consigo dormir. Tenho pesadelos horríveis, Isabelle.

Mas enquanto Isabelle corria os dedos pelos seus cabelos, confortando-o e consolando-o, ele mal conseguia se lembrar de qualquer coisa além daquele momento. Ele finalmente se sentia em paz em seus pensamentos e relaxado.

ㅡ Boa noite, Simon ㅡ ela sussurrou em seu ouvido.

Boa noite, Isabelle, ele tentou dizer, mas já dormia antes de conseguir formular a frase. Era, de fato, uma boa noite.