Lembranças

Capítulo 16


— Está tudo bem agora, Gina… ele já foi. Ssshh, está tudo bem. - Emma me dizia pausadamente, abraçando minha cabeça em seu peito. Nossa diferença de altura não era enorme, mas era aconchegante.

— Estou livre, Emma. Livre. - Respondi baixinho, embargando cada sílaba, tentando confirmar para mim mesma mais que para Emma.

— Sim, você está. - Uma das lágrimas que, alheia ao meu conhecimento, descia pelas bochechas de Emma caiu sobre minha testa e eu olhei para cima, procurando seus oceanos que, naquele momento, transbordavam.

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— Você está chorando? Emma-

— Está tudo bem, Regina. Acho que estava represando essas lágrimas há muito tempo. Deixa elas caírem… estou tão feliz por você! - As pontas de seus lábios quase encostavam nas orelhas de tão largo que era seu sorriso. Então, seus dedos acariciaram meu rosto lentamente até que a ponta de seu polegar passeou sobre os meus lábios e um arrepio cruzou minha espinha. Ficamos nos olhando por alguns instantes, mas um instante passa em um momento. Seu toque logo se afastou e eu, certamente, estava perdendo a cabeça. Eu teria que fazer algo sobre isso. Sobre os meus sentimentos por Emma Swan.

Eu orava, rogava, pedia a Deus por uma resposta. Sempre que podia, ia até a igreja conversar com meu Senhor, pois Ele é fiel, e disso nunca duvidei. Mas essa resposta não vinha. Talvez ela já estivesse aqui e não havia mais nada que Deus pudesse fazer, pois era apenas certo. Parecia muito certo sentir todas aquelas coisas por Emma, e talvez eu estivesse esperando demais. Talvez eu tenha esperado demais. Emma havia seguido em frente, e Rose fazia parte desse movimento. Eu teria que deixá-la ir, mas, naquele momento, eu não queria pensar em possibilidades assombrosas.

— Que tal buscarmos Henry e irmos almoçar? Conheço um restaurante delicioso na Bourboun Street.

— Ótima ideia. - Ela acenou com a cabeça, não parecendo muito animada.

— Há algo errado, Emma? - Franzi as sobrancelhas.

— Não.

— É claro que há. Conta.

— Não é nada, só estou aqui pensando.

— Pensando em quê?

— Você… vai contar ao Henry? Que o pai dele foi preso? - Seus olhos demonstravam verdadeira preocupação.

— Emma, o pai de Henry está morto.

— Eu sei, Regina, mas -

— Não, é sério. O pai de Henry está morto, então não há por quê esconder nada dele. Embora ele tenha desenvolvido um laço afetivo com Robin, eu sempre soube que não compensava cem por cento. Além do mais, Robin acabou de deixar bem claro que nunca ligou muito para Henry. Só queria criar um homem de valor. Então, sim, contarei ao Henry. - Dei-me por satisfeita com minha explicação, e ofereci a Emma um sorriso que dizia que tudo estava bem. Ela sorriu de volta.

Chegamos à casa de Mary por volta de uma hora da tarde e meu estômago manifestava sua súplica por alimento. Apenas buzinei e alguns segundos depois Henry surgiu correndo pela porta, com alguns papeis em sua mão. Mary o acompanhara logo atrás, sorrindo largamente.

— Mãããe! Que demora! Oi, Em! - Ele acenou para o fusca de Emma. Ela buzinou para ele.

— Oi, querido! É… fui resolver algumas coisas, mas já estou aqui! Sentiu muita saudade? O que você e tia Mary fizeram? - Perguntei saindo do carro e correndo para seu abraço miúdo.

— Bem, como ela não tem um videogame, jogamos Uno e pulamos corda. - Quando Henry contou aquilo com tamanho entusiasmo, tudo o que consegui fazer foi imaginar a cara de Robin e seus vis comentários sobre as escolhas de meu filho. Menino pulando corda. Coisa de menininha, de viadinho. Mas eu era outra pessoa. Eu ficava muito feliz de ver ele confortável com suas decisões, sem se importar muito com o que eu pensaria. Nós podemos aprender muito com as crianças, afinal.

— Que beleza, hein? Não deixe a Emma estragar você com aquela máquina! - Falei alto, com a intenção de fazer Emma escutar. Ela resmungou um ‘ei!’ divertido. - Olá, Mary! Obrigada por quebrar esse galho, de novo. Estamos indo almoçar na Bourbon Street, gostaria de se juntar a nós? - Ofereci.

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— Ah, por nada, Regina! Henry é um ótimo garoto, adoro passar meu tempo com ele. E, obrigada pelo convite, mas fica para a próxima. Já tenho um almoço marcado. - Ela me lançou aquele tipo de olhar que apenas grandes amigas entendem. E, embora eu não tenha sido a melhor das amigas para Mary Margaret ultimamente, sempre nos conectamos bem.

— Ah… sei… quem é o varão? - Eu pensei em outras palavras para encaixar ali, mas todas me remetiam à fase recém descoberta dela. Quem é o playboy? De quem é o carro onde você vai dar? Não faria isso com ela nem brincando.

— É um rapaz que se converteu há pouco tempo. Como você quase não tem ido aos cultos, ele passou a sentar ao meu lado. Na verdade, eu é que tomei a iniciativa, após checar com o pastor se era apropriado. - Ela sorriu sem graça.

— Ué? Por que não seria? - Eu queria instigá-la. Derramar sobre ela meus próprios questionamentos sobre essa instituição controversa.

— Porque eu sou mulher, e não tenho certeza se é bom tomarmos a iniciativa. O homem deve ser a cabeça de qualquer relacionamento, e nós somos o corpo. - Ela tentava se manter firme em sua constatação.

— Ah, de que somos só um corpo eu tenho certeza. - Cruzei os braços.

— Como?

— Nada. Só estava pensando alto. - Gesticulei com as mãos e ri desengonçadamente. Meu estômago deu outro alerta de que precisava de atenção. - Bem, estamos indo, Mary. Não queremos atrasar o seu encontro e nem deixar a cabeça do relacionamento esperando, não é mesmo? Um bom almoço para vocês. - Dei-lhe um abraço apertado e sincero. Eu queria libertá-la daquela hipocrisia também, pelo menos um pouco.

— Para vocês também. - Acenou um adeus e entrei no carro. Quando olhei para o banco de trás, não encontrei ninguém. Rindo sozinha, peguei meu celular e escrevi uma mensagem.

Parece que perdi o posto de motorista. Ele está aí, não está?

Yep. Estamos rindo da sua cara. Trace a rota até o abastecimento alimentício porque estamos famintos. Eu te sigo.

Dei partida no carro. Após alguns minutos, não me contive.

Abastecimento alimentício? Sério? Quantos anos você tem?

A resposta veio em alguns segundos.

Está dirigindo e digitando, senhorita Mills?

Eu estava parada no sinal. Você é que está digitando, e com meu filho a bordo!!! Larga esse celular.

Agora você é que está dirigindo e digitando.

Tchau.

Te amo.

Em todos os sinais que parávamos, eu relia aquela mensagem e um sorriso automaticamente, sem esforço algum, se montava em minha boca. Apesar de saber que suas intenções com aquelas palavras eram muito diferentes das minhas, respondi, tentando arrancar algo a mais.

Não me ame enquanto estou com fome.

Te amo até com fome E com sono.

Não minta.

Verdade absoluta.

Gostaria de dizer que eu também a amava, mas o sinal abriu. Droga. Menos de um minuto depois, chegamos ao nosso destino. Estacionamos uma ao lado da outra e, assim que nos vimos, sussurrei perto de seu ouvido.

— Eu também te amo. - Evitei seus olhos. Talvez eu estivesse fazendo um jogo com Emma. Talvez eu tivesse decidido, inconscientemente, que Emma Swan seria minha, e eu teria que conquistá-la.

Entramos no restaurante e, graças ao meu bom Jesus, tudo veio rápido e estava uma delícia. Enquanto esperávamos a sobremesa, Emma e Henry ficaram construindo torres com guardanapos. Ela explicava a ele como era possível algo tão frágil sustentar outros guardanapos, e ele ouvia tudo com muito interesse e admiração. Naquele momento, num flash de segundo, eu vi uma família à minha frente. Eles brincavam e aprendiam um com o outro, e eu comecei a me perguntar se aquela não era a resposta que eu sempre pedi a Deus. Ela sempre esteve ali, bem na minha frente. É claro, fazia todo sentido - eu não conseguiria dar qualquer outra explicação para as batidas descompensadas do meu coração, que ecoavam da alma como um tambor.

Após saborearmos uma deliciosa panna cotta, nós três conversávamos sobre o aniversário de Henry, que seria em duas semanas. Tentávamos decidir, sem sucesso, as cores, as comidas, as atividades e a lista de convidados. Apesar de Emma não conhecer nosso círculo de amizade, ela sempre estava fazendo piadas com os nomes das pessoas e, a partir daí, julgando se valia a pena chamá-las para a festa. Nossa conversa foi cortada por uma presença desconhecida até então.

— Com licença, pessoal. - Um homem de barba e chapéu nos abordou. - Meu nome é Jefferson e -

— O cara da pesquisa de senso? De novo? - Emma questionou retoricamente. Sua barba crescera e ele estava mais elegante, mas com certeza era ele.

— Nos conhecemos? - Ele fraziu o cenho.

— Claro que sim! Um dia você nos abordou no parque para… - Tentei começar a explicar, mas lembrar daquela cena fez minhas bochechas ferverem. - Oh.

— Ah, sim! Agora estou me lembrando de vocês! Que bom que finalmente são uma família. Estou concluindo minha graduação em Estatística, e parte do meu TCC inclui o balanço de famílias homossexuais no estado da Luisiana, a fim de tentar iniciar uma discussão na Câmara dos deputados a favor da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. - Anos depois, isso seria possível. Obrigada, Barack Obama. Uma pena ter demorado tanto. Até demais.

— Nós não s-

— Pode perguntar o que quiser. - Antes que eu pudesse impedir, aquelas palavras saíram da minha boca e, por incrível que pareça, eu não me puni por isso. Eu queria mesmo saber como era estar naquela posição. Como era chegar ao limite de um penhasco e olhar para baixo e sentir vontade de pular. É claro que Emma me lançou um olhar inundado de dúvida e confusão. Apenas sorri e segurei sua mão.

Jefferson puxou uma cadeira e se acomodou ao lado de Henry. Abriu um caderninho preto e escreveu algumas informações numa página manchada de café. Ah, a vida universitária. Não que eu soubesse como era, mas era o que eu ouvia.

O rapaz nos interrogou sobre os mais variados assuntos e nos colocou em cenários dos mais diversos com o intuito de saber como agiríamos enquanto casal e como achávamos que outras pessoas reagiriam. Ele nos perguntou como nos conhecemos - embora eu ache que essa pergunta não estava no script - e essa é uma história que vale a pena ser contada. Não a verdadeira, pois essa vocês já sabem, mas a que eu e Emma inventamos na hora. Ela começou.

— Nos conhecemos no centro comunitário. Era um centro para pessoas com vícios um tanto… estranhos. Tinha uma mulher que era viciada em cheirar sovacos, e um cara que adorava catar cabelo no ralo do chuveiro de todo mundo. Eu estava trabalhando voluntariamente e Regina era frequentadora. - Ele prestava atenção, sem interromper. - Não quer saber no quê ela era viciada? - Emma já estava contendo a risada. Afundei o rosto dentro das mãos; ele poderia achar que era constrangimento ou vergonha, mas eu estava mesmo era querendo gargalhar do rumo que a história estava tomando.

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— Ahn, sim, no quê ela era viciada? Quero dizer, se for muito constrangedor, podemos pular-

— Ela cheirava talco de bebê. Fazia carreirinha e tudo! - Ela deixou escapar uma gargalhada alta que contagiou meu filho. - Sabe, ela tem um filho. Quando Henry era bem pequeno, ele precisava bastante de talco, coisas de bebê. O estresse de criar uma criança como o Henry, que era hiperativo, deixava a Gina maluca. - Ela passou a mão por minhas costas e a repousou no meu ombro. - Então, como uma válvula de escape, ela inalava o talco. Efeito calmante. Doidona.

Meu rosto já estava fervendo, mas eu tentava manter a pose de pessoa desequilibrada-que-foi-salva-pelo-amor. A face de Jefferson mesclava-se de formas e caretas hilárias a cada informação nova que Emma dava sobre meu passado sombrio e esquisito.

— Emma, para de mentir! Não é bem assim. - Tirei sua mão de meu ombro e fingi uma cara chateada. - Eu também cheirava o talco quando sentia saudades dele. - Abaixei a cabeça e apertei os olhos, como se estivesse prestes a chorar. - Não é algo do que me orgulho mas vamos fazer o quê? É a minha história, minha verdadeira história, e, se não fosse por esse talco, eu não teria conhecido Emma. - Olhei para ela e acariciei sua coxa. Pude sentir sua postura se modificando, tornando-se mais ereta.

Jefferson parecia conturbado demais com o que Emma e eu inventamos e, constrangido, despediu-se de nós e agradeceu por termos concedido, nas palavras dele, uma entrevista “tão surpreendentemente encantadora.” Coitado. Ele era um bom rapaz.

Assim que sua figura já estava desaparecida na Bourbon Street, nós três resolvemos que era hora de deixar toda aquela risada acumulada escapar. Nossos pulmões foram se esvaziando a medida que nossas barrigas doíam de tanto gargalhar. Quando já estávamos lacrimejando, limpei meus olhos e sugeri que fôssemos assistir ao pôr-do-sol no parque, sob aquela macieira que quase me matou um dia. Animados com a ideia, zarpamos velozmente até nosso destino. Henry foi, novamente, no carro de Emma. Era curioso como eu não sentia nem um pingo de ciúme da relação que ele estava desenvolvendo tão rapidamente com Emma.

— Em, vamos apostar uma corrida até a macieira! Quem chegar por último sobe na árvore e pega algumas maçãs. Combinado? - Henry propôs enquanto caminhávamos até a entrada do parque.

— O que você vai fazer com as maçãs? - Perguntei, pondo as mãos na cintura.

— Uma torta! Ou melhor, você vai fazer. - Henry esclareceu vindo me abraçar, feito um cãozinho pidão.

— Uma torta? Bleh, clichê. Pensarei em algo melhor. Agora vai correr se não quiser passar a tarde puxando maçãs dos galhos. Ele concordou com a cabeça animadamente e zarpou dali, dando a língua à Emma quando passou por ela. Sua boca, por sua vez, abriu em descrença e logo suas longas pernas estavam se movendo rapidamente também.

Fui esquecida para trás, caminhando devagar, sentindo o vento da tarde de Nova Orleans dar suas boas-vindas. O inverno estava se despedindo aos poucos e minha ansiedade por ver as flores desabrochando crescia cada dia mais. Eu era grata a tudo o que Deus criou, artesanalmente, para que nós pudéssemos apreciar. Ele fez as flores, cada uma com seu detalhe especial, cada uma com aquilo que a torna única, e Ele também fez o mar em sua imensidão, e o céu, em seu mistério infindável. Deus era maravilhoso. Era. Até sua imagem e semelhança se voltar contra ele dizendo o que pode e o que não pode. O que é admirável e o que não é. Deus era perfeito até alguém dizer que não. Mas eu continuo admirando Teus feitos, pois são perfeitos. Eu olho para Henry e enxergo a perfeição. Enxergo a pureza e a perspicácia natural de uma criança, e enxergo como ele me faz feliz por ser perfeito. Olho para Emma e consigo ver o projeto completo de Deus em sua arquitetura e em sua engenharia. Ela é perfeita. Seus olhos, suas pernas, suas mãos. Seu coração. E ela me faz feliz. Sorrindo sem nem perceber, escalei a colina em cujo topo descansava a macieira e lá estavam as duas perfeições da natureza retomando o fôlego.

— Quem ganhou? - Indaguei-os, curiosa.

— Foi empate. - Emma murmurou, fingindo estar chateada.

— Sério? Vocês não estão com nada, hein! - Cutuquei o braço de Henry com meu cotovelo. - Bem, esqueçam as maçãs. Podemos somente ficar aqui, sentados, não? - Encorajei.

— Ahn, é, acho que sim. - Emma deu de ombros. E não estava mais fingindo. Havia algo errado.

Sentamo-nos na grama e eu logo tirei os sapatos. Sentir a grama debaixo dos pés era das melhores sensações já registradas. Fitei Emma com o canto dos olhos e vi que ela escrevia no celular. Uma expectativa, então, se criou em mim. Queria que meu telefone vibrasse em alguns segundos. Ela largou o aparelho sobre a grama e fechou os olhos. E meu celular não vibrou. Definitivamente, alguma coisa não estava no lugar.

Fechei também os olhos e suspirei. Meus dedos foram engatinhando até encontrarem a mão de Emma, e ali eles acharam repouso. Então ficamos os três ali, silenciosamente comemorando a liberdade de sermos apenas nós três.